Qualidade
de Vida para Pessoas com Epilepsia
Hanneke
M. de Boer
Traduzido por Paula Teixeira Fernandes
A epilepsia
tem um maior impacto na vida cotidiana de pessoas portadoras desta
condição do que suas famílias ou amigos.
Crianças
e adolescentes sofrem freqüentemente de superproteção
nas suas famílias e na escola. Os professores geralmente
são mal informados sobre a epilepsia e os alunos têm
medo de ter crises dentro da sala de aula por temerem as reações
dos colegas.
Na
vida adulta, pessoas com epilepsia falam de problemas relacionados
a conseguir e manter um emprego, o que é confirmado por pesquisas,
que descrevem que o desemprego nesta população é
2 ou 3 vezes maior do que na chamada "população
normal".
Pessoas
mais velhas, assim como as mais jovens, sofrem com a perda de confiança.
Elas podem perder a independência funcional, como, por exemplo,
a habilidade para dirigir, o que pode levar a um isolamento social.
Todas
as doenças crônicas têm um impacto na qualidade
de vida, porém, o impacto da epilepsia parece ser maior,
particularmente por causa da imprevisibilidade das crises e do estigma
associado.
Nos
últimos anos, houve um aumento do reconhecimento de que a
avaliação do impacto da epilepsia vai além
das crises, significando que não só estas crises determinam
a qualidade de vida das pessoas com epilepsia. Conseqüentemente,
surgiram várias iniciativas para se mensurar a qualidade
de vida das pessoas com epilepsia.
O tratamento
da epilepsia, por razões óbvias, continua sendo de
extrema importância, envolva ele o tratamento com drogas antiepilépticas
ou cirurgia. As desigualdades e lacunas no tratamento da epilepsia
(treatment gap) são um grande problema na Europa Oriental,
bem como nos países em desenvolvimento. Entretanto, não
só as crises precisam ser tratadas, a pessoa precisa ser
olhada pelo médico sob um ângulo psicológico
e social e um tratamento amplo parece ser o caminho para este novo
século.
Qualidade de vida
Qualidade de vida refere-se ao bem-estar geral e cotidiano das pessoas
e pode ser dividido em três componentes principais: saúde
física, mental e social [1]. Questões
sobre qualidade vida são extremamente relevantes nas desordens
crônicas como a epilepsia, onde problemas mentais e sociais
estendem-se além dos sintomas usuais da doença [2].
Porém,
por incrível que pareça, as opiniões dos médicos
e pacientes, relacionadas à qualidade de vida, variam bastante,
como revelam várias pesquisas.
Provavelmente a melhor definição conhecida [1]
sobre o que qualidade de vida realmente significa é a seguinte:
"Qualidade de vida é a resposta do indivíduo
para suas circunstâncias de vida, o equilíbrio entre
estas circunstâncias e a habilidade para lidar com as mesmas.
Em outras palavras: a habilidade entre o que você é
e que você quer na vida. Para as pessoas com epilepsia, isto
precisa estar estritamente relacionado, pois entre as crises as
pessoas querem viver a vida em todo o seu potencial".
Qualidade de vida, crianças e adolescentes
Epilepsia é a desordem cerebral crônica mais comum
na infância. Sua incidência é maior nos dez primeiros
anos de vida [3], significando que as crianças
são afetadas desde o início de sua vida escolar. Nós
sabemos agora que, do ponto de vista médico, muitas das epilepsias
infantis são benignas e caminham para a remissão das
crises ou para o controle com o tratamento apropriado. Mas quais
são os efeitos na qualidade de vida destas crianças?
Ann
Jacoby [4] apontou que, comparando trabalhos
realizados em adultos, a pesquisa do impacto da epilepsia na qualidade
de vida de crianças e adolescentes é dificultada pelas
rápidas mudanças físicas, cognitivas e emocionais
que acontecem neste período [5]. Apesar
de existirem pesquisas recentes com o objetivo de desenvolver métodos
para obter informações sobre essas crianças,
estudos nessa área normalmente dependem da avaliação
dos pais. Além disso, muitos estudos foram realizados em
clínicas onde as crianças com epilepsia de difícil
controle estão envolvidas [6]. Estudos
mostram, por exemplo, que a taxa de disfunção social
é substancialmente maior em amostras de clínicas do
que em amostras de comunidade [7].
Uma
importante descoberta, entretanto, foi que crianças e adolescentes
com epilepsia parecem ter uma qualidade de vida relativamente mais
restrita do que as crianças com outras condições
crônicas [8]. É relatado que
estas crianças parecem ter auto-conceitos mais baixos do
que as crianças com asma e maiores problemas de relacionamentos.
É
desnecessário dizer que o desenvolvimento da epilepsia e
a imprevisibilidade das crises têm uma significativa influência
na qualidade de vida de crianças e adolescentes. Mas como
já falado antes, esta influência vai além do
número e da freqüência de crises.
