Fitoterápicos[1]
Lauro
E. S. Barata
Era
domingo e lia meu jornal ao sol cálido da manhã, quando
observei que meu fiel Apollo não parecia bem. Furiosamente
tinha rasgado parte do primeiro caderno do Estadão, de modo
que lendo o que sobrou da manchete "EUA congela (rasgado) Bin
Laden" tive um calafrio. Felizmente, não demorei muito
á encontrar o pedaço do jornal que faltava onde se
lia "recursos de".
Recomposto
do susto, notei que meu cão se dirigia à uma moita
de Capim Erva Cidreira, e por uns bons cinco minutos mastigou a
erva. Eu tinha viajado muito durante aquela semana, e animais, como
pessoas, sentem a falta do seu dono. Ele estava nervoso e irritado
e agora, instintivamente, procurava uma planta calmante. A Erva
Cidreira (Cimbopogom citratus) é de fato indicada[2]
para nervosismo, insônia e ansiedade. Então Apollo
também sabia disso, ou tinha apenas usado o instinto animal,
que o homem também parece ter, de lutar ferozmente contra
a doença e a morte? Nunca saberei responder, mas o certo
é que estudos científicos na África, mostram
que os chimpanzés quando acometidos de verminoses, procuram
espontaneamente certas folhas e as consomem. A análise parasitológica
das fezes destes animais mostrou que vários tipos de vermes
são expelidos pelo uso das plantas. Não demorou muito
e Apollo estava de novo afável, cordial e babando, normal.
A Fitoterapia canina usando a planta in natura tinha produzido
o efeito esperado. Mas também nós não a usamos?
No
Brasil, pelo menos trezentas plantas medicinais fazem parte do arsenal
terapêutico da população. Desconhecida, desdenhada
ou até abominada pelos médicos, plantas medicinais
são consumidas tanto pelos favelados como pela classe de
maior poder econômico, constituindo no Brasil um mercado de
US$ 400 milhões. E ainda são recomendadas pela ONU
que percebeu que 2/3 da população da Terra utiliza
plantas medicinais. Mesmo assim, muitos pensam que plantas medicinais
são um engodo, coisa de umbandista e ignorantes, mas será
que funcionam mesmo?
A resposta
desta questão é complexa, mas começou dez mil
anos atrás. Estudos arqueológicos têm mostrado
através da análise de pólens e outros materiais,
que os homens das cavernas já utilizavam plantas medicinais.
Estudioso das plantas medicinais, deparei-me no British Museum de
Londres, com a escrita cuneiforme da Babilônia que informava
o uso de inúmeras plantas. Mas as primeiras testemunhas do
uso das plantas na medicina, foram os papiros egípcios, os
escritos chineses nas folhas de bambu e as taboas de argila dos
Sumérios. No ano 3000 AC, no Egito antigo, os papiros registraram
o uso de quinhentas plantas medicinais: Menta, Alecrim, Camomila,
Absinto, Babosa, Terebentina, Tomilho e plantas da família
Solanacea usadas até hoje.
No
entanto, o primeiro Tratado de Medicina só aparece mil anos
antes de Jesus Cristo no vale do Tigre e Eufrates, onde hoje estão
o Irã e o Iraque, berço da civilização,
quem diria. No Vale do Nilo, bem próximo daí, os primeiros
médicos eram os Reis como Athotis (4000 AC) ou Queops (2750
AC), e parece que a tradição perdura até hoje.
Os Reis foram sucedidos por médicos funcionários reais
"recrutados por concurso" e hierarquizados ao serviço
dos faraós do Nilo. Mais tarde, já na Grécia
e Roma Antiga a medicina, se torna de domínio dos cidadãos
em geral, não mais dos sacerdotes. Em 600 a.C., Atenas decreta
que "todo cidadão tem direito a cuidados médicos
gratuitos, pagos pelo Estado", um tipo de INSS local. Tal benevolência
era custeada por um imposto real denominado "Iatricon"
que aqui conhecemos como CPMF.
