Grandes
personalidades conviveram com a epilepsia
A estatística
para o número de pessoas com epilepsia é alta, calcula-se
que de cada 100 pessoas, uma tem a doença. Através
da história, anônimos e famosos tiveram epilepsia.
É grande a lista de figuras ilustres da história,
com gênios como o pintor holandês Van Gogh, até
roqueiros como o inglês Ian Curtis da banda Joy Division que
chegou a ter ataques epilépticos no palco.
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Ian Curtis, vocalista da
banda Joy Division, às vezes tinha crises no
palco
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Na
maioria dos casos a pessoa tenta esconder a doença, que sempre
foi envolvida em uma áurea de mistério e superstições.
Até hoje em dia, muitos epilépticos ainda evitam assumir
a doença em público, porque ainda existe o preconceito
causado pela ignorância sobre a causa dos ataques e o medo
de contágio. No Brasil há várias associações
que se organizam para lutar contra o preconceito e auxiliar o tratamento
e o controle dos casos.
No
passado era mais difícil esconder os ataques, mas hoje pessoas
públicas e pessoas comuns mantém a doença sob
controle através de tratamento com medicamentos e cirurgias.
Os portadores de epilepsia enfrentam a insegurança profissional,
com medo de perder o emprego pelo estigma que a doença ainda
provoca e com o preconceito gerando dúvidas sobre a capacitação
intelectual e profissional. Mas a história mostra, apesar
das dificuldades enfrentadas, grandes personalidades que se destacaram
em suas áreas de atuação tiveram a doença.
Atualmente
é difícil comprovar cientificamente que pessoas no
passado tiveram epilepsia, mas há relatos sobre os sintomas.
Líderes, místicos artistas e escritores sofreram ataques
epilépticos. O desafio da difícil convivência
com a epilepsia foi enfrentado e superado por escritores como Gustave
Flaubert e Dostoiévski, que produziram clássicos da
literatura universal. Dostoiévski, autor do livro Os Irmãos
Karamázovi, escreveu pouco antes de sua morte: "sim,
eu tenho a doença das quedas, a qual não é
vergonha para ninguém. E a doença das quedas não
impede a vida".
É
uma vida difícil, esta de conviver com ataques convulsivos
inesperados. A presidente da Associação dos Portadores
de Epilepsia do Distrito Federal, Alaíde Ferreira da Silva,
36 anos, diz que chegou a ter 18 ataques epilépticos em um
dia. Ela teve a primeira crise aos 5 anos de idade e passou a ter
sempre, quase diariamente. No caso dela, os medicamentos não
conseguiram controlar totalmente os ataques, apesar de tomar três
remédios diferentes e cerca de 20 comprimidos por dia.
Há
dois anos Alaíde foi operada com recursos próprios
através de seu plano de saúde no Hospital Santa Luzia,
pela equipe do médico Wagner Afonso Teixeira, que fez a primeira
cirurgia de epilepsia em Brasília. Depois da operação,
Alaíde nunca mais teve ataques e hoje toma três comprimidos
diários e tem a possibilidade de se ver livre dos medicamentos
em quatro anos.
Em
maio de 1999, Alaíde criou uma associação para
ajudar os portadores em Brasília. "É muito difícil
conviver. Eu graças a Deus consegui estudar, mas a maioria
não consegue. São muitas as dificuldades, as pessoas
têm vergonha". As principais lutas da associação
são contra o preconceito e o ignorância. Muita gente
faz brincadeiras de mau gosto com os portadores e colocam apelidos
pejorativos.
Uma
outra forma de preconceito é decorrente da falta de informação
sobre as causas da doença e do medo do contágio. "É
uma crise feia, eles caem, batem a cabeça, babam e as pessoas
não socorrem", diz a presidente da associação
que reúne cerca de 200 portadores em Brasília, onde
o número de doentes é calculado em 20 mil pessoas.
O lema da associação é: "Contagioso é
o Preconceito" e o objetivo é orientar a sociedade sobre
a doença e reunir os portadores e familiares em discussões
e palestras.
Outra
batalha da associação é conseguir que o estado
realize as operações pela rede pública de saúde,
que ainda não são feitas por falta de verbas. O médico
neurologista, Ricardo Teixeira, diz que a grande luta é dar
o acesso à cirurgia para todos que podem ter esse recurso.
"Hoje existem em Brasília 120 pacientes prontos para
a operação, com todos os exames feitos, só
aguardando a criação de um espaço e os aparelhos
para a cirurgia". Ele diz que apesar de ser uma técnica
do século 19, a operação passou a ser bastante
aplicada a partir da década de 1950. "Mas no Brasil
ela ainda é vista por alguns planos de saúde com um
conceito como se fosse "experimental", mas é muito
consagrada e 90% dos pacientes têm chances de operação",
diz o neurologista.
