Cronofarmacologia
e Melatonina -
o
hormônio que marca o escuro
Regina
Pekelmann Markus
Os
sistemas biológicos respondem de forma integrada e, para
tanto possuem sistemas especializados em manter esta integração.
Uma das mais importantes formas de integração entre
as diferentes funções do organismo é a capacidade
de que diferentes ações sejam sequenciadas no tempo.
Para que isto ocorra o organismo precisa ter uma previsão
do tempo e uma pré-programação do sequenciamento
das diferentes funções. Considerando-se um organismo
unicelular pode-se presumir que uma ação seja desencadeante
da próxima, e assim, de uma forma simples e linear, os diferentes
fenômenos ocorreriam de forma concatenada. Já com um
organsimo pluricelular há a necessidade de um sistema mais
complexo e os seres vivos lançam mão de um sistema
de marcação de tempo muito bem elaborado, que nâo
somente tem a possibilidade de fazer uma marcação
interna do tempo, através de células cujo metabolismo
oscila de forma ritmica e constante, como também é
possível que estes osciladores possam ser contralados pelo
meio ambiente.
De
forma bastante genérica esta é a forma como o nosso
organismo consegue lidar com o tempo e cocatenar as diferentes funções
que precisam ser sequenciadas. Por outro lado, disfunções
no sistema de controle temporal podem levar a importantes alterações
orgânicas, ou serem panos de fundo silenciosos em diferentes
patogenias. Além disso, a utilização de medicamentos
que alterem, ou mesmo anulem a comunicação entre o
meio ambiente e o sistema de controle do tempo biológico
podem promover efeitos colaterais relevantes.
O conhecimento
desta importante função biológica não
só facilitaria evitar-se efeitos secundários, ou mesmo
conhecer a etilogia dos mesmos para com estes poder lidar, como
também permitiria a administração de medicamentos
e horas adequadas de tal forma a minimizar os seus efeitos colaterais.
Ao estudo da interação entre o tempo biológico
e a administração de medicamentos tem sido chamado
de Cronofarmacologia, e para que esta ciência possa ser entendida
e desenvolvida faz-se necessário conhecer quais as estruturas,
vias de transmissão e hormônios implicados no controle
do tempo pelo organismo humano.
Este
sistema de controle do tempo é formado por um oscilador central,
localizado nos núcleos supraquiasmáticos do hipotálamo
(importante centro regulador das funções autonômicas),
pela glândula pineal e pelo hormônio liberado por esta,
chamado de melatonina. O primeiro elemento desta cadeia, os núcleos
supraquiasmáticos, ciclam em um ritmo de aproximadamente
24 horas. A palavra "aproximadamente" é muito importante
no contexto da Cronofarmacologia. Para cada indivíduo isolado
este ritmo é fixo, por exemplo 24, 3 horas, significando
que ao final de 1 semana o organismo deste indivíduo estaria
defasado com o meio ambiente em 2,1 horas. Para que isto não
ocorra há a necessidade de que este relógio receba
infomarações sobre o desenrolar do tempo no mundo
exterior. A forma mais fácil de marcar o tempo no mundo exterior
é a passagem dos dias, ou seja a variação entre
o claro e o escuro. De fato, o ser biológico lança
mão desta informação para ajustar o seu relógio
endógeno e estar sempre na hora certa!
A pergunta
seguinte é como os dois sistema podem se comunicar. Logo
imaginamos que isto deva ocorrer em forma de diálogo, que
nada mais é do que falar e escutar e reajustar suas posições
de acordo com o parceiro. Na realidade é exatamente isto
o que ocorre. Uma via nervosa que sai da retina, passa para os núcleos
supraquiasmáticos e segue para a glândula pineal liberando
o hormônio melatonina sempre que estiver escuro. Assim sendo,
existe uma interação entre o meio ambiente e o sistema
marcador de tempo exógeno e também existe a liberação
de um hormônio na corrente sangüinea, que irá
infomar o organismo que está escuro.