Depois
vem a história, mais ou menos conhecida de Hipócrates
(460-377 AC), Dioscorides (100 DC) e Galeno (130-200 DC). A medicina
deixa o esoterismo e a imprevisibilidade dos caprichos divinos e
avança cientificamente no terreno da terapêutica, classificação
das doenças, posologia e diagnóstico. Durante mil
anos, porém, fez-se trevas na Europa, e só em 1220
nasce a primeira Grande Escola de Medicina da Idade Média,
em Salerno, perto de Roma, fundada por Carlos Magno. Os estudos
de Farmácia avançaram celeremente neste período.
Extratos alcoólicos, como o vinho ou os destilados como a
vodka e o gim, já eram bem conhecidos na Europa para extrair
o "espírito das plantas". E ainda são usados
nas garrafadas de plantas medicinais que se pode comprar no mercado
do Ver-o-Pêso de Belém, ou no Mercado Público
de Porto Alegre.
Métodos
de extração mais eficientes, foram adotados por volta
dos anos 1500 quando ainda andávamos nus. O éter etílico,
produto da reação de duas moléculas de álcool
etílico com ácido sulfúrico, que parece ter
sido inventado pelos Alquimistas, foi usado por Paracelsus na Alemanha.
O "extrato etéreo" das plantas concentrava os princípios
ativos[3] e tornava mais poderosa
a preparação das drogas.
Quando
o Brasil foi descoberto, a Fitoterapia reinava praticamente sozinha,
não havia vacinas nem os medicamentos sintéticos,
que só aparecem no final do século XIX com a aspirina.
Sintetizada[4] em 1896 por
Felix Hofmann, um químico da Bayer, esta molécula
foi inspirada numa substância natural contida numa planta
do gênero Salix, o Ácido Salicílico.
Hoje, dez milhões de quilos de Aspirina são produzidos,
enquanto o Ácido Salicílico continua sendo produzido
em pequeníssimas quantidades pela planta Salix. Com a síntese
da Aspirina, desaparecem as propriedades indesejáveis de
irritar a parede gástrica e mantêm-se as propriedades
anti-inflamatória, analgésica e antipirética[5].
A Fitoterapia
manteve seu domínio até os anos quarenta do século
passado quando a Sulfa, um medicamento sintético derivado
da química de corantes dos alemães, revolucionou a
terapia das infecções. A partir daí, as substâncias
sintéticas prosperaram e hoje perfazem mais de 50% do arsenal
terapêutico, parte do mercado mundial farmacêutico de
US$ 350 bilhões.
Os
medicamentos sintéticos tem inúmeras vantagens, custo
de produção mais baixo, produção industrial
e controle de qualidade relativamente fácil. Pode-se produzir
uma tonelada de um sintético em poucas horas. No entanto,
para extrair e purificar um princípio ativo de 1 tonelada
de folhas, pode-se levar semanas. E se o rendimento da substância
na planta for de 0,1% , de cada tonelada obter-se-á apenas
1kg de produto.
Plantas
medicinais produzem diferentes substâncias químicas
(alcalóides, esteróides, terpenos...) e o fazem em
diferentes proporções, dependendo da ecologia do lugar,
do regime de chuvas, da insolação, do solo etc...Mas
isso ainda não é tudo, nem sempre a planta é
acessível, nem sempre se encontra nas quantidades necessárias
e ainda podem produzir misturas de separação extremamente
complicada. Este é o caso da Quina (Cinchona officinalis),
uma planta Amazônica. Introduzida nas farmacopéias
européias desde o século XVII era conhecida pelos
índios do Peru desde sempre e foi deles que os jesuítas
retiraram seu segredo levando-o para a Europa onde grassava o impaludismo
(malária). A biopirataria apenas começava.
As
cascas da Quina contêm uma mistura de 35 alcalóides,
que devem ser separados do Quinino, o principal alcalóide
ativo em malária, e que está presente em 1% nas cascas.
Assim, são necessárias mil árvores ou 100 toneladas
de cascas para produzir 1 tonelada de Quinino. A síntese
de substâncias naturais por vezes é extremamente difícil.
