Editorial:

Fármacos e Medicamentos: Urgências
Carlos Vogt

Reportagens:
Genéricos são a linha de frente da política de medicamentos
Instrumentos de regulamentação dos genéricos
Descentralização na distribuição de medicamentos enfrenta falta de estrutura
Luta contra a Aids terá de buscar novas formas de financiamento
Aids nos países pobres: lições da experiência brasileira
Poder das
multinacionais inibe a indústria brasileira
Inovação e fomento à indústria estão entre os principais desafios
Fundação produz medicamentos de qualidade para a população carente
Falta de garantia faz Ministério acabar
com os similares
Investimento em pesquisa de fármacos
no Brasil ainda é pequeno
A questão das
patentes na política brasileira de fármacos
Conhecimento tradicional e direito à propriedade intelectual
Fitoterápiocos: o mito
do natural
Artigos:
Aproveitamento das inovações farmacêuticas no Brasil
Antônio Camargo

Fitoterápicos: alternativa para o Brasil
Lauro Barata

Cronofarmacologia e Melatonina - o hormônio que marca o escuro
Regina Pekelmann Markus
Farmacologia perde integração com a cultura
Ulisses Capozoli
Notícias e "notícias" na comunicação pública da saúde
Isaac Epstein
Inovação e Gestão em um Mundo Globalizado
Antônio Buainain
Sergio Paulino de Carvalho

Acesso aos antiretrovirais na América Central
Eloan Pinheiro
Fernanda Macedo
Cristina D'Almeida

Poema
Bibliografia
Créditos

Aids nos países pobres: lições da experiência brasileira

A política do governo brasileiro de combate à Aids (ver reportagem especial na Com Ciência) vem sendo reconhecida como um modelo a ser seguido pelo resto do mundo, pelos resultados alcançados e também por causa das esperanças suscitadas para o tratamento da doença nos países mais pobres.

Muitas dessas nações vivem uma situação dramática. A África é a região mais afetada, onde a epidemia tomou forma de uma catástrofe humanitária de proporções colossais. Cinco países - Lesoto, Suazilândia, Zimbábue, Bostuana e Zâmbia, todos no sul do continente - possuem mais de 20% da população contaminada com o vírus HIV. Outros quatro - África do Sul, Etiópia, Quênia e Nigéria - possuem mais de 2 milhões de infectados cada um. A Índia, na Ásia, também se inclui nesse grupo. Em Botsuana, calcula-se que a esperança de vida esteja 23 anos abaixo do que estaria sem a epidemia.

O preço do principal medicamento contra a Aids - o coquetel tríplice - é de US$ 10.000 a US$ 15.000 por ano para cada paciente. Num país como Zâmbia (sul da África), com um produto interno bruto (PIB) per capita anual de US$ 756, esse preço é proibitivo. A produção de remédios genéricos contra Aids no Brasil, entretanto, reduziu esse preço para US$ 5.000 em território nacional. Isso permitiu ao país se tornar a única nação em desenvolvimento que distribui medicação para Aids gratuitamente aos pacientes.

Tina Rosenberg, em um artigo para o jornal norte-americano The New York Times (28/1/2001), diz que, há dois anos, "ninguém pensava em usar a terapia tripla em países pobres. Hoje, é raro um encontro de líderes internacionais onde essa idéia não é discutida." Rosenberg credita boa parte dessa mudança ao sucesso do programa brasileiro: "O Brasil rasgou todas as desculpas pelas quais os países pobres não poderiam combater a Aids".

Os US$ 5.000 anuais pagos pelo governo brasileiro ainda estão longe de satisfazer uma nação como Zâmbia, mas Rosenberg aponta vários países que teriam condições de reproduzir o programa brasileiro: os da América Latina, da Europa Central e Oriental, grande parte da Ásia, os países da antiga União Soviética e pelo menos 10 países da África Sub-Saariana.

Quebra de patentes

O programa brasileiro também está trazendo esperanças aos países pobres com relação a um outro grande obstáculo ao tratamento da Aids nesses lugares, a intransigência das empresas fabricantes dos medicamentos, que resistem a vender os seus produtos a preços mais acessíveis. Por exemplo, até recentemente, a África do Sul estava sendo processada por 39 empresas fabricantes de medicamentos, porque o país produzia os remédios em seu território sem pagar royalties. A África do Sul usou uma lei aprovada em 1997, que permite a licença compulsória (veja texto A questão das patentes na política brasileira de fármacos) para produzir medicamentos considerados essenciais (produção sem pagamento de royalties aos fabricantes). Em abril, após várias manifestações contrárias ao procedimento das empresas na imprensa internacional, todas elas retiraram seus processos contra o país. Outras nações sofrem problemas semelhantes, inclusive o Brasil.

