A
questão das patentes na política brasileira de fármacos
O governo
brasileiro conseguiu o apoio de mais de 52 países para levar
a discussão sobre patentes de medicamentos e acesso à
saúde na próxima reunião da Organização
Mundial do Comércio (OMC). A questão das patentes
nesse mercado envolve, ao mesmo tempo, os interesses econômicos
das grandes indústrias de um setor com alta lucratividade
- que alegam o alto custo do desenvolvimento de inovações
- e o fato de esses produtos serem essenciais para a vida dos cidadãos.
O próximo passo é a elaboração de um
documento de consenso sobre o tema. Fechado o documento, a discussão
entra na pauta da IV Reunião Ministerial da OMC, que acontece
em novembro no Catar.
A discussão
deve definir a posição da OMC em relação
ao acesso a medicamentos e a outros insumos de saúde. O objetivo
é fazer com que o documento seja assinado pelos 125 países
membros que compõem a OMC. Em todas as discussões,
o Brasil continua a defender a flexibilização das
leis internacionais de patentes para medicamentos e o acesso amplo
e irrestrito aos insumos de saúde.
Segundo
afirmam Sérgio Queiroz e Alexis Jesús Velásquez
Gonzáles, no artigo Mudanças recentes na estrutura
produtiva da indústria farmacêutica "na indústria
farmacêutica a proteção patentária é
um instrumento fundamental de apropriação dos resultados
da inovação, devido à grande diferença
entre os altos custos de inovação e os baixos custos
da imitação". A ausência de proteção
ao inventor seria uma das razões para as empresas não
investirem em atividades de pesquisa. O artigo está publicado
no livro a Brasil: Radiografia da Saúde. (veja resenha)
Por
outro lado, segundo Maria Fernanda Gonçalves Macedo, especialista
em propriedade industrial, da Far-Manguinhos/Fiocruz, a patente
é também um instrumento anti-competitivo, na medida
em que estabelece um monopólio. Ela é vantajosa para
os países que tem capacidade industrial e massa crítica
para enfrentar o poder inerente ao monopólio. Segundo ela,
a maioria dos países desenvolvidos só passou a conceder
patentes quando já possuía essa capacidade. Itália,
Alemanha, Suíça, França e Japão, somente
incorporaram essa política na década de 70.
Macedo
explica que "a patente é uma concessão de exclusividade
dada pelo Estado para quem tenha criado algo técnico novo,
que não seja óbvio para as pessoas que trabalham com
aquela tecnologia, e que seja passível de utilização
em um meio produtivo (indústria, agricultura, pesca, etc.).
A patente tem vigência de 20 anos a partir da solicitação
dessa proteção (depósito do pedido de patente)
e dá o direito, a seu proprietário, de impedir terceiros
de explorar (produzir, vender, comprar, estocar, etc.) o seu objeto".
O Brasil
foi um dos primeiros signatários da Convenção
de Paris, o primeiro tratado de patentes do mundo, assinado em 1883.
Mas, segundo explica Leila da Luz Lima Cabral, diretora da Info
Connection e especialista em propriedade industrial, "em 1971,
a legislação brasileira de propriedade industrial
passou a não permitir a concessão de patentes em alguns
setores industriais, entre eles os produtos químicos e farmacêuticos.
O modelo econômico e político da época entendia
que não poderia haver monopólio para produtos ditos
essenciais para a saúde da população".
Pretendia-se, assim, que houvesse um desenvolvimento tecnológico
desses setores.
Entretanto,
em 1996, com as políticas de abertura econômica do
mercado, esse modelo foi considerado ultrapassado e impeditivo de
melhores relacionamentos comerciais internacionais. Isso levou o
Brasil a aceitar as queixas dos patenteadores, que diziam não
ser o mercado brasileiro atrativo, já que as inovações
eram passíveis de cópia. Em 1996, o Brasil voltou
a aceitar as patentes legalmente.
No
Brasil, para Macedo, falta fortalecer a indústria farmoquímica
(incluindo a química fina e a biotecnologia). Os princípios
ativos dos medicamentos, mesmo aqueles já sem a proteção
patentária, são, em sua grande maioria, importados.
Para ela, é preciso investir também na pesquisa de
substâncias inovadoras, as quais podem ser protegidas por
patente.
O desenvolvimento
de medicamentos para doenças tropicais, como malária
e febre amarela, encontram apenas em centros de pesquisa universitários,
públicos e fundacionais, o seu meio para desenvolvimento
de inovações. Para Cabral, alguns tipos de doenças
não são o alvo do interesse da indústria. Os
preços que poderão ser pagos por esses medicamentos,
que atendem geralmente a uma camada menos favorecida da população,
não são compensadores para a indústria.
Ameaça
ao monopólio
O monopólio
de grandes empresas sobre algumas drogas pode prejudicar o acesso
a certos tipos de tratamentos. Para coibir os abusos relativos ao
monopólio de grandes empresas, o acordo Trips (Trade-Related
Aspects of Intellectual Property Rights), prevê a concessão
de licença de uso da patente sem a autorização
do proprietário. Trata-se da licença compulsória.
Em caso de abuso de poder econômico e nos casos de interesse
público e emergência nacional, o Estado pode conceder
a licença compulsória da patente para possibilitar
a produção local do produto patenteado. A simples
possibilidade da utilização dessa prerrogativa tem
obrigado as multinacionais a reduzir os preços sem, no entanto,
anular os seus elevados lucros.
Para
Cabral, mais do que uma punição, espera-se que a licença
compulsória seja utilizada como um instrumento de barganha.
Um exemplo recente foi o caso em que o Ministro da Saúde,
José Serra, conseguiu reduzir o preço de medicamentos
anti-Aids pressionando os grandes laboratórios.
