Principais
equívocos epileptológicos
Paulo
Cesar Trevisol Bittencourt
Este
texto é produto da observação de alguns milhares
de usuários de drogas anti-epiléticas por pelo menos
duas décadas no Estado de Santa Catarina, região sul
do Brasil e também de algumas dezenas no vizinho Paraná
e na Inglaterra. À semelhança de outras grandes nações,
nosso país é um mosaico composto por áreas
bem distintas entre si. É possível, por esta razão,
ele não refletir o que sucede em outras regiões; embora
não acredite; pois conheço, e bem, a realidade médico-social
da maioria dos estados brasileiros. De acordo com a encomenda, ele
será obviamente crítico, enfatizando aspectos que
contribuíram ou ainda contribuem para macular práticas
epileptológicas da medicina tradicional.
Entretanto,
o progresso exibido nos últimos anos, apesar de heterogêneo,
e por isso bem típico do nosso charmoso país, é
tão rápido que me permite ser otimista e vislumbrar
a erradicação desses problemas em poucas décadas
de trabalho duro e honesto. E, sinceramente, admito ser este o maior
entrave. Por outro lado, observo, a bem da verdade, que vários
deles não são uma exclusividade do Brasil, podendo
ser facilmente identificados em quaisquer outras sociedades, inclusive
naquelas rotuladas como primeiro-mundistas.
Assim,
ao dar vazão a minha iconoclastia crônica, admito a
probabilidade de que meus comentários sejam mal interpretados
e por isso despertarem ressentimentos ou original paranóia,
em uns poucos colegas. Evidente que fatos vivenciados foram minha
principal fonte de inspiração; todavia, gostaria de
lhes reafirmar o caráter impessoal das minhas críticas.
Além disso, friso que, ao longo da minha vida, a nobreza
da ética, tão vilipendiada nos tempos atuais, sempre
foi tributada a profissão e nunca a notórios farsantes
da corporação médica.
Para
fins didáticos, tópicos serão enfocados individualmente.
Finalmente, longe de mim a pretensão ao monopólio
da razão; assim, respostas aos comentários que seguem,
e para isso lhes é oferecido um endereço ao seu final,
serão sempre bem vindas e gratificariam amplamente o esforço
despendido.
Finalizando,
reconheço que muito mais poderia ser escrito sobre o tema;
atento ao editor, restrinjo minhas críticas aos itens que
pessoalmente considero como mais abomináveis e a despeito
disso, passíveis de reparação imediata.
Disritmia
cerebral
É incrível como este rótulo anacrônico,
de natureza francamente imbecil ou "philantrópica",
permanece enraizado na sociedade brasileira. No mínimo uma
vez por semana recebo carta de alguma pessoa questionando-me sobre
a mesma. Entretanto, como o teor destas mensagens é muitíssimo
semelhante, ofereço-lhes como ilustração delas,
intacta, esta carta eletrônica recebida em 21/06/02:
"Sou
professora do município de Cabo Frio, e dou aula para a primeira
série. Tenho um aluno que muito me preocupa pois não
sei o que e como ensinar a ele. Ele tem disritmia cerebral, a mãe
dele disse que ele começou a ter problemas, sintomas há
quase um ano atrás. Ele tem 9 anos.
Ele
toma gadernal 50 mg - 2x ao dia e hidantal 100mg - 3x ao dia.
Segundo a mãe, tem 3 meses que ele está em tratamento.
E de início ele tomava hidantal 3 comprimidos inteiros por
dia.
Estou
muito assustada pois ele é aluno novo, e tem esses problemas.
A mãe me avisou que ele pode ter alguns ataques como ficar
desmaiado, enrolar a língua e ficar roxo.E pediu para que
eu não deixasse ele correr no sol. Confesso que estou com
medo, e tenho medo de qualquer coisa provocar esses ataques.
Além
disso, ele sente muito sono (será que são os remédios?
o que eu faço?) ele teve um ataque esta noite passada em
casa, e hoje a mãe dele me avisou.
Ele
é muito descontrolado, agitado, não tem noção
de perigo,não consegue se socializar,não tem paciência,
nem limites,não consegue se concentrar e ficar parado para
realizar as atividades. O que eu faço? Devo ensinar a ele
com alguma diferença? Ele as vezes esquece das coisas, das
atividades, dos colegas, de onde ele está. Ele gosta de me
perguntar sempre,
porque ele está ali (na escola) e se falta muito para ir
para casa pois está com sono.
Estou
pedindo ajuda, pois não sei o que é essa doença,
se tem cura, como eu posso ajudá-lo, o que devo fazer,quais
as perspectivas dele ser como os outros?
