Artes
e Epilepsia
Norberto
Garcia-Cairasco
Um
par de anos atrás quando escrevemos um artigo sobre o cérebro
e as artes visuais (Garcia-Cairasco, 2000), percebemos o quanto
este tema é intrigante, empolgante e ao mesmo tempo difícil
de ser abordado. Apresentávamos na ocasião a perspectiva
dos artistas plásticos que, ao longo dos séculos,
modelaram o cérebro e as suas funções com enorme
criatividade. Comentávamos como nesta caminhada estético-científica
o homem não evitou que tendenciosidades e influência
de dogmas do momento e das ignorâncias a ela associadas, repercutissem
sobre esses modelos. Vários momentos dessa história
das Neurociências foram brilhantemente discutidas, entre outras
obras, no livro The Enchanted Loom: Chapters in the History of
Neuroscience (De Corsi, 1989).
Dentro
da mesma linha de raciocínio do artigo mencionado, escrever
sobre artes e epilepsia deve fazer eco à enorme interação
que existe, ou ao menos deveria existir, entre arte e ciência.
Em primeiro lugar, não é nada fácil tentar
explicar a origem do conceito de epileptogênese sem usar critérios
e parâmetros científicos, ao mesmo tempo que é
bem difícil se aventurar em definições sobre
arte apenas utilizando ferramentas científicas. Afinal as
artes e os conceitos sobre expressão artística também
tiveram suas mudanças, e elas dependeram, entre outros fatores,
da evolução do próprio cérebro humano
e de uma consequência disso, a nossa cultura. Pelo fato das
epilepsias se referirem ao longo dos séculos a fenômenos
ora fantásticos ou mágicos, ora demoníacos,
e com o avanço cada vez maior da ciência, a fenômenos
orgânicos, resultaria praticamente impossível pretender
dar uma explicação sobre essa interação
arte-epilepsia, que incorporasse, de maneira simplista as definições
de epilepsia (quase sempre confusas) e as definições
de arte (quase sempre subjetivas). Vejamos exemplos que ilustram
este ponto de vista.
Como
foram vistos a epilepsia e os epilépticos ao longo dos séculos?
Como dito anteriormente, as epilepsias e os epilépticos foram
vistos, como fenômenos mágicos e como personagens,
respectivamente, abençoadas ou amaldiçoadas. De que
maneira era vista a função cerebral? Se nos remontamos,
por exemplo, à época da frenologia, segundo Gall (1758-1828),
protuberâncias cerebrais revelavam funções ou
características funcionais que relacionavam personalidade
a vantagens ou disposições comportamentais. Sem uma
neuroanatomia e neuropatologia conhecidas, e com as grandes restrições
do conhecimento neurológico ainda incipiente, é obvio
que muito deste localizacionismo pode ter findado em charlataneria.
O que dizer então do prognóstico dos indivíduos
que eram acometidos pelos ataques da assim chamada doença
sagrada?
Numa
seqüência de eventos brilhantes extremamente ligados
uns aos outros, alguns artistas plásticos e acadêmicos,
através de numa série de trabalhos produzidos entre
os séculos quinze e dezesete, se aventuraram nas chamadas
visões realistas ou naturalistas do homem e da própria
natureza. Esta conjunção de abordagens certamente
foi a precursora da ciência moderna (Smith, 2000). Com o avanço
do conhecimento em neuroanatomia, com o auxílio dos detalhamentos
estruturais advindos das dissecções e obras dos grandes
mestres das Artes Visuais na Renascença - Michelangelo (1475-1564)
e Da Vinci (1452-1519) - e da Medicina - Vesalius (1514-1564) e
Albinus (1697-1770) - a possibilidade de correlacionar estrutura
e função foi aumentada. Desta maneira, grandes artistas
incursionaram em tarefas ditas científicas. Leonardo, por
exemplo, contribuiu particularmente como cientista ao conhecimento
do cérebro (Pevsner, 2002) sendo considerado por alguns o
primeiro cientista. (White, 2002). Para se ter um exemplo, embora
existam desenhos de Da Vinci onde constam erros grosseiros na anatomia
dos ventrículos cerebrais, segundo Pevsner (2002), essa versão
parece ser o produto, da sua leitura dos textos da época,
que assim refletiam essa anatomia. Deve-se a Leonardo, entretanto,
