Notícias
e "notícias" na comunicação pública
da saúde
Isaac
Epstein
"Falar
uma linguagem é parte de uma
atividade ou uma forma de vida"
WITTGENSTEIN
A comunicação
da ciência realizada entre os próprios cientistas de
determinada especialidade, também chamada de comunicação
primária e a popularização da ciência,
isto é, a comunicação secundária, são
práticas que podem ser analisadas segundo uma matriz interdisciplinar
que descrevemos em outro lugar. Esta matriz considera várias
dimensões onde os "jogos de linguagem" ou "formas
de vida", no sentido que lhe foi atribuído por Wittgenstein,
obedecem a regras diferentes segundo a comunicação
científica se dirija aos pares, ou ao público em geral.
Um
dos registros desta matriz é o que se refere à noção
de "informação", importante tanto na comunicação
do conhecimento científico para os pares, como para a construção
da notícia jornalística referente a ciência,
ou ainda mais particularmente, a comunicação da saúde
para o público.
Em
ciência a informação válida tanto pode
se referir à confirmação ou verificação
de fatos ou teorias já estabelecidos e consagrados como à
refutação ou falsificação daquilo que
já está estabelecido. Em realidade estes dois níveis
de validade da informação científica se referem
a epistemologias científicas distintas que podem ser importantes
em fases também distintas da empresa científica, a
ciência normal e a ciência extra normal tal como foram
definidas por Kuhn.
Em
jornalismo, a "novidade" ou o inesperado da notícia
lhe consagra um peso importante na cesta de atributos que selecionam
um fato, dentre as miríades de fatos cotidianos, como merecedor
do status de "notícia".
Ora, esta "novidade" jornalística que guarda um
paralelismo com a notícia falsificadora da ciência,
mas não com a notícia verificadora, pode causar efeitos
perversos na comunicação pública da saúde.
Dois casos, entre outros, ilustram estes eventuais efeitos.
No
domingo, três de Maio de 1998, a primeira página do
The New York Times, publicava a notícia de que duas novas
drogas, compostas de proteínas naturais, a agiostatina e
a endostatina, tinham se mostrado promissoras no tratamento de câncer
em ratos. Nos dias que se seguiram, as clínicas oncológicas
foram assaltadas por pacientes desesperados que procuraram acesso
às duas novas drogas que nem sequer haviam sido submetidas
aos necessários testes em seres humanos. A esta altura, todavia,
as ações do laboratório responsável
já haviam tido uma alta espetacular na bolsa. Verificamos
neste evento como se imbricam na "notícia", um
impacto jornalístico inegável, um valor científico
ainda discutível, um considerável efeito econômico
e um efeito perverso, no caso uma esperança não justificada,
pelo menos naquele momento, para os doentes terminais.
Em
outro lugar analisamos a divulgação de uma possibilidade
etiológica inédita para a emergência de placas
de esclerose arterial: a ação de uma conhecida bactéria,
a Chlamídia, que investigadores tinham identificado nas lesões
arteriais de alguns pacientes vitimados por acidentes vasculares.
Seria o infarto uma doença infeciosa? A notícia, publicada
por uma revista científica foi matéria de um veículo
de divulgação da ciência com uma manchete apelativa
que foi reproduzida quase literalmente por um jornal paulistano.
Neste
caso, o leitor desavisado, talvez obediente aos conselhos usuais
da medicina preventiva como evitar o fumo, a obesidade, as comidas
gordurosas a vida sedentária, etc. veículados desde
décadas, seja tentato a pensar que, afinal, para que tantos
cuidados se o infarto poderá ser prevenido ou até
tratado com algum tipo de antibiótico?
A informação útil ao público sobre saúde,
em geral, concerne a fatos já conhecidos e consagrados pela
"ciência normal" vigente. Esta informação
raramente é uma "notícia" no seu sentido
jornalístico, promove notoriedade ao cientista ou se constitui
num "furo" ao jornalista que a divulga. No nível
mais trivial, o que é mais frequente, as vezes até
mais importante para o público, ganha mais dificilmente o
status de "notícia".
Em
suma, na comunicação da saúde pela mídia
massiva, pode ocorrer que o que é notícia pode ser
perverso para o público e o que lhe é útil
pode não ser notícia. Este é um nó górdio
que cabe ao comunicador desatar.
Isaac
Epstein é professor do curso de Jornalismo Científico
do Labjor/Unicamp
Bibliografia
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SEADE.
WITTGENSTEIN,L
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EPSTEIN,I
"Os possíveis efeitos negativos devidos à publicação
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n.27 UMESP, São Paulo, 1997,p.21/39
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Caderno
Mais, Folha de São Paulo, 30/06/1996
COCOLO,A,C
"Jornais e Revistas dão mais destaque a drogas menos
consumidas" in Jornal da Paulista Unifesp/EPM, n.159, Setembro
2001
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