Aguardo
com urgência a resposta".
Introduzido
pelo casal de eletroencefalografistas Gibbs, como sinônimo
de epilepsia nas décadas de 20-30 do século passado,
com a anuência expressa de William Lennox, o pai da epileptologia
norte-americana, tinha o declarado objetivo de atenuar preconceitos
sociais. Porém, com o passar dos anos, Disritmia Cerebral
(DC), virou um tremendo saco de gatos, e das mais variadas
espécies. Médicos, muitos deles bem intencionados,
alguns definitivamente não, vislumbraram na expressão
uma maneira simpática e socialmente aceitável para
diagnosticar epilepsia; todavia, com o tempo expandiram este diagnóstico
esdrúxulo para distintas condições nosológicas,
incluindo pessoas sem qualquer vestígio de anormalidade e
assintomáticas. O problema foi internacionalizado e agravado
sensivelmente com a difusão mundial do eletroencefalograma
(EEG); particularmente da sua variante pilantra: o eletroencefalograna.
Além disso, muito desgraçadamente, efeitos colaterais
típicos de drogas barbitúricas, vide narração
da professora, surrealmente foram incorporados ao rol de sintomas
"disrítmicos" e assim contribuíram para
reforçar nos familiares das vítimas a "certeza
do diagnóstico".
Entretanto,
foi tragicômico perceber que miseráveis sofrendo de
genuínas epilepsias, continuavam recebendo o mesmo diagnóstico;
mas, aqueles com a mesma condição (ou simplesmente
sofrendo de coisa alguma), que faziam parte das classes média
ou alta, após a realização de um inescrupuloso
EEG eram charmosamente diagnosticados como "disrítmicos
cerebrais". Enfatizo ser notável perceber um status
social bem distinto; enquanto sofrer da tal disritmia conferia
(e ainda confere) uma positiva qualificação, o diagnóstico
de epilepsia continuava e continua sendo uma espécie de praga
celestial. Todavia, aos disrítmicos e familiares,
como uma espécie de tributo, lhes é exigido um eletroencefalograna
a cada 2-3 meses, enquanto aos epiléticos miseráveis
ironicamente lhes é dito: já sabemos o que você
tem e exames são desnecessários.
No
passado, barbitúricos eram o tratamento único para
ambos, com uma ressalva: gardenal para os epiléticos
da periferia e mysoline (primidona) para os disrítmicos
da aristocracia. Contudo, com o passar dos anos, disritmologistas
modernos descobriram em "tegretol"/"trileptal"
a melhor alternativa para seus iatrogenizados pacientes. DC é
um diagnóstico fraudulento que urge ser banido da sociedade
brasileira. Neste desígnio, o revolucionário impacto
da informação, é de longe a melhor solução
e este remédio tem demonstrado sua eficácia,
haja vista a redução progressiva dos apenados com
este diagnóstico entre nós.
Fenitoína ou feiotoína
Pesquisadores norte-americanos, muito provavelmente, misóginos
radicais, descobriram fenitoína (PHT) ao final dos anos trinta
do século passado e a apresentaram ao mundo como "grande
droga anti-epiléptica, indispensável no tratamento
de pessoas com epilepsia". Enfim, tínhamos uma droga
mágica, aparentemente com "eficácia superior
ao fenobarbital (PB) e menor toxicidade". E quando se ganha
uma guerra, a versão do vencedor passa a ser verdade inquestionável,
geralmente assumindo caráter de dogma religioso. Apesar do
estardalhaço inicial, PHT revelou ser uma droga com espectro
de ação semelhante ao PB alemão e com efeitos
negativos também. Alguém então sugeriu, hipoteticamente,
que a combinação de PB com PHT teria efeito sinérgico
e assim finalmente surgiu a "medicação ideal",
alcunhada de "comital" e difundida amplamente pelo universo.
Durante
décadas, PHT (associado ou não a fenobarbital) foi
usada massivamente no tratamento de pessoas com epilepsia, sem que
ninguém ousasse comentar seus inúmeros e freqüentes
efeitos desagradáveis. PHT é considerada uma droga
anti-epilética maior e não discordamos disso;
porém, todos que a prescrevem generosamente, deveriam igualmente
ter em conta que ela é também a maior causa
de feiúra medicamentosa da atualidade. Aliás, neste
aspecto, seu potencial é tão dramático que
melhor seria chamá-la de "feiotoína", tal
a desgraceira estética que geralmente provoca nos seus usuários.
