Modelos experimentais em epilepsias
Claudio
Queiroz
João Leite
Luiz Eugênio Mello
As
síndromes epilépticas são afecções
do sistema nervoso central, sendo caracterizadas por crises recorrentes
e espontâneas, decorrentes de descargas anormais e desordenadas
de células nervosas. A investigação científica
moderna sobre o tema consolidou-se durante a década de 1930,
após o desenvolvimento do registro eletroencefalográfico
(EEG) por Hans Berger (Delgado-Escueta e cols., 1986). Nos anos
que se seguiram, os registros EEG realizados por muitos cientistas,
dentre eles o próprio Berger, Lennox, Gibbs, Penfield, Jasper
e outros, confirmaram a natureza das crises epilépticas como
uma atividade paroxística e anormal dos neurônios,
como havia afirmado John Hughlings Jackson 70 anos antes.
Apesar
da utilização do método científico para
a elucidação deste fenômeno e dos importantes
avanços na área, obtidos nos últimos 30 anos,
aproximadamente 50 milhões de pessoas no mundo têm
epilepsia refratária aos atuais tratamentos medicamentosos
(Porter e Rogawski, 1992). A importância médica desta
patologia acentua-se ainda mais pelo fato de que ela tende a durar
por toda a vida, podendo acarretar profundas conseqüências
psicopatológicas. Além disso, sua relevância
humana é grande em função de preconceito contra
o paciente com epilepsia e das repercussões econômicas,
sociais e legais decorrentes deste preconceito.
Em
uma tentativa de melhorar os conhecimentos acerca da epilepsia no
ser humano, as pesquisas passaram também a se desenvolver
em animais de laboratório. A relevância de um modelo
experimental é determinada pelo grau em que o modelo serve
como testemunha do fenômeno natural. Apesar do freqüente
aparecimento de diferentes modelos experimentais, poucos são
aqueles que resistem a um exame rigoroso e à prova do tempo.
Isso é esperado, pois o modelo experimental não passa
de um modelo, que mimetiza algumas das características desta
ou daquela forma de epilepsia.
Com
o passar do tempo, os modelos que mais se assemelham com a patologia
humana ou que guardam estreitas relações com esta
permanecerão, em detrimento dos demais. Nesse sentido, torna-se
fundamental a diversificação dos modelos experimentais
gerando distintos pontos de vista e permitindo uma compreensão
mais holística dos fenômenos que caracterizam as epilepsias.
Finalmente, para que um modelo experimental seja classificado como
um modelo de epilepsia ele deve preencher os seguintes requisitos:
demonstrar a presença de atividade epileptiforme nos registros
eletroencefalográficos e clinicamente apresentar uma atividade
semelhante àquelas observadas durante uma crise epiléptica.
A classificação
dos modelos experimentais de epilepsias transformou-se drasticamente
nos últimos 30 anos. Um dos catalisadores dessa mudança
certamente foi o rápido desenvolvimento da genética
molecular, que modificou a visão científica a respeito
das relações entre meio ambiente e código genético.
Anteriormente,
os modelos foram classificados como: genéticos, onde
o aparecimento das crises epilépticas espontâneas ou
induzidas estava relacionado com aspectos associados à formação
e ao desenvolvimento do sistema nervoso; e não genéticos,
onde as crises epilépticas eram desencadeadas através
da estimulação química ou elétrica do
sistema nervoso em animais "normais" (Jasper e cols.,
1969; Púrpura e cols., 1972; Mello e cols., 1986). O objetivo
dessa classificação era correlacionar os diferentes
modelos com os distintos tipos de epilepsias existentes.
Nesta
época, esses modelos experimentais serviram decisivamente
como screening farmacológico de drogas antiepilépticas.
O principal objetivo dos pesquisadores de então estava centrado
na contenção das crises convulsivas, ou seja em um
tratamento sintomático mas não necessariamente curativo.
Esses modelos alcançaram grande relevância principalmente
na década de 1960, quando muitas drogas antiepilépticas
foram desenvolvidas (White, 1997). Paralelamente, esses modelos
contribuíram substancialmente com informações
a respeito dos mecanismos envolvidos na gênese e manutenção
das crises.
A partir
das décadas de 1970 e 1980, com o aparecimento de modelos
experimentais crônicos induzidos, sendo o principal destes
o modelo do abrasamento, os estudos das drogas antiepilépticas
se voltaram para a identificação de agentes capazes
de prevenir a epileptogênese e/ou diminuir os déficits
comportamentais de longa duração decorrentes das crises.
No entanto, as grandes restrições de parte dos clínicos
em relação à real validade deste modelo para
as epilepsias humanas, resultaram em um enorme retardo na incorporação
da porção "aplicada" dos dados obtidos com
o modelo do abrasamento.
