Epilepsia e educação: prevenção e
formação ética
Ulisses
F. Araújo
Gostaria
de iniciar este artigo relatando uma situação experienciada
por uma professora de ensino fundamental de uma escola pública
na cidade de Campinas. Acredito que a cena descrita poderá
ajudar na discussão que faremos posteriormente sobre epilepsia,
educação e algumas propostas para se abordar tais
temáticas no cotidiano das escolas.
"A
turma era de quarta série e a professora Dirce estava percorrendo
os grupos que faziam trabalhos sobre a independência do Brasil.
De repente, ouviu-se o barulho forte de uma carteira e livros caindo
no chão. Todos olharam para o local e logo perceberam que
Marli, uma aluna da classe, estava ao solo se contorcendo, tremendo
e se debatendo. Foi uma gritaria geral!!! A professora ficou paralisada;
alguns alunos começaram a chorar; alguém saiu correndo
para a Diretoria para pedir ajuda; outros se aproximaram de Marli
tentando segurá-la. Os comentários e sugestões
eram os mais diversos: uns dizendo que deveriam desenrolar a língua
de Marli, outros dizendo que deveriam jogar água no seu rosto;
alguém disse que não deveriam encostar na "baba"
que saia de sua boca. Depois de alguns poucos minutos, Marli começou
a melhorar e se recuperar dos efeitos da crise epiléptica
que havia sofrido. Só então a professora Dirce venceu
seu quadro de paralisia e meio que sem saber o que fazer foi afastando
as crianças, se aproximou de Marli e a levou para a Diretoria.
Ninguém mais conseguiu assistir aulas naquele dia, e a notícia
rapidamente espalhou-se por toda a escola.
A
história, porém, não terminou por aí
e suas conseqüências estenderam-se por muito tempo! A
professora não sabia o que fazer e decidiu ignorar o que
havia acontecido, nunca mais tocando no assunto. O mais grave, porém,
foi a discriminação que passou a sofrer Marli, na
sua turma e na escola. Além de ter perdido algumas amigas,
cujas mães proibiram que brincassem com ela ou se sentassem
a seu lado na classe, ela passou a ser alvo de chacotas, brincadeiras
e teorias variadas que as crianças traziam de casa para explicar
sua situação. Alguns diziam que ela havia sido tomada
por demônios; outros, que ela era louca; ou que ela estava
usando drogas escondido; e ainda, que era deficiente mental.
Infelizmente,
o final desta história terminou com Marli, sentindo-se discriminada
pelos colegas e acreditando nas teorias que lhe apresentavam para
explicar o que tinha, decidindo abandonar a escola e não
mais estudar".
A cena
acima descrita, ao contrário do que muitos podem pensar,
não é rara de acontecer nas escolas brasileiras. Dificilmente
um professor com alguns anos de profissão não experienciou
casos semelhantes nas escolas em que trabalha. Embora atualmente
exista maior consciência por parte da comunidade sobre a epilepsia,
suas causas, as formas de tratamento e as conseqüências
para os portadores deste tipo de enfermidade continuam devastadoras
para suas vidas pessoal e social. Principalmente no caso de crianças.
A estigmatização a que são submetidas, e até
mesmo o preconceito que sofrem, costumam marcar profundamente suas
vidas.
A situação
relatada traz uma abertura para discutirmos o papel da escola e
de seus profissionais no enfrentamento da questão, e permitirá
apontarmos alguns caminhos para a articulação de temáticas
relacionadas à ética e à saúde no cotidiano
de nossas escolas, públicas e privadas.
O
campo educacional
Em minha opinião, os dois objetivos centrais da educação,
os dois eixos indissociáveis em torno dos quais giram, ou
deveriam girar, as propostas educacionais são a instrução
e a formação ética das futuras gerações.
