O tratamento cirúrgico das epilepsias
Paulo
Cesar Ragazzo
Centros
de Cirurgia de Epilepsia: A neurocirurgia funcional dirigida à
ressecção de tecido cerebral epileptogênico,
para o controle das crises epilépticas, existe há
50 anos, quando iniciou-se sua prática sistemática
no Instituto de Neurologia de Montreal. Durante trinta anos o interesse
por essa área permaneceu limitado, modificando-se dramaticamente
após a introdução de novas técnicas
de investigação diagnóstica, como a video-eletrencefalografia
(sincronização em tempo real de imagem e registro
eletrográfico, por meios computacionais, com capacidade de
armazenar grande quantidade de informação), a tomografia
computadorizada, a ressonância magnética estrutural
encefálica, a tomografia por emissão de pósitrons
(PET) e a cintilografia tomográfica por emissão de
fóton único (SPECT). Recentemente, novos métodos
que aliam a resolução estrutural a métodos
funcionais (fMRI - ressonância magnética funcional,
novas técnicas de EEG - spatial deblurring e modelagem
dipolar - e magnetoencefalografia) vieram promover outro período
de expansão do arsenal investigativo clínico e experimental
nessa área.
Quando
Wilder Penfield e colaboradores demonstraram, há 50 anos,
que era possível intervir cirurgicamente, de maneira sistemática,
em alguns casos de epilepsia refratária ao tratamento clínico,
vários aspectos de sua abordagem pioneira ficaram definitivamente
marcados para os observadores atentos: que a cirurgia culminava
como o resultado de um trabalho concertado de um grupo de profissionais
de várias áreas das neurociências, integrados
em uma dinâmica interdisciplinar; que esses profissionais
deveriam ser indivíduos com treinamento excepcional em suas
áreas de expertise; que um trabalho sistemático só
era possível com o apoio institucional consciente, com suporte
científico e financeiro, e com vistas a longo prazo.
Na
América do Norte, seguiu-se rapidamente a abertura de vários
programas de cirurgia, com a visão organizadora e o interesse
científico típicos daquelas comunidades científicas,
com apoio institucional e público. No Brasil, três
décadas foram consumidas em tentativas isoladas, no Instituto
de Neurologia do Rio de Janeiro, por Renato Barboza e Paulo Niemeyer,
e em São Paulo, por Públio Sales Silva. No Instituto
de Psiquiatria da Universidade de São Paulo, um grupo multiprofissional
liderado por Raul Marino Jr iniciou no final dos anos 70 a prática
sistemática da cirurgia de epilepsia. A partir do ano de
1986, o Instituto de Neurologia de Goiânia lançou um
programa integrado de cirurgia de epilepsia, que serviu de base
futura para o lançamento do programa nacional financiado
pelo Ministério da Saúde, e orientado cientificamente
pela Liga Brasileira de Epilepsia, pela Sociedade Brasileira de
Neurofisiologia Clínica, pela Sociedade Brasileira de Neuropsicologia,
pela Sociedade Brasileira de Neurocirurgia e pela Academia Brasileira
de Neurologia.
O processo
que culmina em uma abordagem cirúrgica para o tratamento
das epilepsias refratárias é longo e somente realizado
após a devida exposição a ensaios terapêuticos
medicamentosos controlados. O custo operacional de um programa de
tratamento cirúrgico é naturalmente elevado, e somente
justificado quando integrado a um programa mais amplo de atendimento
multicêntrico. Tais complexidades não impediram o surgimento
de centros de tratamento especializados, no mundo todo, dado o recente
reconhecimento pelas instituições públicas
responsáveis, de uma demanda grande de pacientes com epilepsia
refratária ao tratamento clínico, incidente em um
contingente importante de indivíduos em idade produtiva (Ragazzo
PC, 1992; Guerreiro CAM., 1997). Durante o ano de 1990, uma publicação
americana atestava o interesse crescente na regulamentação
do esforço empenhado nessa área. Os resultados da
conferência de desenvolvimento de consenso sobre a cirurgia
de epilepsia foram publicados pelo National Institutes of Health
(NIH Consensus Conference..., 1990) juntamente com recomendações
para o diagnóstico e tratamento nos centros especializados
em cirurgia de epilepsia.
