Conhecimento
tradicional pode ajudar na pesquisa de fármacos
Com
os novos avanços na área de biotecnologia, possuir
ou ter acesso à biodiversidade tornou-se algo estratégico,
alvo de constantes disputas e debates. Entretanto, a própria
riqueza e variedade da biodiversidade pode significar um novo problema:
como encontrar naquela grande quantidade de material genético
aquele que pode gerar um produto inovador?
A utilização
do conhecimento das comunidades tradicionais (povos indígenas,
seringueiros, agricultores, ribeirinhos, etc) sobre recursos naturais
como ponto de partida para pesquisas que podem levar ao patenteamento
de produtos e processos é uma das questões que compõe
o quadro das polêmicas sobre o tema. Os recursos biológicos,
muitas vezes presentes em terras indígenas, são coletados
por pesquisadores ou laboratórios, que passam a estudar o
potencial farmacológico de determinada planta ou veneno de
animal, baseando-se no uso tradicional que se faz deles. "O
grande valor do conhecimento genético é justamente
o conhecimento tradicional associado à ele, pois no universo
de espécies como da Amazônia, por exemplo, é
necessário saber o caminho das pedras para poder achar algo
válido para a pesquisa", afirma Nurit Bensusan, coordenadora
de Biodiversidade do Instituto Socioambiental (ISA).
As
comunidades tradicionais e ONGs da área, apontam para a necessidade
de criação de um regime legal que reconheça
o saber tradicional associado aos recursos biológicos, possibilite
a repartição de possíveis benefícios
advindos do seu uso comercial ou industrial e coloque como obrigatoriedade
legal o consentimento prévio das comunidades para o acesso
aos recursos situados em suas terras. Segundo Juliana Santilli,
sócia fundadora do Instituto Socioambiental e promotora de
justiça no Prodema (Segunda Promotoria de Justiça
de Defesa do Meio Ambiente e do Patrimônio Cultural, do Ministério
Público do Distrito Federal), o conhecimento tradicional
acerca das propriedades curativas de determinadas plantas foi formulado
e transmitido oralmente durante gerações que descobriram,
selecionaram e utilizaram os recursos. No entanto, o atual sistema
patentário reconhece e protege apenas os conhecimentos produzidos
individualmente, o que não corresponde ao caso das comunidades,
em que o conhecimento é produzido coletivamente. Surge daí
a "importância de um sistema legal sui generis de proteção
dos direitos coletivos de propriedade intelectual ou direitos intelectuais
coletivos", diz Santilli.
De
acordo com alguns projetos de lei (veja texto)
em tramitação no Congresso, a repartição
de benefícios com as comunidades pode ser realizada através
de remunerações monetárias, bens, serviços
ou direitos de propriedade intelectual.
O patenteamento
e a legislação na área de biotecnologia são
pontos bastante polêmicos que envolvem, além das referidas
comunidades, interesses nacionais e internacionais de Estado, empresas,
laboratórios, cientistas, intelectuais e políticos.
As práticas recorrentes de apropriação indevida
de recursos naturais ou genéticos demonstram que as soluções
apontadas para estas questões desde a Convenção
da Diversidade Biológica (CDB), assinada durante a ECO-92,
não foram realmente incorporadas na forma de mecanismos legais
eficazes. (leia reportagem
da Com Ciência sobre o assunto)
Na
CDB vários dos pontos atualmente em discussão foram
acordados, rompeu-se com a idéia dos recursos naturais como
patrimônio da humanidade e firmou-se a repartição
justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização
de recursos genéticos.
Durante
a Rodada Uruguai em 1994, no entanto, quando o regime internacional
de patentes tornou-se mais evidente e delimitado através
do Acordo Trips (Tratado sobre os Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio), os dispositivos da CDB não
foram contemplados ou incorporados ao Trips, que é o acordo
internacional mais recente e importante na área de propriedade
intelectual.