Essas
informações apresentadas de forma resumida foram sendo
obtidas ao longo de muitos séculos. A glândula pineal
foi descrita pela primeira vez há mais de dois mil anos,
por Herófilo, um anatomista da Universidade de Alexandria
que sugeriu ser esta um esfíncter que regulava o fluxo do
pensamento, por estar localizada próximo ao sistema ventricular
cerebral. Galeno, 450 anos depois, mostra que a pineal é
formada por um tecido diferente do cérebro e Descartes, no
século XVII, sugere ser a pineal o "centro da alma".
Somente em 1880 Ahlborn, de Graaf e outros descrevem as propriedades
macro-anatômicas, histológicas e embriológicas
e apontam a semelhança com o "terceiro olho" ou
o órgão epifiseal fotossensível das aves. A
pineal de mamíferos não é fotossensível
e sua função é transduzir as informações
luminosas ambientais para o organismo. Assim sendo, em mamíferos
a glândula pineal informa ao organismo as condições
de iluminação ambiental fazendo a tradução
de um sinal de entrada neural em um sinal de saída hormonal.
Caricaturalmente, a pineal e seu principal hormônio, a melatonina,
desempenham o papel de um maestro capaz de sincronizar o ritmo endógeno
do organismo ao ciclo claro-escuro ambiental. Para desempenhar este
papel a síntese deste hormônio deve ser regulada pelo
ciclo claro-escuro ambiental e este deve ter a capacidade não
só de atuar sobre o relógio central, mas também
comunicar-se com diferentes elementos do sistema biológico,
tendo assim uma ação pleiotrópica.
II
Os
núcleos supraquiasmáticos (NSQ), localizados no hipotálamo,
têm como função gerar ritmo circadiano endógeno
(período de aproximadamente 24 horas) que pode ser sincronizado
pela luz e pela melatonina. Um gerador de ritmo circadiano foi definido
por Moore (1982) como sendo uma estrutura que produz um ritmo endógeno
de 24 horas, independente de pistas ambientais. O gerador de ritmo
endógeno deve apresentar ritmicidade independente de inervação
e deve ser passível de ser sincronizado por pistas ambientais
e controlado por substâncias endógenas. A atividade
celular dos núcleos supraquiasmáticos (por exemplo:
metabolismo de glicose, atividade elétrica celular, etc)
apresenta uma ritmicidade com período ao redor de 24 horas.
Lesões dos núcleos supraquiasmáticos abolem
o ritmo circadiano de locomoção e de beber, a ritmicidade
de corticosterona na adrenal de ratos, etc. Os núcleos supraquiasmáticos
continuam ciclando mesmo quando isolados neuralmente do resto do
cérebro de ratos ou in vitro em preparações
de fatias de hipotálamo. Estas propriedades rítmicas
conferem aos mesmos a função de relógio biológico.
Este relógio é passível de ajuste através
de dois processos acoplados; o fotoperiodismo ambiental e a melatonina.
A informação
fótica chega à pineal por via de um circuito polissináptico
que inicia-se na retina. Fibras retinohipotalâmicas projetam-se
para os núcleos supraquiasmáticos e este tem conexão
anatômica com a área retroquiasmática do hipotálamo
(núcleo paraventricular, PVN) e este, por sua vez, faz conexão
com a coluna intermediolateral da medula espinhal que emite as fibras
pré-ganglionares que invervam o gânglio cervical superior
simpático. A partir deste gânglio saem fibras simpáticas
que inervam a glândula pineal.
Na
fase de claro, os neurônios simpáticos estão
quiescente, e na fase de escuro ocorre sua ativação,
que foi demonstrado levar à liberação de noradrenalina
e ATP (Barbosa e col., 2000). A noradrenalina liberada atua diretamente
sobre adrenoceptores do subtipo a1 e b1 e o ATP atua sobre purinoceptores
P2Y1 (Ferreira e col. 2001) localizados nos pinealócitos
e promove a síntese de melatonina, o hormônio liberado
na fase de escuro pela glândula pineal.
A estimulação
dos adrenoceptores b1 é essencial para que ocorra a síntese
de melatonina, portanto o seu bloqueio através do uso de
bloqueadores beta impede que os organismos mantenham uma síntese
adequada de melatonina. O precursor imediato da melatonina, a N-acetilserotonina,
também é secretada pela pineal de forma rítmica.
