Aspectos
psiquiátricos em epilepsia
Renato
Luiz Marchetti
Crises
epilépticas são eventos em geral súbitos e
transitórios que podem se manifestar por uma grande variedade
de sintomas e sinais e que têm como base fisiopatológica
uma descarga neuronal excessiva no sistema nervoso central (SNC).
As manifestações clínicas das crises epilépticas
refletem os fenômenos de excitação e ou inibição
neuronal na área cerebral afetada. As crises epilépticas
podem ocorrer ocasionalmente provocadas por condições
médicas especiais como doença tóxico-metabólica
ou febre (em algumas crianças), mas nestes casos se tratam
de fenômenos isolados. Já epilepsia é uma desordem
do funcionamento cerebral provocada por diversas patologias cuja
expressão final comum são crises epilépticas
recorrentes na ausência das condições acima.
As taxas de prevalência na população geral,
na maioria dos estudos, ficam entre 0,4% e 1%. As taxas de prevalência
de vida variam entre 1,5% e 5%. As taxas de incidência anual
na maioria dos estudos variam entre 50 e 100/100.000/ano. A Organização
Mundial de Saúde (OMS) estima que epilepsia é o transtorno
cerebral mais comum na população geral, afetando ao
menos 37 milhões de pessoas em todo o mundo, 80% das quais
vivendo em países em desenvolvimento. Especialmente nesses
países, a epilepsia impõe uma carga significativa
às comunidades, com grande número de pacientes permanecendo
sem tratamento.
Embora
em 70 a 80% dos casos o prognóstico seja favorável,
com possibilidade de remissão com o uso de drogas antiepilépticas
(DAE), uma parcela de 20 a 30% de pessoas com epilepsia irá
apresentar o problema cronicamente, a despeito dos tratamentos empregados.
Ou seja, continuará apresentando crises epilépticas,
as suas conseqüências e as do seu tratamento. As pessoas
com epilepsia apresentam um risco global de morte associada a diferentes
causas duas a três vezes maior que a população
geral.
O impacto
da epilepsia sobre esses indivíduos, seus familiares e a
sociedade como um todo é significativo e decorre de problemas
médicos e sociais (restrições e estigma que
envolvem a epilepsia). Uma parcela significativa apresenta déficits
cognitivos, com quociente de inteligência (QI) inferior a
100 em 65% dos casos. Com freqüência ocorre prejuízo
de uma série de oportunidades sociais, com redução
da socialização e profissionalização.
Pelo menos 30% das pessoas com epilepsia receberam educação
básica incompleta ou educação especial e 50%
não receberam qualquer qualificação profissional
ou apenas inferior. Uma parcela de 75% apresenta problemas no emprego
e até 30% estão desempregados. Em conseqüência,
uma parcela de até 30% apresenta dificuldade para se manter
de maneira independente. Uma boa parte destas dificuldades decorre
do estigma social envolvendo a epilepsia. A atitude social mais
comum da população em geral é rejeitar as pessoas
com epilepsia que via de regra tentam esconder o seu problema.
Problemas
psicológicos das pessoas com epilepsia
No plano psicológico, o impacto devido aos problemas médicos,
econômicos e sociais da epilepsia contribui de maneira significativa
e muitas vezes decisiva no sentido de prejudicar a qualidade de
vida de pacientes e familiares e pode ser fator de risco para o
desenvolvimento de transtornos mentais. Seguramente constitui um
desafio adaptativo, infelizmente nem sempre bem sucedido. É
por isso que o tratamento das pessoas com epilepsia vai além
da simples prescrição das DAE, pois também
envolve aconselhamento, suporte, fornecimento de informações
sobre diferentes áreas (como doença e tratamento,
casamento, herança e concepção, emprego, condução
de veículos motorizados e outros aspectos sociais), auxílio
no processo de elaboração e no combate ao estigma,
medo, restrição, desesperança e baixa auto-estima.