No
Brasil, a biodiversidade e as questões relativas ao acesso
aos recursos naturais ou genéticos têm sido reguladas
por Medidas Provisárias (MPs). A Medida Provisória
original foi editada em junho de 2000 e causou muita polêmica,
sendo até mesmo acusada de "legispirataria" pela
senadora Marina Silva (PT-AC).
Segundo
a promotora Jualiana Santilli, a primeira edição da
medida provisória foi feita às pressas para legitimar
o acordo firmado entre a organização social Bioamazônia
e a multinacional Novartis Pharma e atropelou o processo legislativo,
no qual diversos setores do governo e da sociedade civil discutiam
a formulação de propostas que visavam a implementação
da CDB. "A Medida Provisória contém uma série
de inconstitucionalidades, violando direitos assegurados às
comunidades indígenas e tradicionais em vários dispositivos",
afirma a promotora.
A reedição
mais recente desta medida foi publicada em agosto de 2001 e segundo
a atual coordenadora de Biodiversidade do Instituto Socioambiental,
Nurit Bensusan, incorpora vários itens dos três projetos
de lei que tramitam no Congresso, apesar de ainda conter pontos
conflitantes que necessitam ser revistos.
As
discussões sobre patentes e biodiversidade
Promovido
pelo Inpi e pela Comissão Européia, o Seminário
Internacional sobre o Papel da Proteção da Propriedade
Intelectual no Campo da Biodiversidade e dos Conhecimentos Tradicionais,
realizado em Manaus no início de setembro, trouxe à
tona as questões acerca da legislação e do
patenteamento na área de biotecnologia, e o debate sobre
a possível incorporação dos dispositivos da
CDB ao Acordo Trips. No evento, representantes de 30 países,
além de 22 palestrantes estrangeiros, debateram o tema tendo
em vista uma melhor elaboração do assunto para as
reuniões da Organização Mundial do Comércio
(OMC), em Doha, no Catar e da Organização Mundial
de Propriedade Intelectual (Ompi), a ser realizada em de Genebra
no mês de dezembro.
Maria
Beatriz Amorim, coordenadora de cooperação técnica
do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), surpreendeu-se
com o evento. "A idéia inicial era fazer algo educativo,
com discussões mais gerais e, surpreendentemente, vimos um
encontro que teve um impacto muito maior do que esperávamos",
afirma a diretora. Ainda segundo Amorim, uma das principais contribuições
do Seminário foi trazer à tona novos componentes para
as discussões na área de biodiversidade e patentes,
desde soluções até a delimitação
de problemas. "Foi possível mostrar que a questão
não é mais apenas a biopirataria, a questão
agora vai adiante, porque muitas plantas já foram levadas
e já viraram produto. A questão agora é como
será possível retroagir este processo revertendo benefícios
para o Brasil e para suas comunidades locais", diz Amorim.
Uma
das questões que polarizou os debates do seminário
foi a revisão do artigo 27 (3) b do Acordo Trips, que trata
do patenteamento dos seres vivos. Durante o evento ocorreu uma prévia
da revisão do Trips, que será realizada na próxima
reunião da OMC, e já estava prevista desde que o Acordo
foi firmado durante a Rodada Uruguai.
Segundo
Nurit Bensusan, que esteve presente no Seminário, o Brasil
apresentou uma posição bastante interessante e avançada
com relação a revisão do artigo 273B do Trips,
buscando incorporar os dispositivos da CDB, para garantir a criação
de um arcabouço jurídico internacional que permita
a valorização do conhecimento tradicional associado,
a repartição de benefícios e o consentimento
prévio das comunidades. "Acompanho esta discussão
há bastante tempo e me surpreendi positivamente com a posição
brasileira, apresentada pelo senhor Francisco Cannabrava (secretário
do Ministério de Relações Exteriores junto
à Missão Permanente do Brasil em Genebra), pois as
proposições avançaram bastante com relação
a outros fóruns.", diz Nurit.
