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              Aids 
              nos países pobres: lições da experiência 
              brasileira 
            A 
              política do governo brasileiro de combate à Aids (ver 
              reportagem 
              especial na Com Ciência) vem sendo reconhecida como um 
              modelo a ser seguido pelo resto do mundo, pelos resultados alcançados 
              e também por causa das esperanças suscitadas para 
              o tratamento da doença nos países mais pobres. 
            Muitas 
              dessas nações vivem uma situação dramática. 
              A África é a região mais afetada, onde a epidemia 
              tomou forma de uma catástrofe humanitária de proporções 
              colossais. Cinco países - Lesoto, Suazilândia, Zimbábue, 
              Bostuana e Zâmbia, todos no sul do continente - possuem mais 
              de 20% da população contaminada com o vírus 
              HIV. Outros quatro - África do Sul, Etiópia, Quênia 
              e Nigéria - possuem mais de 2 milhões de infectados 
              cada um. A Índia, na Ásia, também se inclui 
              nesse grupo. Em Botsuana, calcula-se que a esperança de vida 
              esteja 23 anos abaixo do que estaria sem a epidemia. 
            O preço 
              do principal medicamento contra a Aids - o coquetel tríplice 
              - é de US$ 10.000 a US$ 15.000 por ano para cada paciente. 
              Num país como Zâmbia (sul da África), com um 
              produto interno bruto (PIB) per capita anual de US$ 756, 
              esse preço é proibitivo. A produção 
              de remédios genéricos contra Aids no Brasil, entretanto, 
              reduziu esse preço para US$ 5.000 em território nacional. 
              Isso permitiu ao país se tornar a única nação 
              em desenvolvimento que distribui medicação para Aids 
              gratuitamente aos pacientes. 
            Tina 
              Rosenberg, em um artigo para o jornal norte-americano The New 
              York Times (28/1/2001), diz que, há dois anos, "ninguém 
              pensava em usar a terapia tripla em países pobres. Hoje, 
              é raro um encontro de líderes internacionais onde 
              essa idéia não é discutida." Rosenberg 
              credita boa parte dessa mudança ao sucesso do programa brasileiro: 
              "O Brasil rasgou todas as desculpas pelas quais os países 
              pobres não poderiam combater a Aids".  
            Os 
              US$ 5.000 anuais pagos pelo governo brasileiro ainda estão 
              longe de satisfazer uma nação como Zâmbia, mas 
              Rosenberg aponta vários países que teriam condições 
              de reproduzir o programa brasileiro: os da América Latina, 
              da Europa Central e Oriental, grande parte da Ásia, os países 
              da antiga União Soviética e pelo menos 10 países 
              da África Sub-Saariana. 
            Quebra 
              de patentes 
            O programa 
              brasileiro também está trazendo esperanças 
              aos países pobres com relação a um outro grande 
              obstáculo ao tratamento da Aids nesses lugares, a intransigência 
              das empresas fabricantes dos medicamentos, que resistem a vender 
              os seus produtos a preços mais acessíveis. Por exemplo, 
              até recentemente, a África do Sul estava sendo processada 
              por 39 empresas fabricantes de medicamentos, porque o país 
              produzia os remédios em seu território sem pagar royalties. 
              A África do Sul usou uma lei aprovada em 1997, que permite 
              a licença compulsória (veja texto A 
              questão das patentes na política brasileira de fármacos) 
              para produzir medicamentos considerados essenciais (produção 
              sem pagamento de royalties aos fabricantes). Em abril, após 
              várias manifestações contrárias ao procedimento 
              das empresas na imprensa internacional, todas elas retiraram seus 
              processos contra o país. Outras nações sofrem 
              problemas semelhantes, inclusive o Brasil. 
            O caso 
              de maior repercussão envolvendo o Brasil foi a disputa com 
              a multinacional suíça Hoffman-La Roche para que o 
              preço do medicamento Nelfinavir fosse reduzido. Após 
              a decisão do governo brasileiro de quebrar a patente do remédio, 
              a Roche entrou num acordo e baixou o preço do remédio 
              em 40% (leia notícia 
              na Com Ciência). Apesar de essa possibilidade ser prevista 
              na lei de patentes brasileira, seria a primeira vez em que um país 
              quebraria a patente de um medicamento por razões humanitárias. 
              Esse desfecho foi visto como uma prova de que os países em 
              desenvolvimento podem levar a melhor se enfrentarem os monopólios. 
