Epidemiologia
das epilepsias no Brasil
Moacir
Alves Borges e Dirce Maria Trevisan Zanetta
A epilepsia
acomete as pessoas independentemente da raça, do sexo e das
condições socioeconômicas e acompanha a espécie
humana desde sua origem. Os primeiros relatos sobre ela remontam
ao código de Hamurabi há mais de quatro mil anos [1].
A epilepsia é o mais comum dos distúrbios neurológicos
crônicos graves [2]. O tipo de crise,
a freqüência e a imprevisibilidade quanto à hora
de ocorrência são atributos que causam adversidades
ao próprio paciente, ao familiares, assim como à sociedade
como um todo [3,4]. Por isto, ela se torna
uma questão de saúde pública.
Os
estudos epidemiológicos da epilepsia no Brasil são
raros porque são difíceis, trabalhosos, onerosos e
sujeitos a viéses, como os de amostragem e os de definições.
A propósito, não existe estudo de incidência
da epilepsia no Brasil, porque além das dificuldades acima
referidas, dependem de estudos longitudinais populacionais, sendo
portanto de conclusões muito demoradas.
Nos
países desenvolvidos, onde há a maioria destes estudos,
a incidência está por volta de 40-50/100.000 hab/ano
[3], enquanto que nos em desenvolvimento é
de 122-190/100.000hab/ano [5]. Existe um projeto
em andamento para se estimar a incidência da epilepsia na
cidade de São José do Rio Preto e Campinas.
O estudo
de prevalência encarrega-se de estimar a freqüência
de casos existentes de uma determinada doença, em uma determinada
população e em um dado momento [6].
A prevalência pontual (Pt) da epilepsia é
estimada como a proporção de indivíduos de
uma população de estudo de tamanho N que tenha epilepsia
no instante Pt e é calculada como
|
onde:
Ct = Nt - Nt0 representa o número de epilépticos
no instante t (Nt0 é o número de pessoas livres
de epilepsia no referido instante e Nt o número da população
estudada. |
As
pesquisas epidemiológicas de prevalência sobre epilepsia
têm resultados dentro de uma ampla faixa que varia de 1,5/1000
hab. [4,7] até 57/10008. Os aspectos
fisiopatológicos próprios à esta doença
e os seus fatores de riscos, sendo estes associados ao meio ambiente,
influenciam a prevalência. Os aspectos metodológicos
a serem utilizados pelos pesquisadores também contribuem
com parcela significante nos resultados dos estudos de prevalência
da epilepsia [6,7-13].
Várias
são as formas metodológicas utilizadas para se determinar
o número de pessoas com epilepsia em uma determinada comunidade,
segundo Ohtahara et al. [14].
Os
países desenvolvidos estimam a prevalência utilizando-se
dos arquivos médicos e de saúde pública [3,15].
Os países em desenvolvimento como o Brasil, em geral não
possuem arquivos confiáveis e necessitam de outras metodologias
epidemiológicas, que são mais trabalhosas além
de onerosas, como:
1-
estudo tipo corte transversal mediante entrevistas domiciliares
abordando a população inteira ou se utilizando de
amostra aleatória e representativa da população
[16,17] em apenas uma fase;
2- estudo por meio de questionários como o utilizado por
Rose et al. [18]
3- estudo com entrevistadores treinados para aplicar o questionário
de porta em porta em toda comunidade, desde que pequena, ou por
amostragem aleatória nas grandes [19,20]
em duas fases, sendo a primeira a de levantamento dos suspeitos
e a segunda a de confirmação
O delineamento
para estudo com entrevista domiciliar, em larga escala, é
muito trabalhoso. A alternativa para se estimar prevalências
nos países em desenvolvimento, é delineamento em duas
etapas, onde a primeira corresponde à pesquisa domiciliar,
mediante questionário simples sobre a doença aplicado
em amostra aleatória da população por entrevistadores
treinados. A segunda etapa corresponde a fase de confirmação
diagnóstica nos casos suspeitos [19].
A acurácia
e a confiabilidade dos resultados obtidos mediante o uso deste delineamento
pressupõem a validação do questionário
para se determinar a sensibilidade, a especificidade (instrumento
de pesquisa) e sua adaptação à linguagem da
comunidade em uma pequena amostra da população que
se quer estudar. Desta forma, na primeira etapa (os resultados dos
questionários) seriam definidos os casos positivos e os negativos
e na segunda etapa (a confirmação diagnóstica)
seriam definidos os verdadeiros e falsos positivos e os verdadeiros
e falsos negativos [21].
Desta
forma, temos:
|
onde
S é a sensibilidade e E a especificidade |
Tabela
1. Teste diagnóstico e resultados possíveis.
|
Doença |
Teste |
|
Presente |
Ausente |
Total |
Positivo |
VP |
FP |
VP+FP |
Negativo |
FN |
VN |
FP+VN |
Legenda:
VP, verdadeiro positivo; FP, falso positivo; FN, falso negativo;
VN, verdadeiro negativo
Se
o questionário tiver alta sensibilidade pode-se, então,
estimar a prevalência em larga escala, pois dispensa-se a
confirmação diagnóstica nos casos negativos,
e o falsos negativos são obtidos por cálculo matemático
a partir da sensibilidade.
Epidemiologia
da epilepsia no Brasil
Há
poucos estudos no Brasil sobre prevalência em epilepsia, exatamente
devido às dificuldades acima expostas.
Almeida
Filho [22] estudou, mediante questionário,
5% da população do bairro de Amaralina de Salvador,
Bahia, que na época contava com 27.000 habitantes e encontrou
taxa de prevalência de epilepsia ativa de 1,0/1000 hab., que
é surpreendentemente baixa para os padrões latino-americanos.