Particularmente as mulheres pagaram um pesado tributo no passado
(e muitas seguem sendo desfiguradas no presente), sendo alijadas
do convívio social por apresentarem a síndrome feiotoínica
clássica: brutal halitose, consequência de sangramentos
provocados por gengivite hiperplásica; hirsutismo sutil ou
generalizado e acne difusa.
Contudo,
muitos colegas ainda tem a percepção dos seus defeitos
ofuscados por uma fé messiânica em sua eficácia
anti-epilética; provável subproduto da colonização
norte-americana. Desta maneira, sofismam sistematicamente na ânsia
de enfatizarem suas virtudes e omitirem seus graves defeitos. É
possível que feiúra confira status social em algumas
sociedades desenvolvidas; mas, entre nós latinos, seguramente
não. Por isso, preservar os indivíduos sofredores
de epilepsia, em especial mulheres, dos inconvenientes comuns desta
droga, deveria ser uma meta a ser perseguida por todo médico
crédulo no sábio dito popular: prevenir é sempre
melhor que remediar. Mais ainda, se levarmos em conta os honorários
cobrados por dentistas, esteticistas, psicólogos e cirurgiões
plásticos; profissionais geralmente envolvidos na tentativa
de reparação.
Fenobarbital: de panacéia a vilão
Em
primeiro lugar, para que não paire dúvida, gostaria
de lhes reafirmar uma convicção: barbitúricos
são altamente eficientes para impedir a recorrência
de ataques epiléticos diversos. Sinceramente, não
vislumbro dentre as atuais drogas anti-epiléticas (DAE),
alguma com eficácia superior. Entretanto, a performance de
uma DAE não pode ser medida exclusivamente pela sua
habilidade em anular epilepsia; assim, seus potenciais efeitos negativos
nunca deveriam ser perdidos de vista pelo terapêuta responsável.
Com relação a fenobarbital (PB), demoramos excessivamente
para reconhecer seu mais grave problema: é extremamente difícil
encontrar um usuário crônico que não desenvolva
barbiturismo, isto é, a combinação de
sonolência (ou paradoxal hipercinesia) com transtornos cognitivo-comportamentais
em grau variado. Como crianças e adolescentes são
particularmente vulneráveis, é possível inferir
o fantástico número delas que foram desgraçadas
pelo uso abusivo de PB até recentemente entre nós.
Muitos dos seus usuários, prisioneiros do próprio
tratamento, foram iatrogenicamente transformados em pacientes psiquiátricos
e encaminhados para "tratamento especializado" em deprimentes
masmorras psiquiátricas espalhadas pelo país, de onde
poucos saíram, e vivos menos ainda. Além disso, depressão
grave induzida pelo seu uso prolongado, é por demais freqüente
para ser ignorada e deveríamos dar um basta definitivo na
tragicomédia representada pela prescrição de
drogas anti-depressivas para o tratamento deste comum efeito colateral.
Para
aqueles que tão cegamente defendem seu emprego indiscriminado,
sugiro uma pausa para reflexão: será que os fabulosos
escritores Dostoievsky e Machado de Assis, teriam a mesma produção
literária tomando PB diariamente? Imaginem o desastre que
seria, Cesar ou Alexandre da Macedônia liderando campanhas
militares com PB todas as noites. O imperador romano então,
caso conseguisse atingir Cairo, certamente desapontaria sua amada
com sua performance britânica...Cleo: I am british, no
sex please! Ou, formulando a mesma questão de uma forma
mais abrangente: cite algum grande personagem, de qualquer área
do saber, medicado por tempo prolongado com PB. Qual?
Muito
provavelmente, a crença na eficácia monstruosa
desta droga entre médicos, deve-se a sua ignorância
da evolução natural da maioria das epilepsias: cura
espontânea com o tempo. Desculpem-me, mas é oportuno
recordar um milenar conceito hindu: Medicina é a arte
de entreter a doença enquanto a mãe natureza faz o
seu papel. Assim, é melancólico atribuir a PB,
ou aos seus próprios poderes, algo que aconteceria naturalmente.
Contudo,
seria leviano negar algumas das suas virtudes. Certamente, meia
vida longa aliada ao seu baixo custo são charmes adicionais
que esta droga possui. Além disso, há diversas situações
do cotidiano onde bem estar cognitivo/comportamental/sexual pesará
menos que eficaz controle ou redução das crises. Por
estas razões, PB continua sendo DAE indispensável,
sendo censurável a proscrição do seu uso observada
atualmente; principalmente diante de tantas drogas modernas fajutas,
cujos envolvidos deveriam ser admoestados por envolvimento com propaganda
enganosa vulgar. Realço: ao final do milênio presenciamos
PB sair de panacéia anti-epilética para a de vilão;
sobrando todavia, indicações para sua utilização.
