Epilepsia
& Gravidez
Alberto
Costa e Carlos Guerreiro
Casar-se,
formar uma família e ter filhos constitui-se em um dos mais
importantes aspectos de uma vida normal. Infelizmente pacientes
com epilepsia, especialmente mulheres, não contavam até
recentemente com este direito básico. O receio de declínio
cognitivo e alterações comportamentais, a presença
de estigmas de doença psiquiátrica e possibilidade
de ocorrência de malformações, bem como a associação
da epilepsia com distúrbios da sexualidade condenavam a união
com pacientes com epilepsia. Nos séculos 18 e 19, portadores
de epilepsia eram freqüentemente institucionalizados e tratados
para a redução de seus impulsos sexuais e até
1986 estavam proibidos legalmente de casarem-se. A realização
de esterilização involuntária em mulheres epilépticas
foi aceita legalmente no estado da Carolina do Sul até 1986.
No Brasil não existem dados que façam menção
a legislações deste tipo. Este tipo de restrição
pode exercer influência, reduzindo o número de filhos
gerados por essas pacientes. Mulheres com epilepsia apresentam menores
taxas de casamento e fertilidade, traduzidos por menores números
de filhos quando comparadas com mulheres não epilépticas.
Melhores condições de tratamento e saúde, além
de melhor esclarecimento da população e classe médica
têm contribuído para redução na diferença
entre esses grupos desde a década de 80.
Epilepsia
é bastante comum em aproximadamente 1% da população
afetando tanto homens quanto mulheres, sendo o distúrbio
neurológico mais freqüente na prática obstétrica,
ocorrendo em 0,3 a 0,6% das gestações. Em mulheres,
o tratamento das crises deve levar em consideração
alguns aspectos adicionais como uso de anticoncepcionais, gravidez
e amamentação. O acompanhamento clínico dessas
mulheres deve ter como objetivo a obtenção do controle
total das crises, minimizando os efeitos adversos dos medicamentos
e das crises sobre a mãe e feto. Essas gestações
são classificadas como alto risco por apresentarem uma maior
probabilidade de complicações e o acompanhamento de
mulheres epilépticas que demonstram desejo de engravidar
apresentam três questões práticas. (1o.) Quais
são os efeitos da epilepsia sobre a gestação?
(2o.) Da gestação sobre a epilepsia? e (3o.) As conseqüências
da epilepsia e seu tratamento sobre o concepto?
Efeitos
da epilepsia sobre a gestação
Sexualidade
Mulheres epilépticas apresentam menor número de filhos
quando comparadas com não epilépticas. Razões
sociais como preconceito, baixa auto-estima e redução
na sexualidade parecem ser os fatores mais importantes para justificar
esses achados. Diminuição na sexualidade é
observada em 28 a 67% dos pacientes com epilepsia e parece ser mais
importante em portadores de crises parciais na epilepsia do lobo
temporal, mediados por possível interação das
drogas antiepilépticas (DAE) sobre o eixo hipotálamo-hipófise
reduzindo os níveis dos hormônios adenocorticotrófico,
cortisol, gonadotrofinas e prolactina. Disfunções
sexuais como vaginismo, dispareunia (dor à relação
sexual) e lubrificação vaginal insuficiente são
mais freqüentes em mulheres epilépticas, associadas
à diminuição de androgênios gonadais.
Observa-se também uma maior incidência de gestações
não planejadas em mulheres epilépticas jovens, solteiras
e com menor escolaridade. Uma possível explicação
para estes dados pode ser mais fácil acesso, escolha e eficácia
dos métodos anticoncepcionais em comparação
com mulheres menos instruídas.