Por
exemplo, os pais relataram tornar-se superprotetores e, como resultado,
têm medo de conceder independência à criança
nos momentos sem crises. Além disso, achados de pesquisas
mostram que famílias que possuem uma criança com epilepsia
tendem a evitar a comunicação adequada e assim, transformam
as crianças em "pessoas com quem ninguém quer
conversar" [9,10].
Os
pais também expressam ansiedade a respeito do impacto de
ter uma criança com epilepsia nos outros filhos [11].
Ward e Bower relataram que irmãos de crianças com
epilepsia ficam usualmente perturbados pelas limitações
impostas para todos os membros da família, como resultado
das crises epilépticas. Apareceram ciúmes devido à
preocupação dos pais com a criança portadora
de epilepsia e ressentimento ao aumento das responsabilidades deles
por terem que ajudar o irmão com epilepsia.
Estes
são apenas alguns dos aspectos que influenciam a qualidade
de vida de crianças com epilepsia. Eu não mencionei
as conseqüências do preconceito e do estigma proveniente
de pais e professores. Irei lidar com esses assuntos mais adiante,
mas eles também têm uma significativa influência
na qualidade de vida destas crianças, não só
nos países em desenvolvimento, como também nos países
desenvolvidos.
Qualidade de vida e adultos
A incidência de epilepsia é menor nas idades entre
20 e 60 anos de idade e a literatura nos diz que na maioria destes
casos as crises são bem controladas. Porém é
durante este período de vida que as pessoas têm que
enfrentar o peso das restrições legais, como por exemplo,
dirigir, conseguir emprego e também preconceito, estigma
e discriminação [4].
Muitas
pesquisas mostram que um número significativo de pessoas
com epilepsia sentem-se estigmatizadas [12].
Scambler & Hophins [13] relataram que
aproximadamente um terço das pessoas com epilepsia que se
casaram depois do início das crises, não contaram
para seus maridos ou esposas sobre sua condição e
o outro um terço usou eufemismos como "desmaios",
"ataques", etc. Mais da metade das pessoas com epilepsia
nunca contou para os seus chefes sobre a sua condição
e 18% dos que contaram tiveram incidentes que prejudicaram suas
carreiras. Estes dados foram mais tarde confirmados por Ann Jacoby,
na Inglaterra [14].
Estar
empregado é um importante fator para a qualidade de vida
das pessoas com epilepsia [15], que também
reconhecem que o trabalho é uma parte importante da saúde
social. Um estudo feito por Emlen e Ryan sugeriu que os índices
de desemprego das pessoas com epilepsia são, em geral, 2
a 3 vezes mais altos do que os da população geral.
Um outro estudo realizado no Reino Unido sugeriu uma taxa de desemprego
de 46% para pacientes com epilepsia. Uma pesquisa recente realizada
nos Países Baixos confirma mais ou menos estes achados. Nela,
48% estão empregados, 35 pacientes informaram receber benefícios,
59% relataram estar em dívida devido à epilepsia.
Todas estes dados foram significativamente menos favoráveis
para as pessoas com epilepsia do que para a população
em geral.
É
interessante notar que existe uma relação entre o
número de drogas utilizadas, a freqüência das
crises e a capacidade de trabalho, mas não existe relação
entre a capacidade de trabalho e o tipo de crise.
Ann
Jacoby coletou dados a respeito do estigma em mais de 5000 pacientes,
que viviam em 15 países da Europa. Ela descobriu que 51%
das pessoas com epilepsia sentem-se estigmatizadas e 18% informaram
sentir-se muito estigmatizadas [16]. Altos
índices foram correlacionados com preocupação,
sentimentos negativos sobre a vida, problemas de saúde antigos,
danos e efeitos colaterais das drogas anti-epilépticas.
Todos
estes dados sugerem que existe uma relação entre as
variáveis clínicas e o emprego, mas também
parece claro que outros aspectos, como motivação,
desordens psiquiátricas, preconceito e estigma, às
vezes exageram questões como freqüência e tipo
de crises.
É
claro que são necessárias mais pesquisas para definir
como reduzir o estigma associado à epilepsia.
Qualidade de vida e idosos
Durante muito tempo e até recentemente, a epilepsia era incomum
e sem importância para as pessoas idosas [17],
como resultado essas pessoas tenderam a ser excluídas de
estudos realizados com tratamentos específicos e com o impacto
da epilepsia [4].
Agora
nós sabemos que durante o século XX, houve um aumento
dramático na incidência da epilepsia. Pesquisas mostram
que a incidência da epilepsia em pessoas com mais de 75 anos
é maior do que nos dez primeiros anos de vida. Dados estatísticos
mostram que aproximadamente 1-2% das pessoas com mais de 65 anos
têm epilepsia.
Muita
coisa mudou. Quando eu estava preparando esta apresentação,
recebi uma edição especial do "Sharing",
relatório informativo da "Epilepsy Ontário",
com o título: Novos horizontes para idosos com epilepsia",
onde adquiri alguma informação que gostaria de compartilhar
com você.
Receber
o diagnóstico de epilepsia em qualquer idade é difícil.