Há urgente necessidade de um consenso entre qualificados
epileptologistas, para a definição de quando e como
usar drogas barbitúricas; pois, por muitos anos ainda, elas
continuarão sendo boas alternativas farmacológicas.
Histeria
Histeria, denominada "transtorno somatoforme" em sua moderna
encarnação, é um dos diagnósticos mais
freqüentes na medicina contemporânea; aliás, tamanha
é sua popularidade entre nós, que seria de interrogarmos
a ocorrência de uma verdadeira epidemia de histéricos.
Alguns, muito provavelmente por terem sido melhor educados, já
se referiam a esta condição usando expressões
mais elegantes como "crise psicogênica", "ataque
de origem emocional", "distúrbio neuro-vegetativo".
Entretanto, é vulgarmente definida por muitos profissionais
da saúde com termos pejorativos, tais como "piti",
"chilique", "peripaque", entre outras grosserias.
Neurologistas, supostamente com educação mais refinada,
adotaram a infeliz expressão de origem inglesa: pseudo-crise.
Ora, tais crises são bem reais e deveriam ser objeto da mais
criteriosa consideração profissional. Mais ainda se
levarmos em consideração que não raramente
genuínos sofredores de epilepsias distintas (por exemplo,
as originárias dos lobos Frontal, Temporal e Epilepsia Mioclônica
Juvenil), bem como pessoas vitimadas por polineuropatias periféricas,
porfiria intermitente aguda, enxaquecas, esclerose múltipla,
miastenia gravis e parkinsonismo, entre outras condições
neurológicas, são rotulados como histéricos
até que um profissional iluminado pense nestas possibilidades
diagnósticas.
O fato
é que repetidos insultos psíquicos podem disparar
e perpetuar crises, sejam elas epiléticas ou não.
Entretanto, o que realmente gostaria de salientar é a possibilidade
de que histeria poderia ser um tipo peculiar de epilepsia, digamos
subclínica. Mais intrigante ainda são as recentes
evidências em favor desta hipótese. Crises desta modalidade
poderiam surgir em decorrências de descargas no sistema límbico
e em alguns outros circuitos cerebrais ainda incógnitos;
de maneira que a fronteira entre ataques "psicogênicos"
e genuínos epiléticos não são tão
claras como se supõe no presente. É melancólico
ver descaso dedicado aos sofredores desses originais ataques em
clínicas epileptológicas.
Enquanto
isso, uma espécie de "pororoca" segue acontecendo
quando histéricos se defrontam na emergência. Neste
embate, invariavelmente o Dr. H. sempre acaba subjugando o paciente
H e devido ao ensino altamente preconceituoso da medicina tradicional,
a hipótese de tratar-se de uma condição cuja
causa não é orgânica, é a senha para
desencadear no médico assistente e seus colaboratores
um rol de desatinos hidrófobos: água destilada ou
soro intramuscular, furosemida endovenosa, amoníaco nasal
e overdoses de diversas drogas sedativas, exemplificam os "tratamentos"
habitualmente ministrados na atualidade. É dramático
constatar que as torturas físicas e psíquicas habitualmente
dispensadas a estes peculiares pacientes podem ser ainda mais hediondas.
Enema associado a imobilização tipo Velpeau - um método
de franca inspiração mengeliana - era recomendado
por alguns médicos famosos até um passado não
muito longínquo.
Finalizando,
diante das últimas evidências científicas, considero
dispensável qualquer sentimento iconoclasta ou bola de cristal,
para prever o óbvio: em breve tempo, todas as pessoas atormentadas
pelo diagnóstico de histeria serão promovidas a doentes
orgânicos, e por conseguinte, poupadas da estúpida
abordagem médica que tem patrocinado o seu aniquilamento
social.
Enxaqueca
A despeito do progresso científico logrado nos últimos
anos, as enxaquecas, tal qual as epilepsias, permanecem envolvidas
por uma bruma misteriosa. Certamente, há entre ambas uma
conexão ainda não devidamente esclarecida. O brilhante
cientista brasileiro, Dr. Aristides Leão, bem que deu uma
enorme contribuição para isso, descrevendo o fenômeno
da depressão alastrante, provável chave para uma definitiva
compreensão. Infelizmente, preconceituosamente nós
médicos, por décadas, ignoramos seu magistral trabalho
experimental. Com a continuidade das investigações,
será possível responder a uma questão intrigante:
as enxaquecas são síndromes epiléticas especiais?