Em
1992, a Liga Brasileira de Epilepsia nomeou uma comissão
de neurocirurgia encarregada de elaborar o programa nacional de
cirurgia de epilepsia, e discutir sua implantação,
como procedimento de alta complexidade, junto ao Ministério
da Saúde. Em 17 de agosto de 1994, através da portaria
MS/140, o Secretário de Assistência à Saúde
incorporou à tabela de procedimentos do SIH-SUS, a exploração
diagnóstica da epilepsia (procedimento 81.100.01-0) e o tratamento
cirúrgico da epilepsia (procedimento 40.101.04-0), com o
credenciamento de três centros em nível nacional (Instituto
de Neurologia de Goiânia, Hospital das Clínicas da
Faculdade de Medicina da USP e Hospital São Lucas da PUC
de Porto Alegre). Atualmente mais três centros foram credenciados
para os procedimentos, o Hospital das Clínicas da USP - Ribeirão
Preto, o Hospital das Clínicas de Curitiba e o Hospital da
Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Novos centros
de tratamento cirúrgico deverão ser credenciados,
desde que preencham os critérios de qualificação
referentes à existência de instalações
mínimas e pessoal técnico com o treinamento exigido.
O acesso de pacientes de todas as classes sociais a programas de
tratamento cirúrgico de epilepsia é hoje possível,
a partir de um projeto realista, com apoio do MS, no desenvolvimento
de programas especiais inovadores. Interessa particularmente o acesso
de crianças com epilepsia refratária, uma vez que
aproximadamente 40% delas são passíveis de controle
total após a cirurgia, devolvendo-lhes a possibilidade de
uma vida normal, e aliviando os sistemas de saúde e pedagógicos
de uma sobrecarga significativa no acompanhamento de crianças
com crises freqüentes.
O objetivo
do tratamento cirúrgico da epilepsia é o de permitir
que o paciente recupere uma qualidade de vida mais próxima
do normal quanto possível. O tratamento deve restituir-lhe
a sensação de bem-estar, aliviar disfunções
psico-sociais e a morbidade clínica, e reduzir os riscos
de crises futuras e a mortalidade (Duchowny MS et al., 1997).
As
cirurgias potencialmente "curativas" - ressecções
corticais, lobectomias, lesionectomias e hemisferectomias, estão
frequentemente associadas a estes objetivos, permitindo uma melhora
de escolaridade, independência pessoal, oportunidades de emprego,
e possivelmente a obtenção de carteira de habilitação
para direção de veículos. Os estudos publicados
demonstram que a obtenção desses benefícios
é significativamente reduzida quando o controle de crises
pós-operatório é apenas parcial (Sperling MR
et al., 1995; Vickrey BG et al., 1995). Para esse grupo de
procedimentos, portanto, o objetivo máximo é o controle
total de crises.
Algumas formas paliativas de cirurgia, como a calosotomia, embora
associadas a um baixo índice de controle total de crises,
estão freqüentemente associadas a melhoras significantes
da qualidade de vida, para um grupo específico de pacientes
(Andersen B et al., 1996; Ragazzo PC, 1996).
Contraindicações
absolutas à cirurgia ocorrem na presença de doenças
degenerativas ou metabólicas, ou doenças sistêmicas
graves, e também nas síndromes epilépticas
benignas. Contra-indicações relativas são constituídas
pela presença de rebaixamento mental severo e de uma dinâmica
familiar altamente disfuncional (Hoare P e Kerley S, 1991).
Justificativa
do tratamento cirúrgico das epilepsias refratárias:
A atividade dos vários centros mundiais comprova a possibilidade
de intervir cirurgicamente, de maneira sistemática, em várias
formas de epilepsia refratária, com resultados satisfatórios
(Agostini M et al., 1996; Arruda F et al., 1996; Engel J
JR et al., 1993; Spencer SS, 1996). O surgimento de novas
técnicas de investigação em neurologia, neuropsicologia,
neurofisiologia e neuroimagem permite um aporte considerável
de informações relevantes do ponto de vista neurobiológico
(Cendes F et al., 1993; Jack CR, 1996; Berkovic SF et
al., 1992; Duncan J, 1996; Henry TH, 1996; Theodore WH, 1997,
Gotman J e Ives J, 1997; Binnie CD e Mizrahi EM, 1997). A abordagem
cirúrgica é considerada somente um elo na cadeia de
tratamentos clínicos, psicológicos e de reabilitação.
A cirurgia culmina como resultado do trabalho concertado de profissionais
de várias áreas, integrados em uma dinâmica
interdisciplinar. Esse trabalho somente é possível
com apoio institucional consciente, com suporte financeiro e científico
e com vistas a resultados de longo prazo.