a descoberta da forma correta das cavidades ventriculares, ao preenchê-las
com cera derretida, técnica esta somente recuperada quase
dois séculos depois de Leonardo (Pevsner, 2002). Ticiano
e sua escola contribuiram grandemente para que o trabalho monumental
De Humanis Corporis Fabrica de Vesalius fosse mais aparente
(Saunders e O'Mailey, 1950), da mesma maneira que Jan Wandelaar
permitiu que se destacasse a obra de anatomia, também clássica
de Albinus (Hale and Coyle, 1979). Uma consequência interessante
dessa interação Arte-Ciência pode ter sido a
rotina de executar obras como as lições de anatomia
(Dr. Tulp., 1632; Dr. Deyman, 1656) de Rembrant (1606-1669) e outras
obras, onde se expunham situações patológicas
tais como a cura de um jovem epiléptico na Transfiguração
de Cristo, de Rafael (século XVI) e a hemidistonia, em
quadro de Ribera (século XVII). No caso de Rafael, mais do
que uma contribuição científica, o que chama
a atenção neste quadro é o caráter de
interpretação religiosa, do relato bíblico,
narrando a possessão espiritual que acometia ao jovem e a
cura pelo milagre. As artes serviam então como veículo
da época para a explanação do fenômeno
das epilepsias. É interessante mencionar que o próprio
Rafael pintou com excelência a comentada obra a Escola
de Atenas (1510-1511?), onde a coexistência de personagens
da Teologia, da Filosofia e da Astrologia é apoteótica
(Hall, 1997). Não deixa de haver um contraste entre esta
obra (Escola de Atenas) e a cura pelo milagre na Transfiguração
de Cristo. Discutiremos abaixo como as artes visuais, um testemunho
do momento, poderiam eventualmente se trasformar em protagonistas,
quando a questão em pauta fosse a geração de
arte por indivíduos com epilepsia.
Um
fator que potencialmente contribuiu para estigmatizar, de maneira
certamente ositiva, grandes personagens ou gênios da literatura
e das artes, é a definição de estados melancólicos
associados a eles. Em outras palavras, o gênio sempre foi
associado a estados taciturnos. Segundo Yacubian (2000), na Renascença,
a observação de que todos os homens excepcionais haviam
sido melancólicos fez com que florescece a idéia de
que grandes homens seriam particularmente propensos à epilepsia.
Se a definição de doença mental não
estava bem estabelecida nessas épocas, óbvios nexos
foram traçados (nem sempre mensuráveis) entre doença
mental e genialidade (Andreasen, 1987).
Relatos
mais recentes confirmam estes perfis, ao demonstrarem como as grandes
produções de ícones da literatura universal
estavam associadas a ciclotimia, depressão ou euforia dos
mesmos. Jamison (1995), por exemplo, falando sobre doença
maníaco-depressiva e criatividade, mostra como temperamento
e estilo cognitivo específico associados às desordens
do humor podem de fato aumentar a criatividade em alguns indivíduos.
Comenta este autor que, da mesma maneira que a taxa de suicídios
é bem aumentada entre indivíduos deprimidos que se
destacaram pela sua produção artística, os
ciclos de humor aos que eles estavam submetidos afetou também
sua produtividade. Jamison (1995) cita, entre outros, o exemplo
de Robert Schumann, cuja maioria de obras musicais foi composta
na fase de hipomania, enquanto que a redução de sua
produção ocorreu durante as fases de depressão.
O que
falar então dos indivíduos portadores de epilepsias?
É evidente que o fato de, por exemplo, o famoso pintor holandês
Van Gogh (1853-1890), ter apresentado um quadro compatível
com crises epilépticas, embora discutido até hoje,
junto com mais de 30 outras possibilidades diagnósticas,
aguçou críticos, neurocientistas e historiadores,
no sentido de estabelecer essa relação eventualmente
causal entre epilepsia e genialidade. Sua história é
a mais completa e a mais conhecida. Tentaremos usá-la como
um paradigma para as lições que esta relação
pode nos ensinar.
É
notória a quantidade de estudos que tentam mostrar desde
o diagnóstico da doença de Van Gogh, até a
influência de seu estado clínico na sua produtividade.