Na
verdade está bem longe de constituir raridade, ver enxaqueca
e epilepsia entrelaçadas em um mesmo indivíduo. Entretanto,
é exageradamente freqüente, ver sofredores de genuína
enxaqueca diagnosticados como portadores de típica epilepsia.
O contrário também é possível; mas,
presumo ser bem menos comum. Muito provavelmente tal confusão
se deve as mencionadas similaridades observadas entre ambas. Todavia,
médicos são habitualmente treinados para reconhecer
adequadamente apenas um dos componentes das enxaquecas: a cefaléia
recidivante. Entretanto, esta condição poderá
ser responsável por generosa sintomatologia neurológica,
raramente considerada apropriadamente. Deste modo, sintomas perfeitamente
explicáveis por esta entidade sui generis são
atribuídos a epilepsia (e vice versa) e a detecção
de anormalidades eletrográficas, um evento comum na população
enxaquecosa, reforça o equívoco diagnóstico.
Considerando sua alta prevalência mundial, é possível
inferir que uma cifra expressiva de seus sofredores está
recebendo inadequado tratamento com drogas anti-epiléticas.
Menos mal que a opção terapêutica tenha sido
por valproato de sódio; uma droga cuja eficácia na
prevenção de ambas, simboliza tão somente mais
um elo na ligação entre as mesmas; porém, muitas
vezes drogas ineficientes e potencialmente tóxicas são
as recomendadas. Apesar das notórias lacunas científicas,
o ensino médico deveria esforçar-se para um enfoque
objetivo da fenomenologia já identificada como de natureza
enxaquecosa.
Epilepsia X doença mental
Tragicamente, por séculos, pessoas vitimadas por epilepsias
foram cuidadas pela psiquiatria ortodoxa, uma face truculenta
e francamente psiquiátrica da nossa profissão. Sob
orientação de Simãos Bacamartes das
mais diversas nacionalidades, o planeta foi minado de verdadeiros
campos de concentração para enfermos mentais. Mal
compreendidas, as epilepsias acabaram arrastadas para o tenebroso
baú da doença mental, estabelecendo-se desta maneira
um desastrado monopólio do seu tratamento por parte desses
profissionais. Em contra partida, eles desenvolveram uma bizarra
cultura sobre epilepsia, legando profundas marcas sociais, facilmente
perceptíveis em qualquer sociedade. Para reavivar sua memória
vejam um dos seus principais legados científicos:
ao longo do último século, uma montoeira de asneiras
foi escrita sobre uma entidade ímpar denominada de personalidade
epilética. Apesar de algumas formas raras de epilepsia
cursarem com alterações específicas da personalidade;
quando tais disfunções são exibidas, na sua
imensa maioria serão secundárias a medicação
empregada. Assim, personalidade barbitúrica, antes que epilética,
seria o melhor diagnóstico para explicar os transtornos de
comportamento típicos, tão comuns nessa população
intoxicada cronicamente pelo uso de fenobarbital como panacéia
anti-epilética, um equívoco praticado até recentemente.
Aliás,
como consultor neurológico, fui testemunha das práticas
horrendas desenvolvidas em um macro hospício da periferia
de Florianópolis, desgraçadamente ainda em atividade,
e posso inferir que métodos idênticos ainda ocorrem
em instituições similares difundidas por todo o Brasil.
Incontáveis sofredores de epilepsia, ou de outras desordens
mentais, brilhantes intelectualmente ou não, foram destruídos
com o silêncio cúmplice da Medicina. Mas finalmente
nos últimos anos a sociedade parece ter despertado para este
descalabro, haja vista a movimentação nela observada
para o desmantelamento destas casas insalubres de triste memória.
Entretanto, o ideal de retroceder no tempo para remediar a abordagem
lastimável de outrora, por ser inviável, deveria nos
fazer vigilantes para impedir a repetição dessa tragédia.
Além disso, esforços deveriam ser empreendidos por
todos aqueles verdadeiramente médicos, independentemente
da sua qualificação, para a liberação
de todos aqueles indivíduos que seguem aprisionados e reféns
do próprio tratamento inadequado, sem qualquer perspectiva
de recuperação.
Crises parciais
Um lapso comum entre médicos é a pouca importância
que dão ao componente parcial/focal das epilepsias. Uma anamnese
deficiente é a responsável por isso, resultando em
classificação inadequada das crises. Isto é,
ataques parciais são frequentemente rotulados como generalizados,
por não serem feitas perguntas simples, porém altamente
esclarecedoras; como por exemplo: você tem ameaça/aviso
da crise. Qual a importância disso? Crises parciais são
a expressão mais comum das epilepsias e exigem sempre um
esclarecimento etiológico.
Dentre
elas um tipo segue sendo largamente negligenciado: ataques psíquicos.