O caso de maior repercussão envolvendo o Brasil foi a disputa com a multinacional suíça Hoffman-La Roche para que o preço do medicamento Nelfinavir fosse reduzido. Após a decisão do governo brasileiro de quebrar a patente do remédio, a Roche entrou num acordo e baixou o preço do remédio em 40% (leia notícia na Com Ciência). Apesar de essa possibilidade ser prevista na lei de patentes brasileira, seria a primeira vez em que um país quebraria a patente de um medicamento por razões humanitárias. Esse desfecho foi visto como uma prova de que os países em desenvolvimento podem levar a melhor se enfrentarem os monopólios.

Outro processo, que ainda se desenrola, é a ação dos Estados Unidos contra o governo brasileiro junto à Organização Mundial do Comércio (OMC). O pomo da discórdia é a lei de patentes brasileira, que permite que patentes sejam quebradas em caso de necessidade urgente. Os norte-americanos argumentam que a ação não é contra o programa anti-Aids brasileiro, mas contra essa característica específica da lei nacional. Argumentam também que o progresso das pesquisas sobre os medicamentos anti-Aids teria sua velocidade bastante diminuída se as patentes pudessem ser quebradas. Além disso, acusam o governo brasileiro de estar dando importância apenas ao tratamento, e não à prevenção da doença.

Moçambique

O sucesso do programa brasileiro, os episódios na disputa com as empresas, e as possibilidades que sugerem para os países em desenvolvimento, tem provocado reações favoráveis na mídia internacional, onde o programa é descrito como "modelo" para ser seguido pelos países pobres. Uma reportagem da BBC britânica chegou a invocar o estereótipo de liberdade sexual brasileira, dizendo que a abertura sexual do país facilita a difusão de campanhas de orientação sobre o sexo seguro.

Rosenberg, em seu artigo no New York Times, aponta ainda outro aspecto da experiência brasileira que pode servir de exemplo para países pobres: a possibilidade de se contornar o problema da falta de disciplina dos pacientes na administração dos medicamentos. Ela relata o resultado de um estudo vinculado ao programa brasileiro de combate à Aids envolvendo mais de 1000 pacientes em São Paulo, feito em 1999. O programa concluiu que a segunda causa mais importante para a quebra da rotina de medicação pelos pacientes é o seu nível de instrução. Porém, a pesquisa também concluiu que 80% dos pacientes observados tomavam o remédio dentro dos horários 80% das vezes. Isso não é muito diferente do que acontece nos Estados Unidos. Rosenberg conclui que um bom serviço de prevenção é capaz de neutralizar o efeito da falta de instrução presente nos países pobres.

Mesmo nos países sem condições de reproduzir o programa brasileiro, há possibilidades para se driblar as limitações. Por exemplo, o governo de Moçambique - que ocupa o 157º lugar no Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (5 lugares acima do último colocado, Serra Leoa) e possui um PIB per capita anual de US$ 861 - construiu uma rede comunicações para levar orientação à população para a prevenção da Aids. Segundo o jornalista brasileiro João Bosco Jardim, que participou de um seminário sobre difusão de ciência e tecnologia em Moçambique (leia notícia na Com Ciência), que aconteceu entre os dias 19 a 22 de setembro, "a Rádio Nacional Moçambicana tem estações regionais que fazem um trabalho fantástico de orientação, educação, etc." Onde não há rádio, usam outros meios, como teatro de bonecos.

Mas tal situação não é a regra. A terceira grande barreira contra o tratamento da Aids nos países pobres está na liderança de alguns deles. Corrupção, falta de vontade política, de compromisso com o bem-estar da população e o estigma que carregam os doentes de Aids - que faz com que alguns governos neguem a existência do problema - impedem que uma política eficiente de combate à doença seja posta em prática. O presidente do Quênia, Daniel Arap Moi, por exemplo, apenas recentemente permitiu o uso do preservativo masculino no país.

O caso mais extremo é o da África do Sul, que tem cerca de 10% da população infectada. O presidente Thako Mbeki rejeita as pesquisas que concluem que o HIV é o vírus da Aids e não permite que os medicamentos para tratamento da doença sejam importados. Apesar de as 39 empresas terem retirado seu processo contra a fabricação de remédios sem pagar royalties em território sul-africano, o país pretende fabricar apenas antibióticos e fungicidas que combatem as doenças secundárias que atacam os pacientes com Aids. Em reação à atitude do presidente, cerca de 400 cientistas de todo o mundo assinaram a Declaração de Durban, um manifesto publicado na revista Nature de 6 de julho de 2000, onde reiteram a conclusão de que o HIV é o vírus causador da Aids e listam referências. A iniciativa não surtiu resultado. Em setembro, Mbeki ordenou o estudo do corte de verbas do programa anti-Aids do governo, usando como argumento estatísticas da Organização Mundial da Saúde de seis anos atrás, que apontavam uma diminuta porção da população do país contaminada pela Aids.

 

(RB)

Atualizado em 10/10/2001

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