Argumentos
para a intervenção precoce: A ocorrência de
crises epilépticas, com incidência particularmente
elevada na infância e adolescência, interrompe a escolaridade
e o desenvolvimento de habilidades vocacionais e sociais necessárias
ao bom desempenho pessoal e profissional futuros. Crises muito freqüentes
em crianças com síndromes parciais ou generalizadas
severas podem resultar em efeitos desastrosos para o desenvolvimento
(Engel J Jr. et al., 1997). A possibilidade de evitar as
consequências psico-sociais graves das epilepsias refratárias
é um forte argumento em favor da intervenção
precoce. Mesmo sem a ocorrência de deterioração
cognitiva óbvia, a percepção, pelo paciente,
de que as crises comprometem de algum modo os seus objetivos de
vida, torna-se freqüentemente uma fonte de frustração
e inaceitação. A restrição do direito
de dirigir veículos pode resultar em uma limitação
econômica e social, reduzindo a mobilidade social e a auto-estima.
Mulheres em período de procriação freqüentemente
encaram os riscos da ocorrência de crises na gravidez e para
os futuros filhos. As experiências traumáticas, como
acidentes de veículos, afogamento e outros podem ser devastadoras
para o psiquismo. A dinâmica familiar alterada pode representar
um fator de dependência social e de inadaptação
na vida adulta. A pressão da percepção, pelo
paciente e familiares, da intensidade dessas limitações,
pode modificar a expectativa e a motivação quanto
à necessidade de tratamentos mais efetivos.
Custo-efetividade
em cirurgia de epilepsia: Os custos associados à cirurgia
de epilepsia variam, dependendo das dificuldades e complexidade
da avaliação pré-operatória, do tempo
de internação neste período, e as análises
são complicadas pela intervariabilidade entre pacientes,
dependendo do tipo de síndrome, frequência de crises
e outros fatores. Apesar destes, o custo por procedimento pode ser
fixado em um valor médio, enquanto os custos de atendimento
clínico a longo termo, e complicações do tratamento
clínico, como estados de mal, traumas , etc. são menos
previsíveis. Em um estudo de custo, de tratamento médico
versus cirúrgico, os custos cirúrgicos foram superados
pelos custos de tratamento médico, em uma média de
8 anos (Wiebe S. et al., 1995). Outro estudo demonstrou o
custo cumulativo da lobectomia temporal para epilepsia, equivalento-o
ao custo de uma artroplastia de joelho, quando comparados em termos
da extensão da qualidade de vida em anos (King JT et al.,
1994).
Aspectos
éticos do tratamento das epilepsias refratárias: As
considerações éticas mais freqüentes,
na atuação dos profissionais de um centro de tratamento
de epilepsia, concernem aos profissionais de saúde oferecerem
atenção apropriada ao processo de esclarecimento do
paciente e familiares e ao compromisso com o tratamento e ao favorecimento
da reabilitação plena do paciente, além da
confidencialidade das informações fornecidas. Os profissionais
de saúde devem integrar a habilidade técnica com traços
de caráter apropriados ao desempenho de suas funções.
Não se espera que todos os profissionais de saúde
apresentem uma forma completa e definitiva dessas "virtudes",
mas que elas sejam aperfeiçoadas no trabalho, através
de educação contínua, treinamento e aperfeiçoamento,
em colaboração com seus colegas.
Dificuldades
significativas podem surgir quando a percepção e o
julgamento quanto à propriedade das ações,
é diferente para o paciente e para os profissionais de saúde
envolvidos no tratamento. Quando estas dificuldades estão
presentes, esforços educacionais devem ser estruturados,
para permitir o esclarecimento adequado quanto à natureza
e gravidade da doença, ao tratamento proposto, aos riscos
e benefícios do tratamento, visando minimizar os conflitos.
A utilização de consentimentos pós informados
é obrigatória. A presença de consultores de
ética , tanto para a educação ética
como para a consultoria de casos reais, deve ser estimulada. A existência
de comissões de ética ativas, promovendo esforços
educacionais, atuando na consultoria de casos, e formulando políticas
e recomendações específicas, é essencial
(Smith ML, 1993).
Paulo
Cesar Ragazzo é Neurologista, Neurofisiologista Clínico,
Epileptologista do Centro de Tratamento de Epilepsia do Instituto
de Neurologia de Goiânia, GO.
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