Genialidade
e Criatividade
Ao
lado dos problemas enfrentados pelos portadores da epilepsia, existem
casos de pessoas que superaram as dificuldades cotidianas e se dedicam
à produção de obras geniais, desenvolvendo
habilidades fora do comum. Os maiores exemplos acontecem nas áreas
das artes e de atividades ligadas à criatividade, como a
literatura.
O biólogo
Norberto Garcia-Cairasco, do Laboratório de Neurofisiologia
e Neuroetologia Experimental da USP em Ribeirão Preto, diz
que há uma grande pergunta que a ciência ainda não
tem como responder: se alguns indivíduos eram gênios
por causa de epilepsia? Em certas doenças cerebrais e neurológicas,
os pacientes desenvolvem capacidades incríveis em certas
áreas, apesar da falta de coordenação motora.
"Este
é um tema interessante, porque indivíduos com casos
neurológicos conhecidos como idiotas-sábios tem desempenho
acima da média em certas habilidades, apesar dos problemas
motores. Alguns autistas, totalmente desconectados do meio externo,
são capazes de ouvir uma música e reproduzi-la perfeitamente
em um instrumento. Como se explica isso? Não se explica.",
diz Cairasco.
Se
a ciência ainda não explica esses fenômenos,
por outro lado, há a constatação de que os
problemas causados pela epilepsia não comprometem o desempenho
artístico e criativo dos portadores. "Apesar da epilepsia,
eram gênios. Hoje não se distingue uma pessoa com casos
de epilepsia mais leve, embora haja os estigmas. Mas pessoas que
não se tratam ou não respondem ao tratamento se afastam
do convívio social e podem sofrer de ansiedade e problemas
psicológicos", diz Cairasco. Para ele, estas alterações
de humor coincidem com períodos de grande produção,
principalmente na literatura, no caso por exemplo de Dostoiévski
e Tennessee Williams, indicando uma relação entre
o emocional e a produtividade.
É
difícil afirmar a epilepsia de grandes nomes da história
universal, mas são muitos os famosos com indícios
da doença. A médica Elza Márcia Targas Yacubian
(leia artigo de Elza Márcia nesta
edição) do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia
da Unifesp escreveu o livro Epilepsia: da Antigüidade ao
Segundo Milênio - Saindo das Sombras, onde reúne
vários casos históricos. Entre os vários nomes
citados por neurologistas estão: Sócrates, Júlio
César, Alexandre o Grande, Buda, Maomé, Napoleão,
Pascal, Isaac Newton e Lênin. No Brasil estão o escritor
Machado de Assis e o Imperador Dom Pedro I.
Pintores
e Músicos
O pintor
holandês Van Gogh é o maior exemplo da genialidade
artística em um caso considerado como epilepsia, como foi
diagnosticado pelo Dr. Peyron no asilo Saint-Paul de Mausole em
Saint-Remy de Provence. Apesar de que Van Gogh é um caso
atípico, com vários fatores que podem ter influído
para a sua doença mental que até hoje ainda não
foi bem explicada. As causas de suas crises podem ter origem na
intoxicação por várias substâncias, como
o álcool, o absinto, as próprias tintas e a terebintina,
usada como solvente e para secar os pigmentos e que Van Gogh ingeria.
Van Gogh tinha também o hábito de comer as suas pinturas,
que seria uma conseqüência de seu vício em substâncias
com terpenos, presente no absinto, na cânfora e na terebintina.
O pintor
sofria de mania aguda e alucinações visuais e auditivas,
que o levaram a cortar a própria orelha. Nas cartas enviadas
ao irmão Theo, Van Gogh descrevia vários sintomas
e as crises que passou a ter após os 35 anos de idade e que
continuaram até a sua morte, dois anos depois. Em uma dessas
cartas, quando estava internado em Sait-Remy, ele escreveu: "as
alucinações insuportáveis desapareceram, estando
agora reduzidas a um pesadelo simples, eu penso que em conseqüência
do uso que venho fazendo do brometo de potássio", o
primeiro medicamento usado para combater crises epilépticas.
Depois
dessa internação, Van Gogh procurou o médico
homeopata Dr. Paul Gachet que diagnosticou intoxicação
aguda por terebintina e lesão cerebral causada pelo sol.
O Dr. Gachet foi retratado em dois quadros famosos de Van Gogh,
com ramos da planta dedaleira, também conhecida como digital
(Digitalis purpurea). No século 18 a dedaleira chegou
a ser usada no tratamento da epilepsia, mas não há
registro de que ela tenha sido receitada e usada por Van Gogh.