O fato
da melatonina da pineal ser liberada apenas no escuro propicia a
este hormônio ser não só o marcador do escuro,
como permitir que o organismo distinga o inverno do verão.
No inverno as noites são longas e a duração
do pico noturno de melatonina é maior, enquanto no verâo
este pico é menor. É claro que este fato ganha mais
relevância quanto mais afastados estivermos do Equador. Na
realidade é a diferença de fotoperíodos nas
diferentes latitudes que faz com que tenhamos que ter dados locais
e bem definidos para fazer uma cronofarmacologia adequada. Dados
obtidos em locais onde os invernos apresentam noites mais longas,
estão na realidade contaminados com uma duração
maior dos picos de melatonina.
III
Tendo
descrito como ocorre a produção de um marcador de
tempo que informa a todo o organismo que "está escuro"
a pergunta seguinte é como atua este hormônio.
A melatonina
é uma molécula com características hidrofílicas
e lipofílicas e pode penetrar em todas as membranas biológicas,
incluindo a placenta e a barreira hemato-encefálica. Em nível
celular a melatonina pode atuar sobre receptores de membrana ou
diretamente no interior da célula interferindo com processos
bioquímicos de grande relevância.
A melatonina
é considerada um scavenger, um "varredor"
de radicais hidroxila e radicais peroxila e pode atuar indiretamente
como antioxidante, com ação protetora contra diversos
agentes oxidantes. É importante ressaltar que a concentração
requerida para o efeito antioxidante da melatonina está na
faixa de milimolar (mM), enquanto nos tecidos in vivo a faixa
é de nanomolar (nM). Uma consideração importante
a fazer quanto à concentração plasmática
e tissular de melatonina, é que sendo este hormônio
lipofílico, a compartimentalização do mesmo
poderia resultar em altíssimas concentrações
em locais especiais intracelulares. Trinta minutos após a
injeção de 0,5 mg/kg de melatonina por via subcutânea,
a concentração deste hormônio no núcleo
de células da córtex cerebral e cerebelar é
cinco vezes maior que em animais controle, assim sendo, melatonina
administrada com fármaco pode alcançar altas concentrações
no interior das células. Ainda não sabemos responder
se o mesmo ocorre com o hormônio melatonina liberado da glândula
pineal.
Para
a avaliação dos efeitos funcionais da melatonina é
relevante considerar ser este hormônio um transdutor neuroendócrino
das alterações fóticas ambientais. Dessa forma
a melatonina possui uma ação moduladora pleiotrópica
interferindo no sistema endócrino, nervoso e imunológico
e sua ação como fármaco depende diretamente
da hora em que é administrada. A principal ação
da melatonina é temporizar ou sincronizar diferentes funções
do organismo. Fora isto, a descoberta de que este hormônio,
quando testado in vitro, atua como scavanger de radicais
livres abriu a possibilidade de que uma de suas funções
seria a de proteger o organismo de radicais resultantes do metabolismo
intermediário.
Os
primeiros trabalhos funcionais com melatonina enfocavam a ação
sobre a reprodução. No início do século
Heubner relatou que um menino portador de pinealoma apresentava
puberdade precoce e sugeriu que a glândula pineal seria responsável
pelo inicício da puberdade. A ação da pineal
e de seu hormônio, melatonina, sobre a reprodução
tem sido confirmada. No entanto, não é possível
generalizar a melatonina com um hormônio pró- ou antigonadotrófico;
sua ação depende da espécie animal e da hora
de administração. A melatonina serve de pista temporal
para o organismo de tal forma que a função reprodutora
seja ajustada às variações sazonais. Animais
com reprodução sazonal e longo tempo gestacional têm
fecundação invernal (ex. ovelhas), isto é,
quando o fotoperíodo é curto (dias curtos, noites
longas). Neste caso o aumento artificial do fotoperíodo faz
com que ocorra um efeito gonadotrófico positivo com desenvolvimento
da genitália. Por outro lado, quando a fecundação
ocorre na primavera, isto é, dias longos (ex. hamster) melatonina
passa a ter uma ação antigonadotrófica. Hamsters
pinealectomizados perdem a capacidade de apresentar controle sazonal
da genitália e as gônadas mantem-se sempre ativas.