Apesar de ter sido isolado em 1820, a síntese do Quinino
só foi possível em 1944, mas o anti-malárico
mais usado no mundo é a Cloroquina, um produto sintético
inspirado no Quinino de custo muito baixo, e aí mais uma
vantagem dos produtos sintéticos, seu preço.
Se
os sintéticos têm assim tantas vantagens, porque hoje
se vê o renascimento dos Produtos Naturais? Para responder
a esta pergunta, há de se recuar no túnel do tempo
chegando-se ao movimento hyppie dos anos sessenta, que iniciam
os protestos contra tudo aquilo que é artificial, "químico",
e por conseguinte voltam aos velhos e bons hábitos naturalistas.
Assim, os medicamentos de síntese são vetados por
aqueles que preconizavam o "faça amor não faça
a guerra". Mas não só eles, as minorias e os
seus (bons) hábitos alimentares, passaram a ser reconhecidas.
Aí reaparecem as velhas fórmulas, para cuidar do corpo
e do espírito. Yoga, tae-kown-do, tarot e outras magias.
A cosmética segue o mesmo passo. Pele desvitalizada? Porque
não tenta um creme à base de ovos[6]?
Se não funcionar, faça um omelete.
A tecnologia
contribuiu muito para que os Fitofármacos[7]
firmassem sua posição. Hoje as 125 principais indústrias
farmacêuticas do mundo realizam pesquisas com produtos de
plantas, porisso 2/3 dos medicamentos lançados nos últimos
anos nos EUA, provém direta ou indiretamente de plantas.
O Taxol para a terapia do câncer é apenas um
deles. Os novos equipamentos informatizados fizeram avançar
vertiginosamente a química estrutural. Mas não só
isso, nos anos 80 era possível realizar apenas milhares de
ensaios por ano, hoje as empresas farmacêuticas fazem cem
mil ensaios robotizados em uma semana. Estas ferramentas são
hoje indispensáveis para realizar a prospecção
da Biodiversidade,
na busca de novos produtos farmacêuticos.
O Brasil
tem uma mega-biodiversidade de 55.000 espécies de plantas
superiores. Pesquisas nas Universidades e Institutos de Pesquisa,
revelam substâncias ativas em câncer, aids, analgésicos,
antibióticos e um sem número de outras utilidades
até na cosmética. Com sorte, 1% dessas plantas foi
estudada química e/ou farmacologicamente. O Brasil tem também
um corpo de cientistas invejável e recursos para pesquisa.
Este ano produziremos 6000 doutores da melhor qualidade, e segundo
o MCT haverá R$2 bilhões para o sistema de Ciência
e Tecnologia no próximo ano. Também temos empresas
farmacêuticas de boa qualidade e competência, mas ainda
não conseguimos fazer o nosso primeiro Fitoterápico[8].
Porquê? Este artigo não pretende responder, simplesmente
direi que é uma questão complicada, e prefiro voltar
à questão da Fitoterapia.
Fitoterápico
é uma mistura que pode incluir diferentes produtos do metabolismo
primário como os triglicérides (gorduras vegetais)
e açúcares, os sais minerais, vitaminas, corantes
e clorofilas e substâncias do metabolismo secundário
que são biologicamente ativas como os flavonóides,
alcalóides, terpenos etc...Fitoterápicos são
produzidos à partir de Plantas Medicinais, normalmente por
extração com misturas de etanol-água, que as
vezes são liofilizados ou evaporados por spray drying,
a mesma técnica para fazer café solúvel ou
leite em pó. Algumas pessoas acreditam que sendo natural
não faz mal, e não é bem assim. A Aflatoxina,
uma substância de um fungo presente em quase todo amendoim,
paçoca, canjica e outras gostosuras, causa câncer no
fígado, e pior, é cumulativo, quer dizer que aquele
pé de moleque que você comeu na festa de São
João do ano atrasado ainda está presente em você
hoje!
Mesmo
plantas medicinais que "curam", como o Mentrasto (Ageratum
conyzoides) que é efetivo contra o reumatismo, é
hepatotóxico devido a alcalóides pirrolizidinicos.