Em
Porto Alegre, Da Costa, Oliveira e Panta [23],
em estudo populacional, estimaram que 0,2 a 2% da população
deve apresentar uma ou mais crises durante a vida.
A prevalência
da epilepsia na cidade de São Paulo, segundo Marino et al.
[24] em 1987, em estudo populacional tipo
corte transversal, foi estimada em 13,3/1000 hab.
Fernandes
et al. [25] fizeram estudo populacional na
cidade de Porto Alegre no início da década de noventa
do século passado, tendo encontrado prevalência da
epilepsia ativa de 16,5/1000 hab. e inativa de 20,3/1000 hab. Foi
usado neste estudo o delineamento em duas etapas e adotado os critérios
da Comissão de Pesquisa Epidemiológica da ILAE26 e
da OMS [27].
Borges
et al. [28] estudaram a comunidade dos índios
Bakairi residentes às margens do rio Paranatinga, afluente
do rio Xingu. O estudo foi do tipo corte transversal em duas etapas
e de porta em porta, em 103 casas, utilizando-se do questionário
de Placencia et al. [19], com modificação.
A sensibilidade do instrumento foi de 88,8% (IC-95%; 84,9-93); a
especificidade, de 97,8% (IC-95%; 95-98); a prevalência de
epilepsia ativa foi de 12,4/1000 hab. e a inativa, de 6,2/1000 hab.
Ela foi alta, provavelmente em conseqüência do fator
de risco familial (p = 0,04), uma vez que outros não foram
relevantes.
Borges
et al. [29] (dados ainda não publicados),
com este mesmo delineamento e questionário, cuja validação
prévia30 revelou sensibilidade de 85,8% (IC 95%;95,8 - 97)
e especificidade de 97,8 (IC 95%;96,9 - 98,7), estimaram a prevalência
da epilepsia na cidade de São José do Rio Preto (SJRP)
que atualmente conta com 360.000hab. (IBGE) [31].
Os
resultados mostraram que a prevalência acumulada para todas
as idades de epilepsia na cidade de SJRP foi de 18,6/1000 hab. (IC
95%: 16,6 - 20,6), sendo 18,5 (IC 95%;16,5-20,5) para o sexo feminino
e 18,6 (IC 95%;16,5-20,6) para o masculino. A prevalência
acumulada na raça branca foi 19,2 (IC 95%;17,1-21,2) e na
negra foi de 14,6 (IC 95%;12,3-16,4).
Figura 1. Delineamento da pesquisa de prevalência de
epilepsia em São José do Rio Preto; CF, convulsão
febril; ENEP, evento não epiléptico psicogênico;
Ind, indevinida; La, labirintopatia; Li, lipotímia; AS, Stoke
Adams; P, positivo; N, negativo; FP, falso positivo; VP, verdadeiro
positivo; VN, verdadeiro negativo; FN, Falso negativo.
A
prevalência teve distribuição diferente, segundo
as faixas etárias, como são mostradas na tabela 2.
Tabela
2. Prevalência da epilepsia acumulada,
considerando-se as faixas etárias*
|
Faixa
etária |
Prevalência |
(anos) |
1000/hab. |
IC
95% |
0
a 4 |
4,9 |
3,9
- 6,0 |
5
a 14 |
11,7 |
10,0
- 13,3 |
15
a 64 |
20,3 |
18,2
- 24,4 |
65
ou mais |
32,8 |
30,1
- 35,4 |
Total |
18,6 |
16,6
- 20,6 |
*,
valor-p < 0,0001 |
A
prevalência da epilepsia ativa e inativa é mostrada
na tabela 3 e revela que a medida que aumenta o período desde
a última crise a prevalência da epilepsia ativa também
aumenta.
Tabela
3. Prevalência da epilepsia ativa e inativa, considerando-se
pelo menos uma crise nos últimos 2, 3, 4 e 5 anos na cidade
de SJRP. |
Última
crise (anos) |
Epilepsia
ativa |
Epilepsia
inativa |
Prevalência |
IC
95% |
Prevalência |
IC
95% |
Dois |
8,2 |
6,8
- 9,5 |
10,4 |
8,9
- 11,9 |
Três |
10,9 |
9,3
- 12,4 |
7,7 |
6,4
- 9,0 |
Quatro |
12,6 |
10,9
- 14,3 |
5,9 |
4,8
- 7,1 |
Cinco |
13,3 |
11,6
- 15,0 |
5,3 |
4,2
- 6,4 |
Por
fim, a pesquisa mostrou a forte associação entre a
epilepsia e as classes sociais, segundo a (ABIPEME) [32],
conforme é mostrado na figura 2 (abaixo).
FIGURA
2 -
Relação entre a prevalência da epilepsia e as
classes econômicas.
Dessa
forma o estudo mostra que a prevalência em SJRP é elevada,
semelhante aos países em desenvolvimento, em especial aos
latino-americanos. Mostrou também as classes economicamente
melhores têm prevalência semelhante aos países
desenvolvidos, espelhando dessa forma, as nossas desigualdades sociais.
Moacir
Alves Borges é Prof Mestre Assistente Chefe da disciplina
de Neurofisiologia Clínica do Departamento de Ciências
neurológicas da Facudade de Medicina de São José
do Rio Preto (FAMERP) e Dirce
Maria Trevisan Zanetta é Profa Dra Adjunta Chefe do Departamento
de Epidemiologia e Saúde Coletiva da FAMERP
Referências
bibliográficas - [voltar
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