A questão
que está por trás desta tentativa é a discussão
entre vários países sobre a compatibilidade entre
o Acordo Trips e a Convenção de Biodiversidade. Os
EUA, que assinou, mas não ratificou a Convenção
de Biodiversidade, acha que Trips e CDB não são compatíveis
pois tratam de assuntos diferentes. Já o Brasil e a União
Européia afirmam que é possível harmonizar
estes dois fóruns de discussão, mas defendem duas
maneiras diferentes para que isso seja feito. Enquanto para a União
Européia a revisão do Acordo deve ser apenas uma adequação
de linguagem, para o Brasil o artigo 273B deve ser reescrito incorporando
os dispositivos da CDB.
Além
dos debates, o Seminário também apresentou propostas
para o reconhecimento dos conhecimentos tradicionais associados
aos recursos naturais, entre elas a de formular um banco de dados
brasileiro contendo os conhecimentos dos índios do Brasil.
A idéia foi apresentada pelo presidente do Inpi, José
Graça Aranha, e foi inspirada na experiência da Venezuela,
que possui um banco de dados no qual já existem aproximadamente
9 mil registros de conhecimentos tradicionais de comunidades locais
deste país. A idéia é que este banco de dados
possa registrar e proteger o conhecimento tradicional servindo como
prova caso suas informações sejam usadas.
Apesar
da presença de representantes dos interesses indígenas,
como um assessor da senadora Marina Silva (PT-AC), nenhum líder
indígena foi convidado para o debate. Marcos Terena, líder
indígena do Pantanal (MS), articulador do grupo de trabalho
dos povos indígenas na ONU e coordenador geral dos direitos
indígenas da Fundação Nacional do Índio
(Funai), esteve presente no Seminário e solicitou um espaço
para expor suas posições.
Questionada
sobre esta ausência, a diretora de patentes do Inpi afirmou
que o tema dos conhecimentos tradicionais e patenteamento oferece
muitos desafios ao Inpi e ao atual sistema de patentes, que é
direcionado para empresas, universidades e inventores isolados.
"O Inpi não tem por tradição um contato
próximo da sociedade civil principalmente de comunidades
locais, porque apenas agora propriedade intelectual está
sendo vinculada às questões das comunidades locais.
Procuramos chamar o maior número possível de representantes
da sociedade civil, mas eu confesso que este foi um primeiro passo
do Inpi em direção a este usuário".
Marcos
Terena, em sua exposição propôs um encontro
com 20 pajés brasileiros com objetivo de garantir a participação
efetiva da comunidade indígena na discussão. A reunião
que ficou marcada para dezembro, resultará numa Carta elaborada
pela comunidade indígena, Inpi e Ministério da Justiça,
a ser encaminhada para a próxima reunião da Ompi em
Genebra. Além disso, deverá discutir a proposta do
banco de dados e a participação da comunidade indígena.
Segundo
o líder indígena apenas o banco de dados não
é suficiente, pois é necessário garantir a
participação indígena em todo este processo
e elaborar um sistema de proteção aos conhecimentos
tradicionais. "Apenas a partir de uma proteção
legal e do reconhecimento de que esta sabedoria indígena
é uma ciência é que poderemos estabelecer uma
relação mais permanente, mais constante, entre a ciência
do homem branco e dos povos indígenas. Afinal, outras pessoas
podem fazer um banco de dados livremente, com base nos conhecimentos
indígenas, sem que haja reconhecimento do nosso saber ali
embutido. Buscamos um entendimento com os pesquisadores visando
a participação também nos retornos dos investimentos
científicos e econômicos.", afirma Terena.
A coordenadora
de Biodiversidade do ISA, Nurit Bensusan também acha a idéia
do banco de dados um tanto temerosa. "Acho que a proposta da
Venezuela é muito arriscada, pois não prevê
uma proteção do banco de dados que garanta que o conhecimento
tradicional não seja apropriado por outras pessoas. Com um
acesso aberto, a repartição dos benefícios
vai se tornar muito mais difícil, além de não
prever o consentimento prévio das comunidades, que é
fundamental".
(MK)
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