Anticoncepção
O uso de anticoncepcionais não está associado à
piora nas crises epilépticas, contudo sua eficácia
pode ser reduzida durante o tratamento da epilepsia. Drogas antiepilépticas
interferem de maneira significativa sobre a eficácia dos
contraceptivos, especialmente anticoncepcionais orais. A maioria
das DAE é indutora do metabolismo hepático, acelerando
a eliminação dos estrógenos em até 50%
e reduzindo seus efeitos. Carbamazepina, fenobarbital, fenitoína,
primidona, topiramato, felbamato e oxcarbazepina são potentes
indutoras enzimáticas e diminuem consideravelmente a potência
dos contraceptivos. Valproato, gabapentina, vigabatrina, lamotrigina,
zonisamida e benzodiazepínicos por outro lado, não
parecem exercer efeitos significativos. O índice de falhas
dos anticoncepcionais nessa população é estimado
em até 8,5%, comparado com 1% das mulheres da população
geral. É recomendada a administração de formulações
contendo pelo menos 50 mg de estrógeno, devendo-se evitar
as apresentações tipo mini-dose (tabela I). Freqüentemente
ocorrem sangramentos durante o meio do ciclo menstrual, sugerindo
que a dose hormonal é insuficiente. Mesmo em mulheres sem
este sinal, não é possível prever a falha na
anticoncepção. Prescrição de drogas
não indutoras enzimáticas ou a combinação
de método anticoncepcional de barreira pode ser uma alternativa
mais eficaz.
TABELA
I - Recomendações para o uso de DAE na mulher em idade fértil |
1 |
Utilizar
anticoncepcional com pelo menos 50 mg de estrógeno. Combinar
método de barreira. |
2 |
|
3 |
Discutir
com a paciente os riscos da gestação para a mãe e feto, preferencialmente
antes da gestação. |
4 |
Uso
rotineiro de 1 a 5 mg/dia VO de acido fólico, preferencialmente
antes da gestação e 10 mg/dia VO de vitamina K. |
5 |
Tratamento
preferencial sob monoterapia, em doses fracionadas para evitar
picos de dose. Não alterar o regime de tratamento durante a
gestação |
6 |
Não
existe droga de escolha durante a gestação. Evitar politerapia
reduz a possibilidade de malformações fetais. |
7 |
Amamentação
deve ser encorajada, exceto em casos de sonolência excessiva
do neonato ou sinais de irritabilidade, mais freqüentes com
fenobarbital e benzodiazepínicos. |
8 |
Incentivar
cooperação na família para propiciar um horário adequado de
sono para a mãe. |
Modificado
de Lopes-Cendes et al, 2000. |
Complicações
maternas
Gestantes epilépticas estão sujeitas a maior probabilidade
de complicações que não epilépticas
(tabela II). Observa-se com maior freqüência sangramento
vaginal em 15 a 25% e descolamento prematuro de placenta em gestantes
epilépticas, justificadas por diminuição na
contratilidade uterina e deficiência de vitamina K. Indução
do parto é realizado em 4,3 vezes mais freqüente e cirurgias
cesarianas em até 2 vezes comparadas com controles. Estudos
mais recentes demonstram uma redução nestes números,
traduzida por uma melhor assistência médica demonstrando
que muitas vezes a excessiva preocupação do médico
assistente e paciente, pode ser responsabilizada como a causa das
intervenções mais agressivas.
TABELA II - Resumo dos riscos da gestação em
mulheres epilépticas |
Risco
|
Complicações
|
25-33% |
Aumento na freqüência de crises |
2 a 3 vezes |
Risco de descolamento prematuro de placenta |
15 - 25% |
Risco de sangramento vaginal |
7% |
Risco de hemorragia neonatal sem reposição de vitamina K |
10% |
Risco de dismorfismo facial |
4- 6% |
Risco de malformações maiores |
1 - 2% |
Risco de espinha bífida com valproato |
0,5 - 1% |
Risco de espinha bífida com carbamazepina |
Modificado
de YERBY, 1992. |
Efeitos
da gestação sobre a epilepsia
Freqüência de crises epilépticas na gestação
e puerpério
A maioria das gestantes epilépticas não apresenta
modificação na freqüência de crises durante
a gravidez e puerpério. Cerca de um quarto a um terço
das gestantes experimenta uma piora no controle das crises. Identificar
corretamente a gestante que pode apresentar piora no controle das
crises, especialmente crises tipo tônico-clônica generalizada
pode minimizar a ocorrência de complicações
para a mãe e feto.
