Mecanismos
psicológicos e o estigma na epilepsia
Elisabete
Abib Pedroso de Souza,
Paula Teixeira Fernandes,
Priscila Camile Barione Salgado
e Fernanda Doretto
O
diagnóstico da epilepsia como uma condição
neurológica crônica traz uma série de mudanças
na família e no paciente e afeta comportamento e bem estar.
Estudar o impacto que esta condição acarreta é
focalizar em problemas outros que não só as crises,
que são desencadeadas já no início da doença.
Ter epilepsia ativa todo um sistema de crenças ao nível
pessoal e social que modifica o comportamento. Além disso,
envolve expectativas e percepções que são
categorias intrapsíquicas individuais relacionadas com
a história de vida de cada um, afetando as pessoas de forma
diferente (Souza, 2001).
O foco
nos problemas psicológicos e outros fatores que não
só os sintomas físicos considera os efeitos importantes
do estigma, desemprego, problemas no casamento, família,
dificuldades para dirigir, além dos efeitos comportamentais
e cognitivos das drogas que afetam a vida das pessoas com epilepsia
(Baker, 1995).
Medidas
de qualidade de vida quantificam, numa perspectiva subjetiva, as
limitações impostas ao indivíduo como resultado
da epilepsia, das reações discriminativas da sociedade
aos efeitos da medicação. Falam de problemas da vivência
da condição epiléptica e da experiência
do sujeito.
Entender
o que acontece a partir do início desta condição
permite estabelecer objetivos educacionais que possibilitem a prevenção
primária e intervenção terapêutica mais
abrangente e adequada àquele que, como qualquer pessoa, tem
expectativas e objetivos de vida e merece almejar satisfação
e bem estar.
A
experiência da doença
O que acontece quando as pessoas percebem que há algo errado
com elas? O que isto significa? Que explicações dão
às sensações estranhas e novas que estão
acontecendo no próprio corpo? Quais crenças, expectativas,
medos e fantasias são ativados? Como encaram buscar ajuda
e lidar com o rótulo médico?
Nesta
perspectiva, estudar a experiência do adoecer é avaliar
um complexo mundo de significados, é considerar no relato
do doente seus sentimentos, cognições e comportamentos
além da descrição dos sintomas físicos.
Na
epilepsia, há uma longa história de mudanças
de definições e significados que afetam como as pessoas
experienciam e percebem as reações dos outros. Demônios
ou deuses, espíritos sobrenaturais, humor e desequilíbrio
mental e, mais recentemente, alterações elétricas
no funcionamento do cérebro foram determinando um sentido,
idéias e crenças pessoais e sociais que são
estimuladas já no diagnóstico e influenciam profundamente
a experiência da epilepsia. O significado definido à
condição pelo meio social do paciente, estressa mais
do que as próprias crises (Suurmeijer, 1995; Suurmeijer et
al, 2001).
Hoje,
a epilepsia é completamente medicalizada. É uma desordem
médica que deve ser tratada com intervenção
médica. Entretanto, a história da epilepsia é
uma história de estigma. Os resíduos sociais das concepções
negativas e pejorativas permanecem como problemas para os portadores
de epilepsia (Schneider & Conrad, 1983).
Pais
como mediadores da experiência
A epilepsia é uma doença neurológica crônica
muito comum que acomete principalmente as crianças, revelando
dificuldades psicossociais que estão associadas ao estigma
e que influenciam o ajustamento social e a qualidade de vida da
criança e sua família (Fernandes & Souza, 2001;
Jacoby, 1992).
Quando
o médico transmite a informação de que a criança
é portadora de epilepsia, altera seu status social, causando
mais preocupação e stress do que as próprias
crises (Souza et al., 1998; Goldstein et al., 1990;
Scambler & Hopkins, 1986).
Na
epilepsia infantil, o estigma inicia-se com o comportamento dos
pais em relação ao diagnóstico. A maneira que
os pais reagem forma a base de como as crianças vão
interpretar a epilepsia depois e se relacionar com outras pessoas
(Souza et al, 1998).
O diagnóstico
da epilepsia, gera nos pais uma série de sentimentos, que
quase sempre incluem: medo, ira, culpa, tristeza, ansiedade, confusão,
negação, preocupação (Lewis et al.,
1991). Estes sentimentos levam os pais a se comportarem normalmente
de modo inapropriado, exibindo superproteção, permissividade,
rejeição e baixa expectativa em relação
a seus filhos. Estes são tratados como doentes, porque os
pais acreditam que qualquer atividade pode precipitar uma crise
(Thompson & Upton, 1994). Muitas vezes, o excesso de cuidados
é tanto que os pais acabam se esquecendo dos outros membros
da família, o que gera conflitos e stress familiar.