Gastaut (1956) confirmou os achados dos médicos que trataram
de Van Gogh, identificando uma epilepsia do lobo temporal precipitada
pelo uso de absinto (bebida muito comum na França, entre
todos os artistas da época) na presença de antiga
lesão límbica com sintomatologia de emocionalidade
aumentada, viscosidade e hiposexualidade. Mais recentemente destaca-se
entre essas obras o livro de Arnold (1992) onde de maneira bem detalhada,
se discutem os aspectos que relacionam, além dos óbvios
fatores associados à sua potencial epilepsia, tanto o impacto
do uso de tintas, solventes e da bebida absinto no estado mental
e neurológico e na criatividade do mestre. Na mesma linha,
em recente revisão, Blumer (2002) relata como o quadro clínico
de Van Gogh poderia estar relacionado de maneira multifatorial a
estados de depressão pós-epilepsia, induzida por efeitos
pró-convulsivos do absinto. Não se descartaria uma
lesão cerebral prévia possivelmente associada ao tipo
de epilepsia temporal mesial. Blumer (2002) define as alterações
comportamentais de Van Gogh como desordem disfórica interictal,
sendo esta o conjunto alternado e periódico de excitação-depressão
e episódios de fúria, que se associavam a atividade
EEGráfica específica. Na realidade, Blumer (2002)
resume como Van Gogh sofreu de dois episódios de depressão
reativa, tendo apresentado sinais claros de doença bipolar.
Além disso os dois episódios de depressão foram
seguidos por períodos mantidos de energia extremamente alta
e de entusiasmo, primeiro como evangelista, e depois como artista.
Dos relatos de seu irmão Théo, e das cartas de Van
Gogh a ele dirigidas, se conclui, que, embora Van Gogh apresentasse
comportamentos interictais compatíveis com alterações
mentais pós-epilepsia, a sua maior produção
foi feita em estado lúcido.
Entre
os pontos importantes que poderíamos derivar da história
surpreendente de Van Gogh, está a não interferência
do seu estado mental ou neurológico, no sentido negativo,
no seu desempenho artístico. De outro lado, a sua genialidade
superou as eventuais barreiras que seu quadro clínico poderia
lhe ocasionar. Mas, o que poderíamos pensar do epiléptico
que chamaríamos comum? Há uma série de programas
que tentam incorporar indivíduos epilépticos à
sociedade, já que reconhecemos que, embora o tratamento eficiente
situe o epiléptico como um indivíduo normal, melhorar
sua qualidade de vida e remover o estigma social sempre serão
metas obrigatórias. Desta maneira os grandes nomes das artes
e das letras são postos como exemplos de capacidade e competência,
reveladas de maneira surprendente, apesar das suas epilepsias. Como
exemplo, no sítio Aura
são colocados, revisão de livros, galerias
de arte, incluindo fotos, colagens, pinturas e desenhos de indivíduos
epilépticos, além das definições, sugestões,
comentários sobre indivíduos com epilepsia. Em muitas
dessas produções aparecem sequências, depoimentos,
ou vivências que externam de maneira estética, as vezes
bem crua, as suas experiências de vida. Como referência
extrema, os indivíduos que apresentam a chamada síndrome
savant mostram como cérebros submetidos ao limite
da sua capacidade funcional aprsentam um potencial ilimitado enquanto
a performances artísticas. Muitos desses indivíduos
são autistas, e mesmo assim, apesar das suas limitações
psicomotoras, perceptivas e sensório-motoras, se expressam
por meio da arte, de maneira magistral, sendo uma das mais famosas
Nádia (Selfe, 1977). Humphrey (1999) sugere, em artigo polêmico,
que a expressão artística de Nádia pode ter
sido consequência de sua inabilidade linguística, o
que o autor considera análogo com as mentes dos habitantes
das cavernas na era do gelo. De fato, não temos nenhum registro
de autismo e epilepsia, portanto esta relação é
difícil de ser avaliada no contexto deste artigo.
Fora
dos conceitos medievais sobre epilepsia e considerados pela ciência
arcáicos, o que acontece no nosso mundo contemporâneo?
Em trabalho recente sobre como são ilustrados eventos epilépticos
no cinema, Kerson e cols (1999) concluem que a visão que
se passa nos filmes continua a ser distorcida, sensacionalista e
apresentada da maneira bem amedrontadora. Curiosamente, tratamentos
não convencionais, não medicamentosos de indivíduos
com epilepsia - por exemplo, tratamentos neurocomportamentais, multidisciplinares
e de curto prazo (Reiter e Andrews, 2000) - têm se mostrado
úteis, não só no controle das crises e de redução
dos níveis de AEDs, mas também têm trazido benefícios
adicionais tais como melhoria no desempenho profissional, nas artes
e nas ciências da computação. Se pensarmos um
pouco, também no mundo de hoje poderemos ter situações
às vezes surprendentes. Ishida e cols (1998), entre outros,
reportaram recentemente os sintomas clínicos de pacientes
que, assistindo ao programa japonês Pocket monsters,
apresentaram crises epilépticas fotoativadas. Os autores
concluiram que as crises foram induzidas por mudanças rápidas
nas cores, já que todos os pacientes estudados tiveram suas
crises quando foram expostos por alguns segundos a luzes vermelhas
escuras e flashes de azul brilhante, alternando a uma frequência
de 12 Hz. Hoje não é mais segredo que as epilepsias
fotomioclônicas e a fotossensibilidade são um fato
científico e clínico.