O primeiro
eixo, a instrução, trata daqueles conhecimentos construídos
historicamente pela humanidade e que cada cultura decide transmitir
às futuras gerações. Assim, cada cultura estrutura
a educação de seus alunos e suas alunas em torno da
transmissão de determinados conteúdos relacionados
a áreas disciplinares como a matemática, a língua,
a história, as ciências, a educação física,
as artes, etc. O segundo eixo trata da formação do
cidadão e da cidadã, da busca pelo desenvolvimento
de alguns aspectos que dêem aos jovens e às crianças
as condições físicas, psíquicas, cognitivas
e culturais necessárias para poderem exercer e participar
efetivamente da vida política e pública da sociedade,
de forma crítica e autônoma.
Todas
as escolas que conheço, públicas e privadas, incluem
em seus projetos político-pedagógicos o objetivo de
trabalhar esses dois princípios. Todas dizem que pretendem
instruir e formar os futuros cidadãos e cidadãs. Minha
experiência profissional mostra, porém, que este segundo
aspecto fica relegado a segundo plano. As escolas têm se preocupado,
objetivamente, apenas em instruir.
Procurando
romper com este quadro, penso que a introdução de
temáticas relacionadas à saúde podem trazer
avanços na construção da cidadania, se devidamente
inseridos no processo educativo de formação
e instrução das futuras gerações.
No caso específico da epilepsia, podem e devem ser objeto
de projetos educacionais que permitem o trabalho tanto no âmbito
dos conhecimentos relacionados ao campo das ciências e da
saúde, quanto no campo ético, abordando as diferenças
humanas e o preconceito vivido pelas pessoas que sofrem de epilepsia.
Uma
dúvida que costuma despontar entre os educadores conscientes
da importância da inserção de temáticas
relacionadas à ética e à saúde no ensino
regular diz respeito ao modo como isso deve se dar. Para os profissionais
da educação que acreditam nesses princípios,
o grande desafio é conceber caminhos que permitam a articulação
desses campos de conhecimento no interior das escolas, buscando
não fragmentá-los.
Não
sou partidário da proposta de que tal inserção
deva ocorrer por meio de disciplinas específicas de ética
e de saúde, uma vez que continuariam a ser percebidas de
forma fragmentada, sem relação direta com os demais
conhecimentos científicos abordados na escola e com os aspectos
da vida cotidiana dos alunos e das alunas.
Defendo,
outrossim, a proposta de se incorporarem tais temáticas na
estrutura curricular das escolas de maneira transversal (ver
Araújo & Aquino, Os direitos humanos na sala de aula:
a ética como tema transversal, Ed. Moderna, 2001), de modo
que perpassem os conteúdos tradicionais. Diferentemente do
ensino tradicional, que enfoca apenas as disciplinas científicas,
essa proposta apoia-se na premissa de que a participação
da educação escolar na construção da
democracia e da cidadania deve dar-se enfocando conteúdos
estreitamente vinculados ao cotidiano, às preocupações
sociais e aos interesses da maioria da população.
Com
o intuito de concretizar tal proposta, faz-se necessário
integrar interdisciplinarmente os conteúdos tradicionais
e os chamados temas transversais, como a ética e a saúde.
Ou seja, é imprescindível reconhecer que a transversalidade
só faz sentido se atrelada a uma concepção
interdisciplinar de conhecimento. Dessa maneira, as temáticas
relacionadas à ética, como as discussões sobre
discriminação, estigmatização e preconceitos,
podem tornar-se a preocupação central da proposta
curricular das escolas, em torno das quais devem orbitar as demais
temáticas tradicionais e as outras transversais. Isso significa
que os professores dos conteúdos tradicionais da escola,
como os de Biologia, Ciências, Matemática, Língua,
Química e Física, devem estruturar suas aulas contextualizando
seu trabalho em projetos interdisciplinares que contemplem temáticas
chamadas de transversais, relacionadas à saúde
e à ética.