Tais crises constituem as manifestações mais fascinantes
das epilepsias e a despeito de serem pouco relatadas, não
deveriam ser consideradas raridade. Aliás, a história
da humanidade está repleta de episódios sugestivos
de que esta modalidade de crise, juntamente com as do tipo sensoriais
especiais, marcaram a evolução da nossa espécie;
influenciando destinos e, igualmente, gerando desatinos. Certamente
foram responsáveis por fatos e invenções geniais
também. Curiosamente, é possível suspeitar
que diversas religiões influentes e igualmente inúmeras
seitas minoritárias tiveram sua criação embasada
por ataques epiléticos desta natureza. Fugazes imagens fantásticas,
um aspecto comum em muitas delas, contribuíram para a rica
mitologia que lhes oferece sustentação popular (por
favor, exclua deste pensamento, credos modernos de bem nítida
e exclusiva inspiração pecuniária).
Diz
o adágio popular, que a criatura sempre se volta contra
o seu criador; ironicamente elas retribuíram ao seu criador
epilepsia, com a disseminação na sociedade
de sofismas e fantasias discriminatórias sobre esta condição
e seus sofredores, paradoxalmente alimentadas por muitos profissionais
da saúde. Assim, é bastante provável que a
equivocada interpretação religiosa da fenomenologia
epilética tenha originado o brutal preconceito vigente, responsável
pelas graves limitações sociais enfrentadas pelos
seus sofredores. Diante desta realidade, pode ser encarado como
natural a habitual negação desses sintomas durante
as excessivamente dinâmicas consultas médicas
da atualidade. Eles somente aparecerão na sua plenitude quando
é criado um clima de absoluta confiança e cumplicidade
entre paciente e terapeuta. Aqui, mais que nunca, educação
e simpatia são pré-requisitos imprescindíveis
para a obtenção de uma história clínica
realmente esclarecedora.
Por
outro lado, ataques parciais psíquicos geralmente são
acompanhados de uma alteração qualitativa da consciência
e, por conseguinte, vistos no contexto de crises parciais complexas.
Apesar disso, transtornos episódicos da memória, tipo
jamais vu ou déjà vu, extremamente comuns
e quase nunca objetos de consulta médica, deveriam ser classificados
como parciais simples devido à clareza com que seus sofredores
descrevem o evento. Da mesma forma, as crises manifestas por passagens
rápidas de experiências prévias, uma espécie
de flashback cinematográfico. Associados com turvação
da consciência existem uma gama variada de sintomas que embora
não exclusivos de epilepsia são altamente sugestivos
dela, tais como: estados de sonho; prazer ou desprazer extremos;
medo intenso; ataques de raiva ou riso; alucinações
visuais ou auditivas fantásticas; sensação
de despersonalização; etc. Perceba, por favor, que
nem todas estas crises estão associadas com sintomatologia
desagradável; na verdade, algumas delas são responsáveis
por fugazes momentos de felicidade, indescritíveis adequadamente,
por pacientes atemorizados quanto à sua natureza. Infelizmente,
nós médicos, por desvio de formação,
somos treinados para enfocar as doenças e não os doentes;
enfatizar os defeitos e não as virtudes, e, por isso, deixamos
de vislumbrar esse lado fascinante das crises epilépticas.
Cisticercose
Tomografia computadorizada de crânio contribuiu decisivamente
para um reconhecimento da importância de neurocisticercose
(NC) entre nós. NC é a principal causa de epilepsia
no mundo e a percepção tardia da sua gravidade no
Brasil, serviu para ilustrar a fragilidade da nossa medicina preventiva.
Minúsculos doutores, esquivando-se de "fazer o dever
de casa", emprestaram enorme colaboração a essa
peste do subdesenvolvimento. Omissos, esqueceram o exemplo de cidadania
do advogado Monteiro Lobato, que com seu singelo almanaque do "Jeca
Tatú", contribuiu para a erradicação do
"amarelão" no Brasil. Faturando com a desgraça
alheia, ironicamente esqueceram que a doença atingiu e persiste
acometendo pessoas muito próximas de si e, bestialmente,
nada fizeram para um efetivo controle/erradicação
da condição.
Hoje,
solicitamos ressonância magnética para o diagnóstico
etiológico da epilepsia incógnita, desconsiderando
TC como o exame complementar ideal para a sua investigação
inicial. Assim, pessoas vitimadas circulam pelo Brasil e o mundo,
fazendo toda sorte de exames complementares, para finalmente terem
NC como diagnóstico num vulgar exame tomográfico feito
em um fim de mundo qualquer, onde TC está disponível.