            Outro 
              processo, que ainda se desenrola, é a ação 
              dos Estados Unidos contra o governo brasileiro junto à Organização 
              Mundial do Comércio (OMC). O pomo da discórdia é 
              a lei de patentes brasileira, que permite que patentes sejam quebradas 
              em caso de necessidade urgente. Os norte-americanos argumentam que 
              a ação não é contra o programa anti-Aids 
              brasileiro, mas contra essa característica específica 
              da lei nacional. Argumentam também que o progresso das pesquisas 
              sobre os medicamentos anti-Aids teria sua velocidade bastante diminuída 
              se as patentes pudessem ser quebradas. Além disso, acusam 
              o governo brasileiro de estar dando importância apenas ao 
              tratamento, e não à prevenção da doença. 
            Moçambique 
            O sucesso 
              do programa brasileiro, os episódios na disputa com as empresas, 
              e as possibilidades que sugerem para os países em desenvolvimento, 
              tem provocado reações favoráveis na mídia 
              internacional, onde o programa é descrito como "modelo" 
              para ser seguido pelos países pobres. Uma reportagem 
              da BBC britânica chegou a invocar o estereótipo de 
              liberdade sexual brasileira, dizendo que a abertura sexual do país 
              facilita a difusão de campanhas de orientação 
              sobre o sexo seguro. 
            Rosenberg, 
              em seu artigo no New York Times, aponta ainda outro aspecto 
              da experiência brasileira que pode servir de exemplo para 
              países pobres: a possibilidade de se contornar o problema 
              da falta de disciplina dos pacientes na administração 
              dos medicamentos. Ela relata o resultado de um estudo vinculado 
              ao programa brasileiro de combate à Aids envolvendo mais 
              de 1000 pacientes em São Paulo, feito em 1999. O programa 
              concluiu que a segunda causa mais importante para a quebra da rotina 
              de medicação pelos pacientes é o seu nível 
              de instrução. Porém, a pesquisa também 
              concluiu que 80% dos pacientes observados tomavam o remédio 
              dentro dos horários 80% das vezes. Isso não é 
              muito diferente do que acontece nos Estados Unidos. Rosenberg conclui 
              que um bom serviço de prevenção é capaz 
              de neutralizar o efeito da falta de instrução presente 
              nos países pobres. 
            Mesmo 
              nos países sem condições de reproduzir o programa 
              brasileiro, há possibilidades para se driblar as limitações. 
              Por exemplo, o governo de Moçambique - que ocupa o 157º 
              lugar no Relatório 
              de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações 
              Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) (5 lugares acima do último 
              colocado, Serra Leoa) e possui um PIB per capita anual de 
              US$ 861 - construiu uma rede comunicações para levar 
              orientação à população para a 
              prevenção da Aids. Segundo o jornalista brasileiro 
              João Bosco Jardim, que participou de um seminário 
              sobre difusão de ciência e tecnologia em Moçambique 
              (leia notícia 
              na Com Ciência), que aconteceu entre os dias 19 a 22 de setembro, 
              "a Rádio Nacional Moçambicana tem estações 
              regionais que fazem um trabalho fantástico de orientação, 
              educação, etc." Onde não há rádio, 
              usam outros meios, como teatro de bonecos. 
            Mas 
              tal situação não é a regra. A terceira 
              grande barreira contra o tratamento da Aids nos países pobres 
              está na liderança de alguns deles. Corrupção, 
              falta de vontade política, de compromisso com o bem-estar 
              da população e o estigma que carregam os doentes de 
              Aids - que faz com que alguns governos neguem a existência 
              do problema - impedem que uma política eficiente de combate 
              à doença seja posta em prática. O presidente 
              do Quênia, Daniel Arap Moi, por exemplo, apenas recentemente 
              permitiu o uso do preservativo masculino no país. 
            O caso 
              mais extremo é o da África do Sul, que tem cerca de 
              10% da população infectada. O presidente Thako Mbeki 
              rejeita as pesquisas que concluem que o HIV é o vírus 
              da Aids e não permite que os medicamentos para tratamento 
              da doença sejam importados. Apesar de as 39 empresas terem 
              retirado seu processo contra a fabricação de remédios 
              sem pagar royalties em território sul-africano, o 
              país pretende fabricar apenas antibióticos e fungicidas 
              que combatem as doenças secundárias que atacam os 
              pacientes com Aids. Em reação à atitude do 
              presidente, cerca de 400 cientistas de todo o mundo assinaram a 
              Declaração 
              de Durban, um manifesto publicado na revista Nature de 
              6 de julho de 2000, onde reiteram a conclusão de que o HIV 
              é o vírus causador da Aids e listam referências. 
              A iniciativa não surtiu resultado. Em setembro, Mbeki ordenou 
              o estudo do corte de verbas do programa anti-Aids do governo, usando 
              como argumento estatísticas da Organização 
              Mundial da Saúde de seis anos atrás, que apontavam 
              uma diminuta porção da população do 
              país contaminada pela Aids. 
              
            (RB) 
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