Fernanda
Macedo esclarece que "na verdade, independentemente da OMC,
os Estados Unidos têm como prática pressionar os outros
países quando julgam ameaçados os interesses das empresas
americanas no exterior. A ameaça é feita pela aplicação
de uma lei americana, que permite a aplicação de sansões
comerciais a países que colocarem em prática políticas
internas que afetem os negócios de companhias americanas".
A patente
é tipicamente um instrumento para garantir o retorno dos
investimentos realizados pela indústria, que espera o retorno
através da comercialização dos produtos e ainda
pelo pagamento de royalties (direitos de propriedade). Mas
diz-se que a patente tem também um objetivo social e desenvolvimentista.
Segundo Cabral, isso seria possível porque, quando uma patente
é concedida, em troca da exclusividade, o inventor é
obrigado a revelar os dados de seu invento à sociedade, que
poderá utilizá-los para de gerar novos produtos e
conhecimentos. "O sistema de patentes constitui-se em um sistema
de trocas muito bem estruturado", completa Cabral.
No
entanto, segundo Dante Alário Junior, diretor da Biolab Sanus
e presidente da Associação dos Laboratórios
Farmacêuticos Nacionais (Alanac), não há patente
que descreva corretamente o processo. "Não tem como
você repetir tudo o que está descrito numa patente
e chegar ao produto exatamente igual ao original", diz.
Patentes
de fármacos no Brasil
O Brasil
já tem cerca de 400 patentes de drogas concedidas. Isso se
deveu ao sistema pipeline - introduzido no Brasil com a nova
lei de patentes, em 1996 - e que permitiu o reconhecimento retroativo
de patentes do período entre 15 de maio de 1996 e 14 de maio
de 1997. Ao todo, foram depositados apenas cerca de 1200 pedidos
- após a nova Lei de patentes - no Instituto Nacional de
Propriedade Industrial (Inpi), que, no Brasil, é o órgão
responsável pela concessão de patentes. Cabral ressalta
que atualmente estão começando a ser examinados os
pedidos de patente depositados em 1995, ou seja há 6 anos
atrás (cerca de 72 meses), quando o ideal seria que os pedidos
de 3 anos atrás (1997-1998), já estivessem começando
a ser examinados.
O problema
do baixo pedido de patentes, segundo Cabral, é decorrente
do pouco ou nenhum estímulo, seja do governo ou da indústria,
para que se façam investimentos em pesquisas que gerem produtos
patenteáveis.
A concessão
de patentes não se adapta ao modelo de reconhecimento ao
trabalho científico existente no Brasil. A publicação
de artigos, item importante na avaliação da produtividade
do pesquisador, pode por a perder a característica de novidade
de uma inovação.
Macedo
concorda com Cabral e acrescenta que, estratégias como a
criação de comissões para julgar as pesquisas
estratégicas, cujos resultados devam ser protegidos, podem
evitar os problemas resultantes da divulgação antes
da proteção. Uma saída encontrada é
a da publicação de aspectos puramente teóricos,
que ocorrem geralmente na fase da descoberta.
Em
instituições de países desenvolvidos, a recompensa
dos esforços intelectuais têm sido objeto de políticas
de propriedade intelectual. Segundo Macedo, no Brasil, a recompensa
dos inventores que trabalham em entidades públicas está
estabelecida na Lei de Propriedade Industrial de 1996. Algumas instituições
já implantaram ou estão em fase de implantação
e revisão de suas políticas de distribuição
de royalties.
O Inpi
tem estimulado a implantação de núcleos de
propriedade industrial nas universidades, como na Universidade Federal
de São Carlos, na Universidade Federal de Minas Gerais, e
na Universidade Estadual de Campinas. Surgem também escritórios
e agências com a finalidade de facilitar e agilizar os trâmites
relativos à concessão de patentes. A Fiocruz, a Agif
e o Nuplitec são alguns exemplos.
Há
pouco mais de dez anos, foi criada a Coordenação de
Gestão Tecnológica da Fundação Oswaldo
Cruz, para proteger os resultados de pesquisa e desenvolvimento
gerados pelo seu corpo técnico, transformando-os em ativos
econômicos passíveis de negociação. O
objetivo também é proporcionar o acesso à informação
tecnológica com fins de programação de pesquisas,
intercâmbio e parceria técnico-científica.
Com
interesses semelhantes, está surgindo no setor farmoquímico
o projeto Agif que, segundo Leila Cabral, tem como principal foco
fazer interagir o setor de P&D e o empresarial. Esses setores,
apesar de apresentarem características muito distintas, são
complementares. Ambos buscam obter soluções altamente
produtivas, inovadoras e impulsionadoras da competitividade, mas
que, por suas especificidades e dinâmicas, apresentam dificuldades
de harmonização de suas linguagens e objetivos. Assim,
o principal objetivo da Agif, segundo Cabral - que é consultora
da área de propriedade intelectual do projeto - é
a intermediação da negociação, presente
em todo o processo de desenvolvimento da pesquisa. A Agência
também participará da obtenção do privilégio
patentário, no Brasil ou no exterior, e, principalmente procurará
parceiros que possam subsidiar e complementar os recursos financeiros
necessários. A agência atuará inicialmente no
setor farmacêutico.
A Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
também vem demonstrando sua preocupação com
esta questão, tanto que criou, no ano passado, um Núcleo
de Patentes e Licenciamento de Tecnologia, o Nuplitec.
O núcleo será responsável pela implementação
de ações visando a adequada proteção
à propriedade intelectual de inventos gerados em projetos
da Fapesp. Também fará o licenciamento ou venda da
patente a empresas.
(SP)
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