Impossível omitir as semelhanças: o equívoco
do EEG confirmando "disritmia cerebral" é análogo
a RM negando NC.
Apesar
de tudo, e notável ver colegas inteligentes e sensatos, lutando
para a implantação de práticas profiláticas
junto a população. Por outro lado, é insultuoso
perceber a posição adotada por alguns pseudo-professores
de neurologia, ávidos em exibir consequências de NC,
ao invés de ensinarem aos seus discípulos como preveni-la.
Pior ainda é observar que disseminam no meio conceitos tipo:
"está aqui, você tem a larva do porco na cabeça";
ou a velha e ultrapassada máxima, "epilepsia secundária
a NC é fácil de tratar, mas difícil de curar"
e assim por diante.
Convicto
de que o Brasil será um dos grandes fornecedores de comida
para o mundo, alimento a expectativa de que um dia cobrem seu real
valor. Na verdade, o interesse internacional pelos produtos das
nossas agro-indústrias aumentaria substancialmente quando
esse flagelo terceiro-mundista for banido destas bandas. Erradicar
cisticercose e suas diferentes apresentações do Brasil
é algo exequível, bastando a decisão política
para seu enfrentamento eficaz. Nossas autoridades deveriam ter em
mente que pelo menos um quarto da população epilética
nacional tem na NC sua origem. Além disso, quadros neurológicos
mais graves não constituem raridade. Desta maneira, podemos
inferir que a soma de recursos despendida para tratar NC é
muitíssimo maior que àquela necessária para
uma efetiva profilaxia. Finalmente, desde que um Estado com economia
fragilizada como Cuba o fez, porque não fazê-lo aqui?
Obviamente não possuímos o altruismo ideológico
que o Estado cubano exibe para com a saúde da sua gente;
entretanto, não deveríamos prescindir da inteligência
e da aritmética elementar, cuja utilização
conduziria facilmente a eleição da prevenção
como a melhor alternativa.
Eletroencefalo...grama
ou grana?
Neste tópico, em primeiríssimo lugar, gostaria
de lhes salientar uma convicção: eletroencefalograma
é um exame complementar cuja natureza dispensaria qualquer
tipo de adjetivação. Obviamente há distintas
formas de obtê-lo; entretanto, é bastante provável
que seu mentor, Hans Berger, deve andar muito furioso na sua sepultura;
pois andam dizendo pelos quatro cantos que o método desenvolvido
por ele é capaz de confirmar ou de descartar a possibilidade
de epilepsia ou de fazer estranhos diagnósticos também.
Por favor, se por acaso o são, esqueçam ser proprietários
de máquinas e leiam bem atentamente o que lhes afirmo, propositadamente
escrito em letras maiúsculas para que tenha maior espaço
nas suas memórias e talvez contribua para a reabilitação
do cidadão teimoso, que insiste em habitar suas entranhas:
ELETROENCEFALOGRAMA, QUANDO ANALISADO ISOLADAMENTE, NÃO DIAGNOSTICA
COISA ALGUMA!
Eletroencefalografia
permanece sendo imprescindível para uma classificação
adequada das epilepsias e também da definição
da área cerebral epileptogênica; algumas vezes, reconheço,
um coadjuvante útil em outros transtornos neurológicos,
mas rigorosamente nada além disso. Aliás, de tanto
ver desgraçados por EEGs inescrupulosos, há alguns
anos, cunhei a expressão eletroencefalograna para
melhor designá-los. Certamente que esta aberração
não é uma exclusividade do nosso país. Mas,
considero perversa fantasia, a pregação para estudantes
ou médicos, de que o método teria capacidade além
das mencionadas. Agravante maior é quando a perversão
do seu uso é absolutamente consciente, expressando pilantragem
explícita; e o famigerado "mapeamento cerebral"
é um bom exemplo disso. Àqueles que deliberadamente
ludibriam a confiança das pessoas anônimas que atendem,
se prevalecendo do fato delas terem sido educadas desde a infância
para acreditarem cegamente na palavra do "curandeiro",
uma palavra final: dinheiro, certamente oferece acesso a prazeres
diversos; mas, quando obtido de maneira eticamente censurável,
fatalmente cobrará juros, correção monetária
e o mais grave, sua honra. E este atributo não tem moeda
que pague. Além disso, este tipo de fortuna, costuma desencadear
cenas bem desagradáveis; sobre sua catacumba, seus descendentes,
a tapa, disputarão seu espólio e aos advogados das
partes, caberá o melhor quinhão. Pense nisso!
Resgatar
o uso sadio da eletroencefalografia deveria ser tarefa de todos
os verdadeiros profissionais beneficiários do método.