Esses
princípios, inclusive, estão na base conceitual das
recém-aprovadas Diretrizes Curriculares do Ensino Médio
e dos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental,
aprovados pelo Conselho Nacional de Educação. Tais
diretrizes curriculares já encontram-se em vigor no Brasil,
o que faz com que sua implementação receba apoio do
Estado e passe a ser objeto de desenvolvimento de políticas
públicas nessa direção.
Assim,
a legislação educacional brasileira incorporou uma
concepção que abre possibilidades de um projeto educativo
para nossa sociedade em que situações como as descritas
no relato acima podem servir de referência tanto para a instrução
de conteúdos científicos relacionados à epilepsia,
suas causas e tratamentos; quanto pode auxiliar na diminuição
dos estigmas e preconceitos que sofrem seus portadores, contribuindo
para que essas pessoas tenham uma melhor qualidade de vida. Enfim,
contribui para a construção de uma sociedade solidária,
justa e mais aberta para as diferenças individuais.
O
projeto Epilepsia fora das sombras nas redes de ensino
Trabalhar tal concepção educacional nas escolas é
um dos objetivos do projeto Epilepsia fora das sombras. Em
fase de implementação nas cidades de Campinas e São
José do Rio Preto, no Estado de São Paulo, sob a chancela
da Organização Mundial de Saúde, o projeto
tem como objetivo principal gerar procedimentos que aprimorem a
identificação e o tratamento de pessoas com epilepsia,
em parceria entre as universidades públicas, os sistemas
públicos de saúde e as comunidades-alvo do projeto.
Dele participam as prefeituras das cidades envolvidas e pesquisadores
da Universidade Estadual de Campinas e da Universidade Estadual
Paulista.
Um
dos aspectos previstos para ser abordado no projeto é o desenvolvimento
de ações junto às escolas públicas e
privadas de Campinas e São José do Rio Preto. Tal
iniciativa tem, dentre seus objetivos, capacitar os profissionais
da área de educação a lidar com as temáticas
relacionadas à epilepsia. Além disso, pretende-se
atingir toda a comunidade a partir do pressuposto de que as famílias
mantêm uma relação próxima com as escolas,
onde seus filhos estudam. Assim, a intenção é
prevenir e educar os profissionais da educação para
que situações como as relatadas neste artigo não
tenham o desfecho vivido por Marli.
Nesse
sentido, o trabalho educacional almeja atuar sobre duas perspectivas
distintas e complementares: a) o ensino sobre a epilepsia, sua identificação,
características, causas e tratamentos possíveis; b)
a formação ética da comunidade escolar, visando
desmistificar as atribuições sobrenaturais de manifestação,
assim como promover a redução do estigma, do preconceito
e da discriminação decorrentes da enfermidade.
Pensamos
que um docente capacitado e consciente do que é a epilepsia
e como se manifesta não terá comportamento semelhante
ao da professora Dirce. Ela, além de ficar paralisada no
momento da crise, decidiu ignorar o caso posteriormente por não
saber como agir, contribuindo para que a aluna Marli sofresse discriminação
e preconceito por parte de seus colegas. Se além de conhecer
cientificamente a epilepsia os docentes puderem trabalhar em sala
de aula tais conhecimentos científicos, e também os
de ética, espera-se que seus alunos e suas alunas possam
levar tais conhecimentos a suas famílias, assim como construir
valores e virtudes morais de respeito e de generosidade que contribuirão
para a redução de casos como os experienciados pela
aluna Marli.
Intencionamos
construir com os profissionais da educação e da saúde
envolvidos no projeto, práticas educativas coerentes com
os pressupostos de interdisciplinaridade e transversalidade apontados
anteriormente. Este é um dos caminhos para a construção
de uma sociedade mais bem informada e bem preparada para lidar com
as diferenças e com o preconceito para com pacientes que
sofrem de epilepsia.
Ulisses
F. Araújo é professor da Faculdade de Educação
da Unicamp.
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