Isto foi verificado no nosso laboratório quando alertamos
o Ministério da Saúde (CEME) há alguns anos
atrás, e tal como o Confrey (Symphytum officinalis)
aquela planta foi retirada da sua lista prioritária.
A Erva
de São João (Hypericum perforatum)[9],
originária da Europa, é usada como sedativo e substitui
os benzodiazepínicos como o Valium®. O princípio
ativo desta planta acredita-se ser a Hipericina, uma diantrona,
mas não há comprovação científica
disso.
Os
requisitos básicos para o uso de uma planta medicinal ou
um Fitoterápico, são o controle de qualidade, a segurança
e a eficácia. Na Alemanha os Fitoterápicos são
consideradas drogas éticas, isto é, tem controle de
qualidade, segurança e eficácia, as mesmas qualificações
exigidas para os sintéticos. No Brasil a ANVISA (Ministério
da Saúde) , só no ano passado reeditou portaria que
exige dos fabricantes estas qualificações. O controle
de qualidade, tem aumentado muito nos últimos anos, e
tem sido feito pelas próprias indústrias, mas ainda
existem empresas que não o fazem. Inclui o controle de qualidade
químico e o microbiológico para verificar se existem
fungos ou bactérias presentes nas plantas medicinais e extratos
que vão para o público. Por segurança
entende-se que antes de ser colocado no comércio e administrado
a pacientes, o Fitoterápico deve ter passado por ensaios
de toxicidade para ver se o extrato ou a planta não são
tóxicos. A eficácia é garantida por
ensaios pré-clínicos em órgãos isolados
e animais, normalmente camundongos. Se o Fitoterápico passa
por todos esses testes é habilitado a passar a fase clínica,
isto é, pode ser testado no homem. Mesmo aí temos
quatro etapas, e no final o teste é feito em milhares de
pacientes. É claro que todas essas etapas têm custo
muito alto, e tempo longo. Talvez isto responda porque não
existe nenhum medicamento Fitoterápico brasileiro ainda.
O
Brasil com sua fantástica biodiversidade, o seu conhecimento
popular do uso das plantas medicinais, sua ciência e tecnologia
que é a melhor das Américas, excluindo os EUA, e suas
empresas competentes, tem praticamente tudo para desenvolver seus
próprios Fitoterápicos. Falta certamente uma política
voltada a esse interesse nacional. Quando nós conseguirmos
fazê-la, ganharemos de prêmio um mercado mundial de
US$ 22 bilhões.
Lauro
E. S. Barata é professor de Química orgânica
do Instituto de Química da Uicamp
Notas
[1]Fito=plantas.
Fitoterapia: terapia ou cura utilizando plantas integrais ou parte
delas. Inclui plantas que melhoram a qualidade de vida, plantas
que interferem e/ou reforçam no sistema imunológico.[voltar]
[2]É comum que Plantas Medicinais sejam chamadas por diferentes
nomes em diferentes lugares, assim a nossa Erva Cidreira é
o Capim marinho (Norte), Capim Santo (Nordeste), Capim Limão
(Sul) ou Lemongrass (exterior).[voltar]
[3] Princípio ativo-substância ou mistura delas que
tem atividade biológica/farmacológica.[voltar]
[4] A síntese parte do fenol, uma substância derivada
do petróleo, passando pelo ácido salicílico
que é acetilado levando ao ácido acetil salicílico,
cujo nome comercial é Aspirina.[voltar]
[5] Anti-inflamatória, que controla a inflamação.
Analgésica que atua na dor. Antipirética que baixa
a febre.[voltar]
[6] Cenoura
c/ clara: 1 cenoura grande e uma clara batida em neve.[voltar]
[7] Fitofármacos-
substância ativa isolada e natural de plantas.[voltar]
[8] Fitoterápico
- mistura que pode incluir triglicérides (gorduras vegetais),
açucares, sais minerais, vitaminas, corantes, clorofilas
e outras diferentes substâncias ativas como os flavonóides,
alcalóides, terpenos etc...[voltar]
[9] Não
confundir com a erva ruderal de mesmo nome, que tem belo cacho de
flores laranja e sobe nas cercas de quintais.[voltar]
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