Particularmente as sociedades especializadas, deveriam considerar
o quão importante é sua reabilitação
e iniciar a espinhosa; porém inadiável, repressão
a delinquência despudorada responsável pela sua caricaturização
entre nós.
Despreconceituando
A prevalência de epilepsia, como problema de saúde,
é estimada entre 0,5 - 3% da população em geral.
Ela é aparentemente menor nos países escandinavos
e maior nas sociedades ditas terceiro mundistas. No Brasil, há
indícios de que 1 - 2% da população é
acometida por alguma das formas de epilepsia que necessitarão
de assistência médica.
Entretanto,
o leitor deveria considerar que o cérebro, uma máquina
sofisticada, com aproximadamente 15 bilhões de neurônios
conectados e comunicando-se entre si através de estímulos
bioquímicos geradores de potenciais elétricos, está
fadado a apresentar oscilação episódica no
seu funcionamento, não importando quem seja o seu dono nem
tampouco o uso que dele faz. Crises de epilepsia nada mais são
que a expressão deste transtorno elétrico afetando
o córtex cerebral. Por esta razão, é extremamente
freqüente observarmos pessoas absolutamente normais, descrevendo
reais crises de epilepsia com sintomatologia menor (ataques de déjà
vu ou jamais vu, por exemplo) e que, por isso mesmo,
jamais serão objetos de uma consulta médica. Além
disso, deveríamos levar em conta, também, que nem
sempre crises de epilepsia são desagradáveis e que
muitas delas poderão ser prazerosas, havendo uma recusa natural
destas pessoas em buscarem serviços médicos. Igualmente,
muitos sofredores de crises de natureza psíquica, por temor
de terem seus sintomas interpretados como psiquiátricos por
profissionais mal informados ou possessão demoníaca
por líderes religiosos diversos, irão resistir em
relatar seus estranhos sintomas a terceiros.
Na
verdade, há diversas evidências sugestivas de que crises
epilépticas fortuitas serão exteriorizadas por 100%
(cem porcento) dos seres humanos ao longo das suas vidas, não
importando à qual raça, sexo ou qualificação
sócio-econômico-cultural pertençam. Aliás,
inúmeros inexplicáveis sintomas neurológicos
fugazes do cotidiano poderiam ser racionalmente atribuíveis
a crises de epilepsia, ou a transtornos da eletricidade cortical
- se preferirem uma denominação mais simpática.
Infelizmente,
investigadores em cobaias de laboratórios, e médicos,
não focam esses aspectos, resultando numa interpretação
ainda bastante primitiva do que seja epilepsia e suas manifestações;
predominando uma visão calcada em dogmatismos idiotas de
franca inspiração religiosa antes que científica.
A propósito, investigações recentes tem demonstrado
que ataques epiléticos ocorrendo de maneira espontânea
ou induzidos terapeuticamente, protegem contra depressão.
Desta maneira, em contraste com a cultura folclórica vigente
que somente enfatiza os alegados sintomas psicopatológicos
das epilepsias, soa como muito charmosa a hipótese de que
alguns indivíduos possam necessitar de descargas epiléticas
episódicas para manter sua sanidade mental.
Por
outro lado, a humanidade é repleta de indivíduos ególatras
que, estupidamente idealizam serem perfeitos, ignorando que a perfeição
não existe e que todos nós, sem exceção,
possuímos algum defeito, seja ele de fábrica ou adquirido.
Desgraçadamente, muitos deles ostentam títulos universitários,
são professores e até chefes de estado, enfim, muitos
são pessoas importantes na sociedade. Aparentemente sadios
e corretos, estimulam atitudes discriminatórias contra grupos
expressivos da população rotulados como deficientes,
incrementando ainda mais dificuldades existenciais àquelas
pessoas.
Particularmente,
apreciaria muito que reconhecessem a magnitude do fenômeno
epilepsia e suas distintas formas de apresentação,
interrompendo a negativa visão mitológica ou "ratológica"
que disseminam. Admitindo preconceito como o dileto filho bastardo
da mama ignorância e que ele per si é o responsável
por um pesado tributo imposto aqueles que sofrem de epilepsia, uma
redução significativa das limitações
médico-sociais enfrentadas pelas vítimas desta condição
poderia ser vislumbrada com a propagação das informações
aqui veiculadas, e esta meta e esperança foram minha maior
motivação durante a redação deste artigo.
Dr.
Paulo Cesar Trevisol Bittencourt é professor de Neurologia
e presidente do Centro de Estudos do HU/UFSC
(www.neurologia.cjb.net)
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