A
epilepsia no decorrer da história
Associada
a possessões divinas e demoníacas, a doenças
contagiosas ou à loucura, a epilepsia, no decorrer da história,
encontrou diferentes formas de definição, diagnóstico
e tratamento. Assim como a loucura, a epilepsia foi estigmatizada,
imprimindo marcas que persistem até os dias de hoje. Em decorrência
disso, muitos portadores podem ser vítimas do preconceito,
fato que colabora para que numerosas pessoas tornem-se resistentes
a admitir o diagnóstico ou a consentir em iniciar um tratamento
adequado.
Por
falta de informação muitas pessoas ainda hoje recorrem
apenas a religião para "curar-se" da epilepsia,
assim como é frequente que igrejas (veja texto
sobre o assunto da antropóloga Cristina Pozzi Redko) mobilizem
adeptos com promessas de cura de problemas de saúde ou resolução
de problemas financeiros e afetivos.
Para
Renato Marchetti, coordenador do projeto Epilepsia e Psiquiatria
do Instituto de Psiquiatria do Hospital de Clínicas da Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo, a epilepsia de
uma maneira geral sempre teve explicações religiosas
em diferentes culturas e períodos. "Esse tipo de acontecimento
se dá por falta de conhecimento e normalmente ocorre nas
camadas da população que têm menos acesso à
informação", afirma ele.
Segundo
Marcelo Heitor Ferreira Mendes, coordenador da Unidade de Epilepsia
de Adultos e Crianças da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (Uerj), é necessário que existam verbas públicas
direcionadas para a questão da epilepsia, de forma que os
tratamentos atendam um maior número de pessoas e os mitos
e preconceitos que cercam a doença desapareçam. "Essas
verbas deveriam ser direcionadas para serviços de atendimento
específicos, para campanhas educacionais que informem a população
com relação ao tratamento dos doentes e prevenção,
para os Hospitais Universitários que têm serviços
nessa área, e para formação de pessoal qualificado
para atuar no cotidiano desses hospitais", afirma Mendes.
As
crenças em torno da epilepsia: necessidade de sair das sombras
De acordo com informações do Museu
Alemão de Epilepsia de Kork, a epilepsia recebeu diferentes
nomes no decorrer da história, os quais permitem conhecer
o contexto médico, social e cultural em diferentes períodos.
Além disso, tal diversidade, segundo afirma H. Shenble no
texto Krankheit
der ungezählten Namen, traduz o interesse que os homens
sempre tiveram sobre a epilepsia. As crises dos portadores de epilepsia
provocavam medo e espanto naqueles que as presenciavam.
De
acordo com Elza Márcia Yacubian, médica do departamento
de Neurologia e Neurocirurgia da Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp), na antigüidade a epilepsia era associada à
forças sobrenaturais, à possessão espiritual
ou demoníaca. Crenças como essas estiveram presentes
na Babilônia (2500 a 600 aC), entre os egípcios e em
determinados períodos na Grécia. Foi entre os gregos
que a epilepsia começou a ser chamada de "doença
sagrada". A origem desse nome, segundo Yacubian, tem várias
hipóteses, dentre elas, a de que representaria a possessão
por uma divindade.
Segundo
Marly de Albuquerque, presidente da Associação Brasileira
de Epilepsia, na Grécia Antiga a epilepsia era tida como
uma possessão divina e os portadores eram colocados em templos,
vistos como sacerdotes. "Os gregos acreditavam que quando uma
pessoa tinha uma convulsão ela era tocada por deuses. Na
Idade Média, isso mudou e foi o reverso da medalha. Se na
Grécia a epilepsia era chamada de morbus sacer (doença
sagrada), na Idade Média era o morbus demoniacus (doença
do demônio). Talvez até por isso a gente tenha essa
conotação meio religiosa entre camadas mais populares,
que acreditam que a epilepsia seja causada por problemas espirituais",
afirma Marly de Albuquerque.
Foi
Hipócrates (em torno de 460-375aC) - talvez influenciado
por Atreya, pai da medicina hindu (e que viveu 500 anos antes),
quem passou a afirmar que a epilepsia não tinha uma origem
divina, sagrada ou demoníaca, mas que o cérebro era
responsável por essa doença. E apenas muitos anos
depois, Galeno (129 - em torno de 200 dC) fez a primeira classificação
de diferentes formas da doença. Apesar das afirmações
de Hipócrates e Galeno, as crenças em torno da epilepsia
como possessão, maldição ou castigo perpetuaram
por muito tempo.