Durante
a gestação ocorrem modificações hormonais
como aumento de gonadotrofina coriônica, progesterona e estrógenos.
Estrógenos e gonadotrofina apresentam atividade epileptogênica
em estudos experimentais e clínicos ao passo que progesterona
exerce uma leve ação antiepiléptica, especialmente
em modelos animais. Estes dados podem contribuir para justificar
o maior número de crises no primeiro ou terceiro trimestres
gestacionais observados em gestantes com aumento na freqüência.
Não está claro na literatura se existe um predomínio
em algum trimestre gestacional. Realizamos um estudo prospectivo
em 50 gestantes epilépticas de julho de 1991 a setembro de
1999, das quais 28% aumentaram a freqüência de crises
e não conseguimos identificar predomínio em qualquer
trimestre gestacional ou fator de risco para aumento na freqüência.
Em mulheres que apresentam piora no controle de crises, a falta
de aconselhamento pré-gestacional com orientações
sobre a evolução da gestação, complicações,
importância da adesão ao tratamento medicamentoso e
suplementação vitamínica parece ser um dos
mais importantes fatores de descontrole de crises. A má-adesão
ao tratamento, com suspensão ou redução voluntária
da dose, por receio de malformações fetais é
o principal fator de piora na freqüência. Infelizmente
nos defrontamos, em nossa experiência, com gestantes que reduziram
ou suspenderam suas medicações encorajadas por seus
médicos, denotando desconhecimento dos riscos que a suspensão
abrupta das DAE em qualquer momento, inclusive na gestação
pode estar associada a crises tipo tônico-clônicas ou
estado de mal, com graves conseqüências para o feto e
paciente. Após o parto e durante o puerpério, quando
a mãe se defronta com as exigências da amamentação,
pode ocorrer um aumento na freqüência de crises causada
por supressão do sono, possivelmente associado ao estresse
da maternidade.
Outros
fatores como modificações na farmacocinética
das DAE, aumento do clearance metabólico, ganho de peso e
edema, consumo de ácido fólico e sexo do feto não
estão associados conclusivamente com descontrole das crises
na gestação. O consumo de álcool, por sua propriedade
de indução do metabolismo hepático com redução
dos níveis das DAE e contribuição para má-adesão,
e privação do sono podem estar relacionados com aumento
no número de crises.
Um
controle adequado das crises epilépticas pode ser obtido
fornecendo-se informações claras e objetivas para
a mulher, idealmente antes da concepção. A importância
da manutenção do uso correto das DAE e dos horários
de sono pode contribuir para que a maioria das gestantes se mantenha
bem controlada durante a gestação.
Conseqüências
da epilepsia e tratamento sobre o concepto
Complicações fetais
Mulheres com epilepsia apresentam maiores taxas de abortos provocados,
possivelmente motivados por receio de malformações,
descontrole das crises ou medo de transmissão da epilepsia
para o feto. Alguns estudos têm observado a ocorrência
de baixo peso ao nascer e de menor perímetro cefálico
em filhos de mães epilépticas, particularmente em
usuárias de politerapia com fenobarbital e primidona, sofrendo
influência de fatores étnicos, genéticos e ambientais.
Filhos de mães epilépticas apresentam menores índices
de vitalidade perinatal (APGAR) e maiores taxas de mortalidade perinatal
que a população geral. Acompanhamento médico
adequado, particularmente com o uso racional das DAE e reposição
de folato, podem melhorar significativamente esses resultados.
Malformações
fetais
O maior receio de mães epilépticas, quando grávidas,
é a de gerar uma criança malformada. As malformações
podem ser divididas em malformações menores e maiores
como fenda palatina e lábio leporino, anomalias craniofaciais,
defeitos cardíacos e do tubo neural como espinha bífida,
ocorrendo em 3 a 10% das gestações. Estes defeitos
não são específicos de uma determinada DAE,
ocorrendo também em filhos de mães usuárias
crônicas de álcool. Uma exceção é
a associação de valproato e carbamazepina com defeitos
do tubo neural como espinha bífida, estimado em 1 a 2%. É
importante salientar que mesmo mulheres não epilépticas
apresentam um risco geral para malformações fetais
da ordem de 2 a 3% das gestações. O risco de malformações
aumenta quando em politerapia em altas doses e não fracionadas,
especialmente com fenobarbital e primidona. Malformações
menores ou anomalias são observadas freqüentemente na
população geral em cerca de 14%. O achado associado
de várias anomalias em filhos de mães epilépticas
é descrito em cerca de 4% sendo que estas anomalias costumam
tornar-se imperceptíveis com o crescimento da criança.