Grandes
gênios da música apresentaram quadros de epilepsia.
Há suspeitas de que o compositor alemão Ludwig van
Beethoven tenha tido a doença. Beethoven tinha uma personalidade
marcante e no final da vida sofreu com vários problemas de
saúde. A partir do 30 anos, ele começou a ter perda
progressiva da audição e aos 50 anos estava praticamente
surdo.
O compositor
também sofria de cirrose hepática. As análises
feitas no cabelo de Beethoven indicaram altos níveis de chumbo,
provavelmente ingerido através de peixes contaminados. Isto
pode ter provocado uma doença conhecida como saturnismo,
causada pela intoxicação pelo metal pesado e que provoca
transtornos mentais e neurológicos.
Outros
nomes de músicos tradicionais são citados na literatura
como portadores de epilepsia, como o compositor barroco Handel,
autor de O Messias, o italiano Niccolo Paganini, um violinista
virtuoso, o compositor francês Berlioz e o russo Tchaikowsky,
autor das obras O Lago dos Cisnes e O Quebra-Nozes.
Do século 20, há o caso do americano George Gershwin,
compositor de canções populares e do roqueiro inglês
Ian Curtis.
A história
de Curtis é curiosa e trágica. Ele era vocalista da
banda Joy Division que foi criada em 1977, numa época seguinte
ao estouro do movimento punk. A banda foi a precursora do som soturno
e melancólico, que caracterizou o estilo conhecido no Brasil
como "dark" ou "gótico". A primeira crise
convulsiva do vocalista aconteceu logo após a estréia
em Londres. O show foi decepcionante e a crise abalou Curtis. Depois
disso, a excitação dos shows levava o vocalista a
ter ataques epilépticos em pleno palco.
Quando
Ian Curtis tinha convulsões durante as apresentações
ao vivo, o público adorava e achava que fazia parte da performance.
Até o jeito de dançar de Ian tinha alguns gestos que
chegaram a ser comparados aos movimentos das convulsões,
mas este estilo já existia antes dele ter a primeira crise.
A mulher do vocalista, Deborah Curtis, escreveu o livro Carícias
Distantes, onde relata os bastidores da banda. Ela escreveu:
"as pessoas o admiravam por aquilo que o estava matando".
O estilo mórbido e as letras melancólicas ficaram
marcados já nas músicas do primeiro álbum da
banda, Uknown Pleasures.
Com
os sintomas da doença, Ian Curtis desenvolveu problemas emocionais.
Quando ficava eufórico durante os shows e a crise não
acontecia nos palcos, ele só conseguia dormir depois de esperar
o ataque. Segundo Deborah, ele tinha medo do sono. Curtis chegou
a se separar da mulher e os problemas o levaram a ser internado
por ingerir uma alta dose de remédios. Pouco tempo depois,
ele se suicidou, enforcando-se em sua casa. Os outros integrantes
da banda, Bernard Summer e Peter Hook, formaram em seguida a banda
New Order, que fez bastante sucesso nos anos 80 com seu som
eletrônico para as pistas de dança.
Alguns
atores famosos de Hollywood também sofreram de epilepsia,
como Richard Burton, Michel Wilding e Margaux Hemingway. No Brasil,
o Imperador Dom Pedro I era considerado um gênio, segundo
alguns historiadores, incluindo Pedro Calmon. Apesar de ter recebido
pouca instrução, o Imperador se destacava em certas
habilidades artísticas e tinha um gênio impetuoso.
Dom Pedro I foi o autor da música do Hino da Independência.
Segundo os historiadores, ele sofria de epilepsia herdada do lado
materno de sua família e antes dos 18 anos já tinha
sofrido seis crises.
Escritores
e Místicos
A área literária é a que reúne maior
número de autores que tiveram epilepsia comprovada é
mais fácil por registros escritos. Entre os escritores, o
russo Dostoiévski foi o que mais descreveu os estados da
epilepsia, antes mesmo da medicina. Ele começou a ter as
crises aos 25 anos de idade. Os ataques se prolongaram até
a sua morte aos 60 anos. Nestes 35 anos, o escritor teve cerca de
400 crises convulsivas, que eram seguidas de confusão mental,
depressão e distúrbios temporários de fala
e memória.
Em
suas cartas, diários e obras literárias, Dostoiévski
relatou as suas sensações características da
epilepsia, como os estados de sonhos, pensamentos meditativos, sentimento
de culpa, tremor, fuga de idéias, entre outras. Mas a doença
para Dostoiévski foi mais um estímulo para ativar
a sua genialidade. Ao usar a epilepsia como fonte de inspiração,
o escritor venceu o desafio de conviver com ela e, sem tratamento
em sua época, comprovou que os ataques não afetam
o potencial intelectual e profissional.