Nas
décadas de 1980 e 1990, dois outros modelos foram extensamente
utilizados: o modelo da pilocarpina e o modelo do ácido caínico
(Turski e cols., 1983; Ben-Ari e cols., 1979; Leite e cols., 2002).
Ambos os modelos replicam características fenomenológicas
das epilepsias humanas do lobo temporal (Ben-Ari, 1985; Turski e
cols., 1989). Assim, a administração local ou sistêmica
desses compostos resulta em um padrão de crise límbica
duradoura bastante característica (status epilepticus),
que após um período conhecido como silencioso (de
3 a 14 dias), leva o animal a apresentar crises espontâneas
e recorrentes (Turski e cols., 1983). A lesão cerebral induzida
pelo status epilepticus nesses modelos pode ser considerada
como equivalente a um evento epileptogênico (ou seja, capaz
de gerar epilepsia) no ser humano, como por exemplo uma convulsão
febril (Mathern e cols., 1996).
Atualmente,
apesar de não havermos ainda ultrapassado o desafio de 20
anos atrás, muitos grupos de pesquisa estão buscando
terapias farmacológicas capazes de reverter o quadro epiléptico
já instalado, principalmente através do redirecionamento
das alterações plásticas decorrentes do estado
epiléptico. Em um outro nível busca-se também
a ação profilática sobre aquelas epilepsias
que podem ser previstas com um elevado grau de certeza, como por
exemplo as epilepsias que sucedem um trauma cranio-encefálico
grave. A tabela abaixo resume alguns modelos experimentais e suas
respectivas alocações dentro da classificação
das epilepsias no homem.
TABELA
1 - Modelos experimentais e sua relação com as diferentes
formas das epilepsias no ser humano. Ao lado do modelo, entre parênteses,
encontra-se o ano de sua descrição (modificado a partir
de Mello e cols., 1986).
MODELO
EXPERIMENTAL |
TIPO
DE EPILEPSIA |
SITUAÇÃO
|
Injeção
ou aplicação tópica de metais |
|
|
Cobalto
(1960) |
Epilepsia
focal (1) |
Semicrônico |
Ácido
túngstico (1960) |
Epilepsia
focal (1), grande mal |
Agudo |
Creme de alúmen (1937) |
Epilepsia
focal recorrente, pequeno mal e crises de ausência |
Semicrônico |
Estimulação
química |
|
|
Penicilina (1945) |
Pequeno
mal mioclônico, epilepsia corticoreticular generalizada |
Agudo |
Estricnina (1900) |
Crises
com foco cortical |
Agudo |
Ouabaína (1966) |
Epilepsia
límbica |
Agudo |
Pentilenotetrazol (1960) |
Pequeno
mal e crises generalizadas |
Agudo |
Picrotoxina (1960) |
Epilepsias
do lobo temporal (2) |
Agudo
e crônico (2) |
Bicuculina (1970) |
Epilepsia
de longa duração (2) |
Agudo
e crônico (2) |
Substâncias colinomiméticas (1949) |
Epilepsias
focais e do lobo temporal |
Agudo
e crônico |
Hidrazinas e piridoxais (1949) |
Crises
generalizadas |
Agudo |
Insulina (1940) |
Crises
metabólicas |
Agudo |
Oxigênio
hiperbárico (1943) |
Crises
de grande mal |
Agudo |
Congelamento
(1883) |
Crises
focais |
Agudo
(?) |
Modelos
com predisposição genética |
|
|
Crise audiogênica em camundongo (1924) |
Crises
tônico-clônicas |
Agudo |
Fotossensibilidade genética (1966) |
Crises
centro-encefálicas |
Agudo |
Estimulação
elétrica |
|
|
Eletrochoque (1870) |
Epilepsia
focal |
Agudo |
Abrasamento (1969) |
Crises
parciais e generalizadas, pequeno mal e auras |
Agudo
e crônico |
Neurotoxinas |
|
|
Ácido
caínico (1970) |
Epilepsia
do lobo temporal |
Agudo
e crônico |
Ácido
ibotênico (1979)
Ácido domóico (1987) - ?
|
Epilepsia
do lobo temporal
Epilepsia do lobo temporal
|
Agudo
e crônico
Agudo e crônico
|
Legenda:
(1) apesar de não produzir lesões crônicas;
(2) quando aplicada na amígdala. |
|
|
Nos
anos porvir os principais desafios dos modelos animais continuam
a ser: (1) entender quais são os mecanismos neurais responsáveis
pelas epilepsias humanas, sejam elas genéticas ou adquiridas
e (2) testar novos fármacos e/ou abordagens terapêuticas.
Claudio
Queiroz e Luiz Eugênio Mello são professores do Departamento
de Fisiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
João P. Leite é professor do Departamento de Neurologia
da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto.
Apoio
Financeiro: FAPESP-CEPID,
PRONEX, Instituto do Milênio-CNPq; Cláudio Queiroz
é bolsista da FAPESP.
Referências bibliográficas
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