Os
mecanismos propostos para explicar a ocorrência de malformações
são a formação de substâncias tóxicas
relacionadas a níveis elevados e politerapia com várias
DAE, formação de radicais livres e deficiência
de folato. O uso de DAE está associado a grande redução
dos níveis de ácido fólico. Mães com
filhos portadores de malformações fetais apresentam
níveis mais baixos de folato que mães com filhos normais.
A reposição de folato recomendada é de 0,4
a 5 mg/dia e deve ser realizada rotineiramente, no mínimo
3 meses antes da concepção.
É
importante salientar que apesar desses dados, o uso rotineiro pré-gestacional
de folato previne a ocorrência de malformações
e que mais de 90% das gestantes epilépticas geram filhos
completamente saudáveis.
Amamentação
O uso de DAE costuma ser mantido durante a gestação
e puerpério. Entretanto freqüentemente nos questionam
sobre a segurança de amamentar o neonato. A decisão
de amamentar ou não deve ser baseada em vários fatores
como a vontade da mãe, número de DAE em uso, condição
clínica do neonato e perfil farmacocinético das DAE
com suas diferentes taxas de excreção no leite (tabela
III). As concentrações das DAE variam no início
e final da amamentação e de um seio para outro.
Na
maioria dos casos a amamentação deve ser encorajada.
Dar de mamar sentada no chão pode ser uma opção
para mães com crises freqüentes. A ocorrência
de sinais adversos como abalos, irritabilidade ou sonolência
pode sugerir a interrupção da amamentação.
Medicações sedativas como benzodiazepínicos
e barbituratos são as mais relacionadas com alterações
do sono e comportamento no lactente. Valproato, apesar de baixa
taxa de excreção pode ser responsabilizado por reações
idiossincráticas no neonato. Uma alternativa nestes casos
é evitar a amamentação no período neonatal
precoce quando os níveis das DAE são altos e a criança
muito pequena.
TABELA III - Taxas de excreção das DAE no leite humano |
Valproato |
5 - 10% |
Fenitoína |
30% |
Fenobarbital |
40% |
Carbamazepina |
45% |
Primidona |
60% |
Etossuximida |
90% |
Lamotrigina |
23 -50% |
Considerações
gerais
A condução do tratamento de mulheres epiléptica
deve ser realizada com clareza, instruindo a paciente sobre os riscos
de uma gestação, salientando que mais de 90 % tem
filhos saudáveis. Deve-se também repor rotineiramente
ácido fólico e administrar DAE em doses fracionadas,
evitando-se as associações de medicações.
Referências
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- Lopes-Cendes I, Guerreiro CAM, Costa ALC. Aspectos reprodutivo-endócrinos.
In: Guerreiro CAM et al, (eds). Epilepsia, 3a.ed. São Paulo.
Lemos Editorial, 2000:243-246.
- Sawhney H, Vasishhta K, Suri V, Khunnu B, Goel P, Sawhney IMS.
Pregnancy with epilepsy - a retrospective analysis. Int J Gynaecol
Obstet 1996;54:17-22.
- Tanganelli P, Regesta G. Epilepsy, pregnancy, and major birth
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5):89-93.
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T. et al,(eds). Epilepsy and pregnancy, Petersfield,Wrightson biomedical
publishing Ltd,1997:113-123.
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1982:387-388.
- Yerby MS. Risks of pregnancy in women with epilepsy. Epilepsia
1992;33(suppl.1):S23-27.
Alberto
Costa e Carlos Guerreiro são docentes do Departamento de
Neurologia, FCM Unicamp
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