A partir
dessas reações, as crianças aprendem rapidamente
que há algo de errado com elas e, conseqüentemente,
começam a apresentar comportamentos inadequados de dependência,
insegurança, irritabilidade e imaturidade. Os pais, dessa
forma, treinam seus filhos a se sentirem apreensivos e preconceituosos
com relação à epilepsia, perpetuando o estigma.
Neste contexto, a família começa a ter menos proximidade
e mais restrições de comportamentos, de atividades
e de comunicação (Fernandes & Souza, 2001; Thompson
& Upton, 1994).
Diante
disso, os pais de crianças com epilepsia exibem comportamentos
que dependem não só dos fatores relacionados à
própria epilepsia (tipo de crise, severidade da epilepsia,
presença de outras desordens, efeitos medicamentosos), mas
principalmente dos fatores psico-sócio-culturais: preconceito,
crenças, aspectos familiares e sociais e características
individuais da criança (Souza et al., 2000; Hoare
& Kerley, 1991).
Vários
estudos confirmam que a situação familiar é
um dos fatores preditivos mais importantes dos problemas psicossociais
e da baixa qualidade de vida nas crianças com doenças
crônicas (Fernandes & Souza, 2001; Fejerman & Caraballo,
2000; Trimble & Dodson, 1994). O estigma da epilepsia já
na infância é um peso maior que as limitações
físicas impostas pelas crises ou pelo tratamento (Collings,
1990; Mclin & Boer, 1995).
Quando
se identifica precocemente essa variável, é possível
atuar de modo mais positivo na dinâmica familiar, controlando
o ajustamento da criança e da família à epilepsia
(Fernandes & Souza, 1999).
O
impacto do estigma no adolescente
A adolescência tem sido considerada um período psicologicamente
complexo onde ocorrem várias mudanças, tanto físicas
como sociais, psicológicas e cognitivas, sendo também
um período com maiores dificuldades de desenvolvimento do
que anos anteriores (Mussen et al, 1995). Alguns fatores
típicos da adolescência, parecem ser acentuados e até
agravados quando associados a uma doença crônica como
a epilepsia.
Em
qualquer idade é provável aparecerem incertezas em
relação ao prognóstico de uma doença
crônica, mas especialmente para o adolescente, pois há
o desejo de independência e autonomia e as relações
estão começando a ser redefinidas.
As
conseqüências sócio-psicológicas são
grandes nos adolescentes com uma doença crônica: preocupações
com os estudos, perspectivas futuras, efeitos colaterais das drogas
anti-epilépticas, possibilidade de dirigir, consumo de álcool,
sexualidade, dúvidas em relação ao tratamento
cirúrgico, assim como restrições de lazer.
Adolescentes
com epilepsia são muitas vezes estigmatizados. Muitas são
as hipóteses para essa estigmatização, como
o medo de uma crise ocorrer a qualquer momento e em publico, e o
estado amedrontador de perder o controle do corpo e rejeição
social (Viberg et al, 1987).
A psicologia
do adolescente vive mediada pela aparição traumática
da necessidade de afirmar uma identidade e uma independência.
Esta situação choca-se frontalmente com as limitações
que a epilepsia impõe. Tanto a auto-estima como a valorização
por parte dos companheiros pode ser afetada pelos condicionamentos
sociais, como resposta à epilepsia (Artigas, 1999). O estigma,
o preconceito e a vergonha das crises levam ao isolamento, limitando
cada vez mais as oportunidades de crescimento pessoal (Souza et
al, 2000a).
As
concepções populares da epilepsia são especialmente
negativas e a pessoa com epilepsia na maioria das vezes as legitima
(Souza et al, 1998). Os efeitos do prejuízo são
mediados por características individuais e sociais relacionadas
à percepção de si ou de sua condição
(Ryan et al., 1980).
A Qualidade de Vida do adulto com epilepsia
Quando a epilepsia acontece na vida adulta, as pessoas estão
estabilizadas em suas profissões e estilo de vida e a ocorrência
de crises epilépticas tem grandes implicações
no emprego e relações sociais (Salgado & Souza,
2002), afetando relacionamentos afetivo-sexuais (Souza et al,
2000b) além de causar um stress financeiro, alterar os papéis
sociais com conseqüentes alterações emocionais.
A alta
taxa de desemprego e subemprego parece contingente às discriminações
que as pessoas com epilepsia tendem a aceitar como reais, porque
elas próprias aprenderam a se sentir estigmatizadas. Sentir-se
estigmatizada é desvantajoso e isolar-se reduz o risco de
lidar com discriminação.
Baixos
índices de casamento podem ser explicados por limitado contato
social, evitação de contatos mais íntimos com
medo de ser rejeitado, baixa auto-estima e problemas associados
à sexualidade (Morrell, 1991). A baixa auto-estima no adulto
pode ser resultado da percepção do estigma e das dificuldades
no trabalho e nos relacionamentos.