O escritor
Gustave Flaubert, autor de Madame Bovary, também é
um outro exemplo de luta contra os problemas cotidianos da epilepsia.
A doença se manifestou aos 22 anos de idade, com crises parciais
simples, (com sintomas visuais de curta duração) e
depois com crises complexas. Ele também apresentava os sintomas
emocionais, como terror, pânico, alucinações,
pensamentos forçados e fuga de idéias. Em certo momento
da vida, Flaubert se isolou socialmente e foi morar em Croisset.
Para enfrentar as barreiras que a doença impunha, como a
dificuldade na memória verbal, em encontrar as palavras,
ele chegava a trabalhar 14 horas por dia e se tornou um dos grandes
escritores franceses.
Vários
outros escritores tiveram epilepsia, como Lord Byron, Dante, Charles
Dickens, Leon Tolstói, Edgar Allan Poe, Agatha Christie,
Truman Capote e Lewis Carrol. No Brasil o principal caso foi de
Machado de Assis, que evitava comentar sobre a doença, numa
tentativa de esconder a epilepsia por causa de seus estigmas. Mas
os ataques eram freqüentes e foram testemunhados por várias
pessoas e inclusive um desses ataques foi registrado pelo fotógrafo
conhecido como velho Malta no centro do Rio de Janeiro.
Durante
a história, várias pessoas que afirmavam ter revelações,
ouvir vozes e ter visões, podem ter sofrido de epilepsia.
Esses casos estão presentes entre personalidades de várias
religiões, desde o início do catolicismo, do budismo,
do islamismo e do protestantismo. Entre os místicos, há
vários relatos de visões que podem ser atribuídas
aos sintomas de epilepsia, como a luz brilhante que cegou São
Paulo no deserto de Damasco, descrita na Bíblia e que o deixou
sem enxergar por três dias. Entre outros dados históricos
analisados por pesquisadores em neurologia estão as revelações
de Buda, obtidas pela meditação que lhe proporcionava
as visões e sensações do nirvana ou do paraíso,
e de Maomé, que dizia receber os ensinamentos do Anjo Gabriel
para escrever o Corão, o livro sagrado do islamismo.
Segundo
o neurologista espanhol, Esteban Garcia-Albea, Santa Tereza de Jesus
sofria de um tipo diferente de epilepsia parcial, provocada por
uma pequena irritação no cérebro, que provocava
sintomas afetivos de prazer e felicidade. A santa, nascida em Ávila
no ano de 1515, tinha "crises de felicidade". Os sintomas
eram; primeiro a aparição de uma luz, depois a paralisia
do corpo, as alucinações e no final as sensações
de prazer.
A causa
dos problemas de Santa Tereza teria sido um estado de coma em decorrência
de uma encefalite que a deixou desacordada por quatro dias. Quando
já preparavam o funeral, seu pai se negou a enterrá-la
e ela despertou com delírios e uma paralisia que a impediu
de andar durante quatro anos. É possível que essa
doença tenha deixado uma pequena cicatriz no cérebro
e tenha causado as "crises de felicidade", que permaneceram
por 12 anos.
Outros
religiosos que podem ter tido epilepsia são: Martin Lutero,
o criador da reforma protestante, e a francesa Joana D`Arc. Aos
43 anos Lutero começou a sentir crises de zumbido, que soavam
como uma catarata. Mas a sua doença pode ser explicada também
como o mal de Menieri, que causa problemas na região do labirinto
e também pode provocar vertigens. Já a heroína
francesa, aos 13 anos viveu os primeiros momentos de êxtase,
vendo raios de luzes, ouvindo vozes de santos e visões de
anjos. Essas vozes incentivaram Joana D'Arc a guerrear contra a
dominação inglesa. As sensações aconteceram
até a sua morte aos 19 anos, queimada por heresia na fogueira
da Inquisição.
Várias
pesquisas são realizadas em todo o mundo para encontrar uma
explicação para os fenômenos religiosos relacionados
com o funcionamento do cérebro humano, com as suas redes
neurais e reações químicas. São experimentos
que analisam o comportamento do cérebro durante estados de
meditação profunda, sob o efeito de substâncias
psicoativas e nas crises epilépticas. O cientista Andrew
Newberg, da Universidade da Pensilvânia, fez experimentos
com budistas em meditação, aplicando contrastes radioativos
para analisar as imagens em um tomógrafo. Os resultados mostraram
uma redução na atividade da região do cérebro
conhecida como lobo parietal, que controla a orientação.
Segundo o cientista, algumas experiências espirituais podem
ser explicadas, porque a pessoa perde ou diminui a fronteira entre
ela mesma e o mundo, entrando em comunhão com o Universo.
(GP)
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