Aproveitamento
das Inovações Farmacêuticas no Brasil
Antônio
Camargo
A revista
Time publicou, em 15 de janeiro de 2001, uma longa reportagem sobre
os procedimentos modernos utilizados pela indústria farmacêutica
multinacional para obtenção de novos medicamentos.
Uma boa parte dessa reportagem relata como a Indústria Millenium
seleciona os prováveis modernos anti-hipertensivos utilizando
informações genômicas (microarray). Uma máquina
automática denominada Zeus procura interferir nos processos
que a natureza seguiu para dotar o homem de meios de modo que o
seu sistema cardiovascular faça a regulação
da pressão arterial. Contrariamente a esse caminho, estamos
utilizando para essa mesma finalidade não a "recriação"
da natureza - que pode ser altamente frustrante - mas a busca dos
caminhos que a própria natureza utilizou. Para esclarecer
o que isso significa e conhecer a "anatomia" do caminho
a ser percorrido entre a descoberta científica levando a
geração do produto, é importante conhecer sua
história e através dela identificarmos as deficiências
brasileiras no aproveitamento de nossas descobertas científicas.
Vamos tomar como exemplo a trajetória da descoberta ao aproveitamento
daquilo que resultou na geração do anti-hipertensivo
mais utilizado em todo mundo. Procuraremos mostrar também
como o Brasil perdeu e continuará perdendo se não
procurarmos modificar uma realidade altamente prejudicial ao desenvolvimento
desse país.
História
Há
mais de 30 anos, um cientista inglês, sir John Vane (Prêmio
Nobel), e sua equipe, mostraram que a enzima conversora de angiotensina
chamada ACE, é responsável pela formação
de angiotensina II (que causa hipertensão arterial). Desde
essa época, essa enzima passou a ser o alvo da indústria
farmacêutica para a obtenção de drogas anti-hipertensivas.
Sir John Vane e sua equipe utilizaram substâncias extraídas
do veneno da jararaca para descobrir os primeiros anti-hipertensivos
naturais que foram utilizados como modelo pela Squibb (indústria
farmacêutica multinacional) para a síntese do Captopril,
droga bilionária utilizada como anti-hipertensivo no mundo
todo. O mérito dessa descoberta, que muito contribuiu para
entendermos como funciona o nosso sistema cardiovascular, ficou
quase todo com os ingleses e americanos. Entretanto, o avanço
que a fisiopatologia cardiovascular teve na segunda metade do século
passado deve muito a uma escola de cientistas brasileiros criada
pelo Prof. Mauricio Rocha e Silva e a utilização do
veneno da Bothrops jararaca. A descoberta da bradicinina, em 1949,
e dos primeiros anti-hipertensivos naturais, por Sergio Ferreira
e Rocha e Silva, na década de 60, foi possível graças
à utilização do veneno da jararaca. Foi Ferreira
que, no final da década de 60, levou ao sir John Vane a fração
do veneno da jararaca que continha esses anti-hipertensivos (denominados
de peptídeos potenciadores da bradicinina ou BPPs), que foram
utilizados como modelo para a síntese do Captopril, nome
comercial do anti-hipertensivo que tem rendido bilhões de
dólares para as multinacionais farmacêuticas.
Avanço
científico na área cardiovascular
A enzima
conversora de angiotensina (ACE) é fundamental para manter
nossa pressão arterial em valores normais. Essa enzima, que
está na parede dos vasos sanguíneos, não é
uma enzima simples. Possui duas "cabeças" ativas
chamadas C e N capazes de gerar angiotensina II e conseqüentemente
produzir hipertensão arterial. Sua ação pró-hipertensiva
é agravada porque essas "cabeças" também
inativam a bradicinina que, ao contrário da angiotensina
II, é a substância hipotensiva natural. Entretanto,
essas duas "cabeças" não são iguais.
A "cabeça" C é mais específica para
formar angiotensina II e inativar a bradicinina enquanto a "cabeça"
N faz a mesma coisa (embora com menor eficiência), mas inativa
um hormônio recentemente descoberto (AcSDKP), que regula a
proliferação de células do sangue responsáveis
pela defesa imunológica. O Captopril e seus derivados modernos
não são capazes de distinguir a "cabeça"
C da "cabeça" N, podendo gerar, com uso prolongado,
alterações nas células sanguíneas. Há
muito tempo, a indústria farmacêutica busca um inibidor
específico para a "cabeça" C, evitando assim
efeitos colaterais indesejáveis. Estaria, portanto, buscando
os anti-hipertensivos seletivos, mais eficientes e seguros. A ciência
cardiovascular moderna tem mostrado também que a regulação
da pressão arterial depende também de uma outra enzima
que reveste os vasos sanguíneos, a chamada EP 24.11. Essa
enzima também é pro-hipertensiva pois inativa a bradicinina
e dois outros hormônios também hipotensivos, o hormônio
natriurético e a endotelina. Assim, o anti-hipertensivo mais
eficaz seria aquele que inibisse a ação da ACE e da
EP 24.11. O Zeus está sendo utilizado também para
desenvolver novos anti-hipertensivos capazes de atuar especificamente
na "cabeça" C e inibir a EP 24.11.