Tanto
a interação do nosso cérebro com as cores como
os eventos emocionais que podem ser modulados pela percepção
das mesmas, certamente estão entre os fatores que podem ser
considerados quando da relação entre artistas plásticos,
genialidade e epilepsia. Sempre existe a pergunta de porque El
Greco distorcia suas imagens, ou porque Rembrandt pintava com
aquele fundo escuro do qual eventualmente surgiam figuras extremamente
iluminadas, e quais as razões ópticas, oftalmológicas,
técnicas ou filosóficas para o pontilhismo, ou para
o impressionismo. Marmor e Ravin (1997) no seu maravilhoso livro
The Eye of the Artist, ilustram de maneira clara como, em
alguns casos, houve sérios problemas de visão, associados
à idade, a doenças degenerativas ou oculares, e em
outros, foram escolhas técnicas e acadêmicas as que
levaram estes artistas a executarem distorções ou
decidirem por opções estéticas específicas.
Agora,
de que maneira o nosso cérebro processa e contrasta informações
simples, como a do flash, ou mesmo os padrões mais
complexos de cores como aqueles contidos nos desenhos animados acima
mencionados? De que maneira o cérebro transforma esses sinais
em indutores de hiperexcitabilidade e hipersincronismo (epilepsia),
e como, na situação normal, de maneira coordenada,
nos integra junto com outras modalidades sensoriais, por meio de
processos de transdução e associativos, ao universo
que nos rodeia? Obviamente este é o ponto que todos gostaríamos
de entender, e dele poderíamos derivar, mesmo que de maneira
ainda precária, quais seriam os mecanismos do processamento
da informação estética, um elemento eventualmente
emergencial e altamente subjetivo.
No
caso de Van Gogh, tanto Arnold (1992) quanto Blumer (2002) coincidem
em que a maioria das melhores expressões artísticas
deste grande mestre foram realizadas fora da esfera das intoxicações
por absinto, fora dos quadros depressivos, e com uma lucidez extrema.
Ao comentar justamente como o cérebro processa a informação
estética, podemos nos encontrar com situações
entre as quais aquela dos indivíduos muito bem dotados (gênios)
que extraem de objetos e da natureza, assim como da própria
sociedade humana, informação que às vezes não
é perceptível ao comum das pessoas. Nesse campo entenderíamos
a relação entre processamento cerebral e a nossa visão,
digamos, convencional, a visão do dia-a-dia, ou eventualmente
a diferença, se é que ela existe, entre visão
dos mestres e sua associação com genialidade. Um pouco
dessa aventura de explicar como esses processos podem acontecer
de maneira diferencial entre indivíduos comuns, observadores
ou críticos de arte e artistas plásticos, tem sido
tentada no recente e polêmico livro Inner Vision: An exploration
of Art and the Brain de Semir Zeki (1999). Neste livro o autor
argumenta como nossas percepções do valor estético,
da cor, da luz-sombra e da perspectiva, contidas nas obras de arte,
dependem do funcionamento cerebral. Este autor salienta como a universalidade
da percepção estética nos permite comunicarnos
através da arte sem precisar da palavra escrita ou falada.
Numa tentativa semelhante, a de expor uma teoria neurológica
da experiência estética, Ramachandran e e Hirstein
(1999) apresentam o que eles chamam das oito leis da experiência
artística, a busca por universais, a busca pelo essencial.
Neste mesmo contexto é interessante mencionar o caso relatado
por Finkelstein e cols (1998) de um jovem de 27 anos que trabalhava
com artesanato de mosaicos e até então não
tinha mostrado nenhum interesse em desenho ou pintura. Foi a seguir
admitido a um setor de neurologia com comportamento bizarro e desordens
convulsivas. Durante algumas das crises o paciente impulsivamente
iniciou desenhos, atividade esta que estava EEGraficamente associada
a paroxismos ictais fronto-temporais esquerdos, coincidindo com
hipofluxo no SPECT na mesma região. Os autores sugerem se
tratar de um fenômeno desinibitório, na medida que
testes psicodiagnósticos mostraram hipofunção
da região frontal esquerda, talvez induzida por depressão
alastrante do hemisfério esquerdo, enquanto que as funções
do lobo direito permaneciam intactas. Parte da controvérsia
sobre neurologia da função estética está
retratada em Zeki (2001) e Ione (2000).