Epilepsia
e transtornos mentais
Uma discussão muito antiga e muitas vezes excessivamente
ideológica é a da associação entre epilepsia
e doença mental. Estudos epidemiológicos apontam de
maneira inequívoca para uma elevação da prevalência
de transtornos mentais em crianças e adultos com epilepsia
(entre 30% e 50%) em comparação com a população
geral.
A prevalência
de transtornos mentais se acentua claramente quando se passa dos
estudos populacionais para aqueles que avaliam grupos de pacientes
com epilepsias refratárias a tratamento clínico.
Possíveis
fatores predisponentes para estes transtornos mentais são
a presença de carga genética aumentada para transtornos
mentais, agressões precoces sobre o SNC, epilepsia de início
precoce com crises freqüentes, lesão cerebral difusa,
QI rebaixado, epilepsia do lobo temporal (ELT), disfunções
do relacionamento familiar, atitudes psicológicas desadaptativas
(dependência, negação, atitudes paranóides,
etc.), desvantagens sociais decorrentes da epilepsia (discriminação,
estigmatização), terapia medicamentosa por múltiplas
DAE e sexo masculino (possivelmente sexo feminino para psicoses).
Diferentes quadros clínicos podem ocorrer: retardo mental,
transtornos do desenvolvimento psicológico, transtornos do
comportamento na infância, transtornos neuróticos,
transtornos do impulso, transtornos de personalidade, transtornos
do humor (principalmente depressão), transtornos psicóticos,
transtornos mentais orgânicos e disfunções sexuais.
Embora tais transtornos mentais também ocorram na população
em geral, não sendo exclusividade de pessoas com epilepsia,
nelas podem assumir algumas características específicas,
que tornam muitas vezes o seu diagnóstico mais difícil,
necessitando o profissional de saúde mental envolvido com
o caso possuir algum grau de formação dirigida para
a área, e de preferência alguma experiência com
casos anteriores. Nesse sentido, é lamentável a constatação
de que a educação para os transtornos mentais associados
à epilepsia não consta de maneira persistente no programa
curricular das residências médicas de neurologia e
psiquiatria no Brasil.
Prevenção
e tratamento dos transtornos mentais em pessoas com epilepsia
A prevenção dos transtornos mentais associados
à epilepsia se baseia nos cuidados dos problemas psicológicos
(abordados acima) e numa série de medidas que têm como
objetivo a redução dos efeitos neurotóxicos
dos tratamentos pelas DAE. Algumas destas DAE e/ou alguns regimes
medicamentosos podem ser mais associados à ocorrência
de certos transtornos mentais em alguns indivíduos, e devem,
sempre que possível, ser evitados. Por outro lado, outras
DAE podem estar associadas a efeitos psicofarmacológicos
específicos, fato do qual se pode tirar proveito em algumas
situações selecionadas.
O tratamento
dos transtornos mentais em pacientes portadores de epilepsia é
composto pelos tratamentos psicoterapêutico, psicofarmacológico
e de reabilitação social. Do ponto de vista psicoterapêutico,
não devem ser esquecidos os problemas básicos psicossociais
que a maioria das pessoas com epilepsia enfrenta, já abordados
acima, logicamente dentro da circunstância de cada paciente.
O tratamento psicofarmacológico se torna mais complexo em
função da modificação do limiar epileptogênico
pelos psicofármacos (o que pode mudar a facilidade com que
as crises ocorrem). Isto pode ser exemplificado pelo fato dos antipsicóticos
e antidepressivos apresentarem propriedades epileptogênicas
leves a moderadas, podendo induzir uma possível piora das
crises epilépticas. Ao contrário, os ansiolíticos
benzodiazepínicos normalmente elevam o limiar epileptogênico,
não interferindo de maneira prejudicial no tratamento da
epilepsia, porém, requerendo especial atenção
por ocasião da retirada, pelo risco da ocorrência de
crises de rebote. Outra particularidade do tratamento psicofarmacológico
destes pacientes é a possível ocorrência de
interações farmacológicas. Elas acontecem principalmente
em função da metabolização hepática
das drogas. Como a maioria das DAE e dos psicofármacos são
metabolizados no fígado, podendo envolver os mesmos sistemas
enzimáticos neste processo, estas interações
não são incomuns, levando a possíveis intoxicações
ou perda do efeito medicamentoso, tanto do tratamento antiepiléptico
como do psiquiátrico.