Novos
avanços e descobertas
Buscamos
encontrar esses anti-hipertensivos na natureza, isto é, procurando
encontrar a(s) substância(s) capaz(es) de atingir esses alvos
(ACE e EP24.11). Como se trata de alvos vitais (uma vez atingido
pode matar por produzir choque cardiocirculatório) seria
esperado que a natureza tivesse selecionado na glândula do
veneno de animais peçonhentos, nos seus milhões de
anos de evolução, moléculas (toxinas) capazes
de atingi-los e assim poderem ser utilizados na defesa e/ou na obtenção
de alimento por parte desses animais. Essas substâncias seriam,
portanto, essenciais para a sobrevivência de determinadas
espécies de animais. As serpentes desenvolveram essas "armas"
por um longo processo de mutação e seleção
natural. Nossa equipe, no Centro de Toxinologia Aplicada (CAT/Cepid)
no Instituto Butantan, retomou o caminho trilhado por Ferreira e
pudemos identificar, por biologia molecular, o precursor capaz de
gerar os BPPs na glândula do veneno da Bothrops jararaca.
Encontramos sete BPPs juntamente com uma molécula do hormônio
natriurético numa mesma proteína (trabalho publicado
no Proc. Natl. Acad. Sci. em 1997) como se fosse um rosário
de moléculas anti-hipertensivas, capazes de causar um choque
cardiovascular na vítima picada por essa serpente. Recentemente,
as pós-doutorandas Miriam Hayashi e Fernanda Portaro, com
participação da mestranda Danielle Ianzer e da aluna
de iniciação científica Alessandra Murbach
, todas bolsistas da Fapesp, verificaram, por biologia molecular,
espectrometria de massa e por técnicas de química
de proteínas, que esses BPPs não são apenas
toxinas, mas fazem parte do sistema endógeno de regulação
da pressão arterial. A eficácia desses peptídeos
na circulação de ratos foi realizada por farmacologistas
do Instituto Butantan. Utilizando esses peptídeos sintéticos
mostramos, em colaboração com o Dr. Vincent Dive (CEA,
Saclay, França), que alguns deles são altamente seletivos
para a "cabeça" C e que também inibem a
EP 24.11. Encontramos assim, na natureza, a substância que
possui as propriedades dos novos anti-hipertensivos que as multinacionais
farmacêuticas procuram.
A propriedade
intelectual dessa descoberta, que foi recentemente requerida para
efeito de obtenção de patente no INPI (Brasil) e encaminhada
para utilização de seus direitos nos EUA, União
Européia e Japão, pertence à Fapesp e ao Consorcio
Farmacêutico Nacional (Coinfar) e, se tiver rendimentos, esses
serão usufruídos pela Fapesp, Instituto Butantan e
pelos pesquisadores envolvidos.
Propriedade
Intelectual no Brasil
O Brasil
está bastante despreparado para atuar no aproveitamento de
inovações. Não temos, em número suficiente,
pessoal treinado, nem nos escritórios e muito menos nas universidades,
centros de pesquisas ou nas indústrias farmacêuticas
brasileiras, para preparar uma proposta de patente como a do Evasin.
O próprio pesquisador deve efetuar a redação
dessa proposta, que exigirá uma busca em bancos de dados
internacionais (especialização sofisticada e altamente
complexa), ler dezenas de patentes semelhantes, aprender como proteger
sua patente contra modificações, muitas vezes sutis,
que, se não cuidadas, levariam à perda do interesse
de sua exploração econômica. Esses são
apenas alguns, entre tantos outros aspectos triviais para especialistas
nessa área.
Além
disso, toda proposta de patente deve passar pelo crivo de especialistas
em inteligência competitiva (que fará análise
do potencial econômico, da estratégia de mercado, plano
de comercialização etc) além do delineamento
do conteúdo da patente feita por especialistas no campo específico
de sua aplicação. Sem esses dados, não encontraremos
investidores e conseqüentemente a patente caducará.
Esses são alguns dos pontos que pudemos aprender durante
um curso sobre o direito à Propriedade Intelectual organizado
pelo CAT, que trouxe especialistas brasileiros e americanos para
essa finalidade. Esses especialistas, durante duas semanas, transmitiram
seus conhecimentos a alunos das universidades e institutos de pesquisa,
funcionários dos ministérios e das indústrias
farmacêuticas brasileiras. Apesar desse esforço, sentimos
que é necessário muito mais para atingirmos o nível
mínimo necessário para estarmos efetivamente inseridos
no sistema mundial de aproveitamento da Ciência e Tecnologia
desenvolvida no Brasil. Se quisermos, efetivamente, dar um tratamento
conseqüente às inovações no Brasil, devemos
certamente começar pela aquisição de capacitação
nessa área.
Proposta
de criação da Agência de Gestão da Inovação
Farmacêutica (Agif)
A criação
da Agif, caracterizada pela descrição abaixo, foi
uma iniciativa do CAT e do Instituto Uniemp e foi elaborada pela
especialista em propriedade intelectual, Dra. Leila Cabral (Info
Connection, Rio de Janeiro) em colaboração com a Dra.