Yacubian
afirma ainda que, na Roma antiga, essas crenças mesclavam-se
com a idéia de que a epilepsia era uma doença contagiosa
e, a pessoa portadora, impura. Na Europa medieval, essa idéia
continuou apesar da "doença sagrada" passar a ser
conhecida como "doença das quedas". As pessoas
portadoras da epilepsia eram segregadas da igreja, não podendo
paticipar da eucaristia para que não contamissem ou profanassem
o copo e o prato da comunhão. "A doença era vista
como uma maldição, algo que só se poderia desejar
ao pior inimigo. Martinho Lutero rogava à Igreja Católica:
praga, sífilis, epilepsia, escorbuto, lepra e carbúnculo
e denomiava a epilepsia como morbus demoniacus", escreve
Elza Márcia Yacubian em seu livro Epilepsia: da Antiguidade
ao segundo milênio saindo das sombras. Ela afirma também
que, nesse período, alguns médicos suspeitavam que
a contaminação se dava pela respiração
e essa crença prevaleceu ainda no início do século
XX, quando se preconizou a vacinação para erradicação
de um microorganismo que seria o agente da epilepsia, Bacillus
epilepticus.
Foi
no século XVIII que se iniciou a separação
entre psiquiatria e neurologia. Essa separação se
efetivou no século XIX, com a emergência da neurologia
como uma disciplina distinta e com a afirmação de
que a epilepsia era um distúrbio cerebral. Nesse período,
Samuel-Auguste Tissot (1728-1797) escreve o Tratado da Epilepsia,
no qual descrevia diferentes tipos de crises e síndromes.
De
acordo com o Museu de Epilepsia de Kork, os centros especializados
em epilepsia na Alemanha, por exemplo, apareceram somente a partir
da metade do século XIX (1855). No entanto, quando se tornava
impossível para a família manter os cuidados com o
enfermo, seja pela gravidade, a freqüência ou as patologias
psíquicas associadas, os portadores eram enviados para prisões,
asilos ou leprosários.
Marly
de Albuquerque afirma que houve, historicamente, uma associação
da epilepsia e da loucura, mesmo quando não havia um quadro
psiquiátrico associado à doença. "Muitos
pacientes epilépticos foram internados em sanatórios
para doentes mentais. Mas do ponto de vista médico, a epilepsia
e as psicoses são quadros completamente diferentes. É
claro que uma pessoa pode ter epilepsia e psicose, ou ter psicose
e passar a ter epilepsia, porque são quadros muito comuns
na população, mas não há uma associação
necessária", afirma ela.
Para
Paulo César Trevisol-Bittencourt, do Departamento de Neurologia
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a epilepsia é
tão confundida com doença mental devido, em primeiro
lugar, ao desconhecimento da população sobre a doença.
"Tragicamente, por séculos, pessoas vitimadas por epilepsias
foram cuidadas pela psiquiatria ortodoxa, uma face truculenta da
medicina". Trevisol-Bittencourt afirma ter sido testemunha,
como consultor neurológico, de práticas não
adequadas para o tratamento de portadores de epilepsia em um hospício
da periferia de Florianópolis. "Infelizmente esse hospício
ainda está em atividade e posso inferir que métodos
idênticos ainda ocorrem em instituições similares
no Brasil. Incontáveis sofredores de epilepsia, ou de outras
desordens mentais, foram destruídos com o silêncio
cúmplice da medicina. Nos últimos anos, a sociedade
parece ter despertado para este descalabro, haja vista a movimentação
para o desmantelamento dessas casas insalubres de triste memória.
Esforços deveriam ser empreendidos por todos aqueles verdadeiramente
médicos, independentemente da sua qualificação,
para a liberação de todos aqueles indivíduos
que seguem aprisionados e reféns do próprio tratamento
inadequado, sem qualquer perspectiva de recuperação",
afirma Trevisol-Bittencourt. (veja reportagem
sobre os antigos tratamentos psiquiátricos na ComCiência)
Segundo
Renato Marchetti, existe uma parcela de pacientes com epilepsia
que também tem quadros psiquiátricos. Ele reafirma
que não se pode considerar a epilepsia em si como um distúrbio
psiquiátrico mas, por outro lado, alerta para o fato de que
não se pode, ao fazer essa distinção, estigmatizar
as doenças mentais ou abandonar a idéia de que há
casos em que existe uma associação. "Não
se pode separar epilepsia e doença mental a ponto de não
se enxergar a relação que às vezes se estabelece.
Quando comparamos a população de portadores de epilepsia
aos não portadores, os primeiros têm mais distúrbios
psiquiátricos que o segundo grupo, e os médicos não
podem deixar de enxergar as doenças mentais que acompanham
a epilepsia. Muitos pacientes epilépticos estão gravemente
deprimidos e não recebem medicamento adequado para tratar
também a depressão. Entre 5 e 10% dos pacientes com
epilepsia desenvolvem quadros psicóticos e podem ficar sem
tratamento se apenas nos preocuparmos em tratar as crises dos pacientes
e não os outros problemas sociais, psicológicos e
os transtornos mentais associados", argumenta Renato Marchetti.
(MK)
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