Diagnóstico
diferencial e o problema das crises não epilépticas
Diferentes tipos de manifestações clínicas
podem estar associados às crises epilépticas, e não
somente a popularmente conhecida convulsão. Isto faz com
que se estabeleça a necessidade de diferenciar estas crises
de outros problemas médicos que também podem se apresentar
sob a forma de crises recorrentes. O diagnóstico diferencial
assume importância capital quando analisamos o problema das
crises não epilépticas. Aproximadamente 5% dos pacientes
que freqüentam os serviços de epilepsia em geral, e
até 20% a 30% dos que são atendidos nos centros de
epilepsia refratária apresentam de maneira isolada ou associada
à epilepsia as assim chamadas crises não epilépticas:
crises recorrentes que são confundidas com as crises verdadeiramente
epilépticas e que com elas se assemelham. Na maioria dos
casos são manifestações psicogênicas
que estão associadas ao grupo dos transtornos mentais conversivos,
dissociativos e somatoformes. Tratam-se de manifestações
comportamentais involuntárias, de natureza inconsciente.
O impacto médico, psicológico, econômico e social
que esses problemas apresentam só recentemente tem sido corretamente
apreciado. Pacientes com crises não epilépticas são
com freqüência socialmente incapacitados e sujeitos a
um índice de iatrogenia significativo, como administração
crônica de regimes de DAE tóxicos e obviamente ineficazes,
e mesmo, de maneira não rara, intervenções
invasivas como indução de coma barbitúrico,
para tratamento de "pseudo-estadus epilepticus". O diagnóstico
e tratamento das crises não epilépticas é uma
área fascinante e complexa que tem recebido uma atenção
crescente nos centros especializados no exterior, o que infelizmente
não acontece no nosso meio, com poucas exceções.
Como
foi observado, epilepsia é uma condição médica
comum e que se acompanha de problemas sociais, psicológicos
e, possivelmente, transtornos mentais. A prevenção
e o tratamento desses se acompanha de particularidades. Os profissionais
de saúde mental que atendem as pessoas com epilepsia não
podem se restringir a visões gerais sobre problemas psicológicos
e transtornos mentais. É necessário o conhecimento
específico, o que obriga ao estudo da epilepsia nas suas
diferentes dimensões. Nesse sentido, é lamentável
a discrepância entre a grande demanda por profissionais com
essas qualificações e o que o nosso sistema de saúde
oferece. Um dos aspectos da luta por cidadania plena das pessoas
com epilepsia envolve a reivindicação por capacitação
técnica dos profissionais de saúde mental que deles
cuidam.
Renato
Luiz Marchetti é Doutor em Psiquiatria pela Faculdade
de Medicina da Universidade de São Paulo e Coordenador do
PROJEPSI (Projeto de Epilepsia e Psiquiatria) do Instituto de Psiquiatria
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade
de São Paulo.
Leitura
recomendada : |
- Marchetti
RL. Aspectos Psiquiátricos da Epilepsia. In: Fundamentos
Neurobiológicos das Epilepsias. Eds: Da Costa JC,
Palmini A, Yacubian EMT, Cavalheiro EA. Lemos Editorial,
1998, pp 1297-1319, V.2.
- Marchetti
RL. Terapêutica nos Transtornos Mentais Associados
à Epilepsia. In: Condutas em Psiquiatria. Eds: Cordás
TA, Moreno
RA. Lemos Editorial, 1995, pp 283-323.
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