Marilia Coutinho, pesquisadora da Fapesp.
A Agif
deverá ser um organismo de "gestão da inovação",
inicialmente com foco na pesquisa farmacêutica. Entre as suas
atribuições estará: monitorar a atividade inventiva
nas instituições de pesquisa públicas; auxiliar
na redação dos complicados documentos de patentes,
promovendo cursos, palestras e treinamento; formar agentes de propriedade
intelectual para cada tecnologia; desenvolver estratégias
de inovação e manter relacionamento com organismos
internacionais de licenciamento de tecnologias.
A agência
deverá funcionar a partir de pedido do interessado, que pode
ser um pesquisador, uma indústria ou uma instituição.
A partir desse momento, diversos comitês analisam a proposta,
buscam possíveis parceiros nacionais e internacionais, fazem
pesquisas nos bancos de patentes, propõem estratégias,
definem a participação de cada um dos beneficiários
e propõem a redação final da patente. Dessa
maneira, a Agif poderá ter uma participação
decisiva no suporte às iniciativas brasileiras para inovação
no setor farmacêutico.
A Agif
será incubada no Instituto UNIEMP (Universidade-Empresa),
e pretende ser um "piloto" ou "centro de referência"
para aplicações futuras em outras áreas.
Atribuições
da Agência de Gestão da Inovação Farmacêutica
(Agif):
- Monitorar
a atividade inventiva nas Instituições de Pesquisa
Públicas auxiliando o pesquisador na rota inovativa
- Auxiliar
na redação de documentos de patente. Avaliar realidade
do mercado e competitividade. Promover cursos, palestras e treinamentos
em PI
- Formar
agentes de Propriedade Industrial para cada tecnologia
- Realizar
gerência comercial com parceiros no plano financeiro e na
execução da produção comercial no
Brasil e no exterior
- Desenvolver
estratégia de inovação de potencial competitivo
Influenciar em política de Incentivo de Inovação
- Manter
estreito relacionamento com organismos internacionais de gerenciamento
e de licenciamento de tecnologias
Como
funciona o AGIF:
-
Acesso: o interessado (pesquisador, indústria ou Instituição)
solicita a mediação da agencia fornecendo uma breve
descrição do objeto da invenção e
possível aplicação. Assina os termos de mútua
confidencialidade bem como das despesas de gestão e/ou
participação da AGIF;
- O
Comitê Sponsor (CS) após analisar sua pertinência
encaminha ao Comitê de Inteligência Competitiva (CIC)
e de Peer-reviewers (CPR);
- O
CIC analisa o estado-da-arte efetuando uma busca nos bancos de
patentes, o perfil do mercado e possíveis parceiros (brasileiros
e internacionais). O parecer do CIC deve indicar uma estratégia
de mercado;
- O
CPR entrará no mérito da invenção
analisando seu potencial inovativo, abrangência e viabilidade
tecnológica;
- O
Consultor(es) de Propriedade Intelectual (CPI), com as informações
do CIC e do CPR decidirá se a proposta poderá resultar
numa patente e propõe estratégia e condições
de patenteamento e encaminha ao CS para o parecer final;
- O
CS decidirá sobre a redação final da patente
e sobre a busca de parceria para o desenvolvimento do projeto,
caso o AGIF tenha participação na patente. Nesse
caso, utilizando ou não a intermediação de
um Líbero, o CS fará uma avaliação
do valor comercial da invenção como base de negociação
para definição das titularidades, formas de licenciamento,
cessão de direitos e cronograma de dispêndio. Um
consultor jurídico do AGIF (pertencente ou não ao
CPI) fará a redação dos contratos entre as
partes envolvidas até então e definirá a
participação dos beneficiários.
Constituição
da Agif:
1.
Pesquisadores
- Staff da própria agência
- Pesquisadores universitários
- Técnicos da Indústria Farmacêutica
- Outros (Consultores nacionais e estrangeiros, etc)
2.
Instituições envolvidas
- A própria agência
- Órgãos financiadores
- Parceiros institucionais (Pessoas Jurídicas: ALANAC, ABIFINA,
SBPC, BIORIO, etc)
- Universidades e Centros de Pesquisa
- Iniciativa Privada em geral
- Entidades não-nacionais (ONGs, Banco Mundial, OMS, etc)
- Ministérios (MCT, MS, outros)
3.
Financistas (Investidores nacionais e estrangeiros)
4.
Agentes e Consultores em Propriedade Industrial
5. Sponsors
= cerne da Instituição, aprova ou indefere projetos;
constituído-se de dois grupos distintos, um grupo eventual
e outro permanente. O grupo permanente = o elo de ligação
entre todos os atores da instituição, recebendo os
in-puts. Reúne-se com periodicidade definida: função
executiva. O grupo eventual = representantes das entidades parceiras,
convidados para desempenhar funções com especificidade
definida. Desempenha função deliberativa.
Antônio
Camargo é diretor do CAT/Butantã
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