Embora
tenhamos nos atido nesta série de comentários aos
artistas das artes visuais, uma grande quantidade de exemplos advindos
de outras esferas das artes, devem ser listados. Muitos deles já
foram comentados no artigo da Dra. Yacubian, no presente volume,
e outros tantos aparecem em farta literatura ao respeito (Jamison,
1995; Andreasen, 1987). Por exemplo, segundo Guerreiro (2000), Machado
de Assis apresentava epilepsia sintomática localizada, com
crises parciais complexas que generalizavam secundariamente. A consequência
mais negativa da epilepsia deste grande escritor brasileiro foi
o sofrimento psicológico devido à rejeição
que sofreu na sua época. Guerreiro (2000) destaca que apesar
disto, Machado de Assis mostrou ser um grande gênio ainda
atual e universal. Finalmente, segundo Bazil (2001), Edgar Allan
Poe, um dos mais celebrados escritores americanos, sofreu também
de sintomatologia compatível com um quadro epiléptico:
episódios de perda da consciência, confusão
e/ou paranóia. Embora estes sintomas tenham sido atribuidos
a álcool ou abuso de drogas, eles também poderiam
representar crises parciais complexas, estados pós-ictais
prolongados ou psicose pós-ictal.
Concluindo,
arte e epilepsia se fundem tanto quanto arte e ciência. Os
avanços da ciência não conseguem ainda explicar
o significado final da arte como expressão fina e elaborada
da função cerebral. Também não explicam
como funciona o cérebro do artista, e as nuances que acompanham
o desempenho artístico modulado por circunstâncias
técnicas, por estados emocionais ou por questões orgânicas.
Nenhuma dessas limitações nos impede de aceitar que,
mesmo em indivíduos com lesões severas, como no caso
dos savants, e em casos bem mais amenos, como os de indíviduos
com epilepsia (exceção feita são as epilepsias
catastróficas e as várias formas de epilepsias farmacorresistentes),
a expressão das artes plásticas podem não estar
prejudicadas ou eventualmente estar até aumentadas. Os critérios
para definir estas interações dependem de uma série
enorme de fatores que quando considerados em conjunto são
vinculados mais à nossa visão aberta e abrangente
do universo e da sociedade em que vivemos, do que às restrições
que acompanham o portador de epilepsia.
O desenho
Ictus, executado pelo autor em 1987 retrata a necessidade
de visões inicialmente fenomenológicas (semiologia;
etologia) das epilepsias, com toda a carga emocional e clínica
que a sua expressão possa acarretar ao individuo que tem
epilepsia e mesmo ao seu observador (familiar, médico). Adicionalmente
retrata a necessidade de entender através da pesquisa, os
mecanismos celulares e moleculares que podem ser caracterizados
para oferecer diagnóstico e terapêuticas, tanto farmacológicas
quanto comportamentais e cirúrgicas. Dessa visão integrada
depende a possibilidade da ciência oferecer bem estar e qualidade
de vida, enquanto investigadora desses fenômenos. As expressões
artísticas destes indivíduos são um caminho
adicional para o entendimento da surprendente esfera de fatores
que caracterizam a função cerebral que tanto apelo
têm, embora de conhecimento limitado, para o próprio
homem.
Um
argumento interessante tomado de Zeki (1999) é o de que o
cérebro é um belíssimo órgão,
uma das maiores aquisições da evolução.
Segundo ele, o conhecimento da sua operação e de seus
produtos, incluindo aqui as obras de arte que têm enriquecido
nossas culturas e que todos nós admiramos, simplesmente aumenta
nossa sensação de maravilhamento e de beleza, já
que como consequência começamos a admirar não
só o produto, mas o órgão que é capaz
de produzí-las.
Norberto
Garcia-Cairasco é pesquisador do Laboratório de Neurofisiologia
e Neuroetologia Experimental. Departamento de Fisiologia. Faculdade
de Medicina de Ribeirão Preto. Universidade de São
Paulo.
Agradecimentos:
Às fundações de apóio à pesquisa,
FAPESP, PROAP-CAPES, CNPq, FAEPA, PADCT e PRONEX pelo apoio financeiro.
A todo o pessoal do Laboratório de Neurofisiologia e Neuroetologia
Experimental do Departamento de Fisiologia da FMRP-USP, em especial
aos Pós-Graduandos Cristiane Queixa Tilelli e Christiano
Del Cantoni Gatti, pelos seus comentários e correções
ao manuscrito. Este artigo é dedicado aos indíviduos,
geniais ou não, que por causa de, ou apesar de suas epilepsias,
realizam obras de arte e brilham com sua arte.
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