Um
distúrbio crônico se traduz num processo contínuo
de mudanças e ajustamentos que depende de vários fatores
mais ligados ao sujeito do que ligados à doença ela
própria como idade de início, duração,
severidade (Salgado & Souza, 2001).
São
as avaliações afetivo-cognitivas subjetivas que controlam
como os portadores de epilepsia sentem o impacto da doença
no dia a dia. Vários fatores influenciam a maneira do indivíduo
interpretar as situações da vida e a doença
em particular e estão ligadas às características
de personalidade e história de vida individuais, níveis
de expectativas, estratégias de controle da doença
e de relacionamentos, avaliação de auto-eficiência
e auto-conceito bem como a percepção se possui ou
não suporte social.
O indivíduo
se vê doente avaliando os sinais da doença. O portador
de epilepsia tem a percepção de sua doença
através de suas crises. Quando elas por alguma razão
diminuem de intensidade ou freqüência, o indivíduo
pode sentir que está controlando sua doença, mesmo
que sob a perspectiva médica não seja considerado
um paciente controlado. Pode também acontecer que mesmo que
apresente esporadicamente crises, o indivíduo se sinta bastante
ameaçado pelo descontrole das mesmas, pois estas acontecem
em situações de embaraço e vergonha.
Há
uma diferença entre freqüência de crises (número
real de crises expresso em dias, meses e ano, segundo avaliação
médica) e percepção de controle de crises (avaliação
subjetiva a respeito de como interpreta o controle das mesmas) (Souza,
2001).
A frequência
de crises tem o significado que a pessoa der. A auto-avaliação
do que significa ser doente, ter crises e fazer uso de drogas e
de quanto percebe suas crises como controladas ou não, são
parâmetros para suas respostas de bem estar (Salgado &
Souza, 2001).
As interpretações das situações como
estressantes são extremamente individualizadas. Pessoas com
epilepsia vivem comumente situações que são
consideradas estressantes. O inesperado das crises, a falta de controle
sobre seu corpo, as reações estigmatizantes podem
levar a crenças irracionais e sentimentos de insegurança
e anormalidade. Estes sentimentos foram identificados por Souza
et al (2000b).
A maneira
de interpretar o controle de sua doença influencia a formação
de um lócus de controle interno ou externo. É freqüente
na epilepsia, como em qualquer doença crônica, o paciente
desenvolver um lócus de controle externo porque acredita
que tem pouco controle de sua doença e generaliza esta falta
de controle para todos os eventos da vida.
Lócus
de controle e percepção de controle de crises são
importantes controladores de bem estar e qualidade de vida (Salgado
& Souza, 2001) .
O impacto
que a epilepsia causa nas pessoas vai além da experiência
com as próprias crises; inclui os caminhos pelos quais as
pessoas pensam e sentem sobre si mesmas e a própria história
de vida.
O senso
de vergonha e o medo do estigma (estigma percebido) associado ao
"ser uma pessoa com epilepsia" precede até qualquer
experiência real de discriminação (estigma real)
(Scambler & Hopkins, 1990). É preciso dar atenção
para a auto-rotulação como problema de fato. Trabalhar
com o significado é central na identificação
dos mecanismos psicológicos que a pessoa utiliza para lidar
com a doença. Mesmo que a pessoa nunca enfrente um estigma
real, o estigma introjetado pode ser extremamente forte e impedir
um ajustamento satisfatório porque as percepções
pessoais ou sociais são incorretas.
O estigma
afeta a saúde de maneira geral, interferindo nos aspectos
psicológicos e no bem-estar das pessoas.
Conclusão
O objetivo da educação em saúde é a
mudança de comportamento. A meta é desenvolver estratégias
que levem a um estilo de vida saudável, que reduzam as crises
e problemas associados, bem como interpretar e agir adequadamente
no social, minimizando a força do estigma.
A monitoração
dos resultados comportamentais deve ser periódica em cada
avaliação médica, não somente do aspecto
clínico mas dos ganhos na qualidade de vida, nas diferentes
etapas do processo da doença.
Elisabete
Abib Pedroso de Souza é Prof. Dr. Departamento de Neurologia
FCM Unicamp- Responsável pelo Laboratório de Qualidade
de Vida em Neurologia.
Paula Teixeira Fernandes é Doutoranda, Pós-Graduação
em Ciências Médicas FCM Unicamp
Priscila Camile Barione Salgado é Mestranda, Pós-Graduação
em Ciências Médicas FCM Unicamp
Fernanda Doretto é Mestranda , Pós-Graduação
em Ciências Médicas FCM Unicamp.
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