Assim sendo, a melatonina traduz informações temporais
para o eixo hipotálamo-hipófise-gônadas, coordenando
sinais para a reprodução.
A ação
da melatonina sobre o sistema imune e as células imunocompetentes
tem ganho importância a partir de 1980. Desde a década
de 20 até a década de 70 havia vários relatos
controversos sobre os efeitos da pinealectomia na resposta imunológica,
e apenas a redução precoce do timo de camundongos
foi confirmada por diferentes autores (cf. Maestroni e Conti, 1993).
Estudos mais recentes demonstram que tanto melatonina endógena
como melatonina exógena administradas no final da tarde,
mas não no início da manhã, podem aumentar
a reposta primária e secundária de produção
de anticorpos em camundongos quando estimulados por hemáceas
de carneiro. Melatonina em doses 20 vezes maiores que as efetivas
quando administradas no início da manhã passa a ter
uma ação imunodepressora. Além disso, a melatonina
também pode aumentar a ação citotóxica
dos linfócitos T, quando administrada no final da tarde.
Esta resposta também não é observada, ou é
observada na direção inversa, quando melatonina é
administrada no início da manhã. Melatonina pode ter
uma ação imunoestimulante em animais imunodeprimidos
por estresse agudo ou por administração de glicocorticóides
(Maestroni e Conti, 1990, 1991). Melatonina é capaz de aumentar
a estimulação de citocinas (IL- 2 e interferon gama)
e a produção de opióides em linfócitos
T, que possuem receptores de membraba para este hormônio.
Experimentos clínicos têm evidenciado uma ação
positiva da melatonina como coadjuvante em terapia com IL-2, com
o objetivo de reduzir a dose de citocina administrada que é
uma substância com alta toxicidade.
Os
dados descritos acima permitem evidenciar uma ação
da melatonina sobre o sistema imune, por outro lado, produtos derivados
de células imunocompetentes interferem na produção
de melatonina. Interferon-y é capaz de estimular a
síntese de melatonina pela glândula pineal e interleucina-2
pode abolir o ritmo noturno de melatonina. Nós temos estudado
o efeito da melatonina e da própria glândula pineal
sobre a resposta inflamatória crônica e aguda. A lesão
crônica gerada ao se injetar o bacilo responsável pela
tuberculose (BCG) em pata de camundongos varia circadiannamente.
A redução noturna da lesão é devida
à melatonina liberada pela glândula pineal. Neste modelo
experimental já foi mostrada uma importante interação
entre a ação de corticosteróides e a produção
de melatonina pela pineal. Em modelo de inflamação
aguda pudemos verificar que a melatonina em concentrações
fisiológicas era capaz de inibir o rolling e a adesão
de leucócitos a vênulas pós-capilares. O efeito
sobre a adesão, mas não o efeito sobre o rolling
são mimetizados por N-acetilserotonina, o precursor imediato
da melatonina. Estes efeitos são devidos a ação
da melatonina, ou de seu precursor sobre receptores de membrana
e são obtidos com doses muito baixas, na faixa de picomolar.
Portanto, além de ser compatível com uma ação
fisiológica, são mecanismos que devem ser levados
em consideração quando da terapia com atiinflamatórios.
Considerando
os poucos exemplos mencionados acima, e o conceito de que o organismo
varia ao longo do dia de forma programada e previsível, torna-se
muito relevante que ao administrarmos tratamentos, principalmente
aqueles que são administrados cronicamente, sejam levados
em consideração os parâmetros da cronofarmacologia.
Estes cuidados podem não só facilitar a ação
dos fármacos, como também evitar importantes efeitos
colaterais, ajustando a administração ao horário
mais apropriado.
Regina
Pekelmann Markus é professora do Laboratório de Cronofarmacologia
do Departamento de Fisiologia do
Instituto de Biociências - USP
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