Pessoas idosas que recebem o diagnóstico de epilepsia tem
suas expectativas afetadas e acreditam que a epilepsia é
algo a ser mantido em segredo. Pessoas com crises se acham incapazes
de manter um estilo de vida diferente do que eles quando eles eram
mais jovens [18].
Em
pessoas mais velhas a incerteza da sua condição e
a imprevisibilidade de seu curso pode ser acompanhada por uma perda
da independência. Eles podem enfrentar a perda de alguns papéis
e da habilidade dirigir, que pode levar a um isolamento social.
Estas pessoas possuem alguns questionamentos, como os mostrados
a seguir:
· Eu me sinto fora do controle quando tenho uma crise
· A epilepsia levou o controle de minha vida longe de mim
· Eu estou caminhando como um "zumbi" com todos
estes medicamentos
· Eu não conhecia outra pessoa que teve epilepsia
depois dos 60 anos de idade
· Eu tinha medo e vergonha de sair da casa quando eu comecei
a ter crises
Os
"baby-boomers" estarão fazendo 65 anos na década
que se aproxima, então, é melhor estarmos preparados.
Qualidade de vida e tratamento
Eu gostaria de dizer algumas palavras sobre qualidade de vida e
cirurgia: a remissão completa de crises é obviamente
o resultado desejado na cirurgia de epilepsia, de fato foi mostrado
que, geralmente, ela melhora o bem-estar do paciente mais do que
outras modalidades terapêuticas. As medidas de avaliação
focalizavam, até recentemente, a ausência de crises.
Porém é imperativo que a avaliação da
cirurgia inclua os efeitos sobre o bem-estar e o funcionamento psicossocial
dos pacientes. [19].
Sobre
o tratamento com drogas antiepilépticas, estudos realizados
em pacientes com epilepsia refratária sugerem que a melhoria
da qualidade de vida associada com a medicação antiepiléptica
pode ser independente da redução da freqüência
de crises. Doze drogas antiepilépticas principais estão
disponíveis atualmente [20]. Como seus
mecanismos de ação bem como seus efeitos colaterais
diferem consideravelmente, elas também podem diferir nos
efeitos sobre a qualidade de vida. Infelizmente, estas diferenças
ainda não foram investigadas em estudos bem elaborados, de
longo prazo [21].
Como
Martin Brodie [22] já descreveu, o
controle de crises não melhora automaticamente a qualidade
de vida, visto que outras conseqüências da condição
freqüentemente permanecem. A epilepsia pode resultar em aposentadoria
precoce, desemprego e limitações sociais [24].
Pessoas com epilepsia necessitam de um acesso fácil para
o diagnóstico, tratamento e orientação. Elas
precisam de ajuda adicional para superar as conseqüências
negativas da sua condição. Programas de cuidado (Comprehensive
care programmes) parecem o melhor caminho a se seguir [23].
Entretanto,
embora esses programas sejam bastante baratos, como informou Peter
Wolf [24], e desta maneira têm sido
implantados em vários países europeus, o cuidado a
muitos pacientes permanece inadequado por causa de falta de informação/acesso.
Em
muitos países, a epileptologia não é reconhecida
como uma especialidade e os pacientes podem ser compelidos a consultar
um neurologista ou um neuropsiquiatra, cujo conhecimento de epilepsia
pode não ir além dos fatos médicos.
A ILAE
(Brodie et al, 1997) desenvolveu diretrizes que definem um
padrão apropriado de cuidado, formulado para responder às
diferenças entre os países no que diz respeito à
qualidade de cuidado disponível para pacientes com epilepsia.
Conclusão e recomendações
Quando comecei a preparar esta apresentação, eu pretendia
apenas falar sobre pesquisa e depois dizer também o que mais
deveria ser feito nas pesquisas e realmente mostrei figuras e fatos.
Agora eu percebo que falei sobre viver, viver com epilepsia nas
várias fases da vida e os problemas encontrados pelas pessoas
com esta condição. Estes problemas parecem ser:
· médicos
· psicológicos
· sociais e
· da sociedade
e todos
eles são simultaneamente causa e conseqüência
para qualquer problema que essas pessoas encontrem e têm uma
influência significativa na qualidade de vida de pessoas com
epilepsia.
Concluindo,
epilepsia é ainda mal entendida, levando ao segredo, estigmatização
e risco de
penalidades sociais e legais.
Em
alguns países da Europa, a epilepsia ainda não é
reconhecida como uma desordem cerebral e mais de 40% das pessoas
com epilepsia podem não estar sendo tratadas, o que gera
o tão conhecido "treatment gap" [22].
Está
claro que esta ação precisará ser continuada.
Prioridades definidas. Como disse Martin Brodie: nós temos
as ferramentas para melhorar a qualidade de vida das pessoas com
epilepsia, para fazer a epilepsia "sair das sombras",
agora use-mo-las.
Hanneke
M. de Boer é Chairperson of the GCAE Secretariat.
Referências
bibliográficas [voltar ao topo]
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