O
fim do petróleo e outros mitos
Newton
Müller Pereira
O final
do século XX, a virada do milênio, aguçaram
a sensibilidade apocalíptica em personalidades do meio acadêmico,
as quais nos brindaram com profecias catastrofistas amplamente divulgadas
na mídia, assim celebrando outros tantos finais em paralelo
ao do milênio que inexoravelmente se avizinhava. Diferentemente
deste último, porém, todos os demais finais previstos
têm caído em descrédito antes mesmo de seus
formuladores assentarem as bases de sustentação científica
(?) para suas peremptórias assertivas.
Ao
Fim da História, apregoado por Fukuyama, foi dedicado tempo
e espaço exagerados nos meios de divulgação,
como se tal fosse a grande descoberta do século, algo como
a cura do câncer ou da Aids. Ao Fim da Ciência e ao
Fim da Ideologia, num novo milênio tecnologicamente determinado
e governado por especialistas, foram dedicadas toneladas de papel
nos centros geradores do saber. Ao Fim do Neoliberalismo até
banqueiro alemão deu palpite e, pasmem, com grande repercussão
na mídia nacional. Ao Fim do Mundo, então, nem se
fale!
Com
tantos finais a rondar, fomos também contemplados com outra
pérola do apocalipse, mais uma daquelas que põem fim
a alguma coisa cara à humanidade, à sociedade, e que,
recorrentemente, é alardeada na mídia nacional e internacional.
Refiro-me, desta vez, ao Fim do Petróleo. Fim esse que de
tão próximo, dez anos, se tanto, arrastaria consigo
o modo de produção atual, o capitalismo, a sociedade
contemporânea, enfim, seria o final dos finais.
Sendo
consumido em maiores quantidades do que a natureza é capaz
de prover, não há como negar, o petróleo vai
acabar, ou melhor, pode acabar. O problema é quando vai acabar,
futuro ainda incerto. Para melhor precisar esse quando, uma quantidade
enorme de prognósticos foi e vem sendo elaborada desde que
o ouro negro jorrou em Titusville, Pensilvânia, em 1859. A
partir de então, a cada nova revisão dos prognósticos
sobre até quando contaremos com esse recurso tão determinante
ao modelo de desenvolvimento atual, mais à frente se vislumbra
o horizonte de seu esgotamento, contrariando, sempre, afoitos e
pessimistas. Estes, contudo, não cessam de proclamar suas
profecias.
Dentre
os prognósticos e suas respectivas metodologias de elaboração,
o realizado por M. King Hubbert, em 1956, prevendo a dinâmica
do declínio das reservas de óleo nos Estados Unidos,
e suas sucessivas revisões e extensões em nível
global, tornaram-se referenciais obrigatórios. Inclusive
para Colin Campbell e Jean Laherrère que, neste final de
milênio, publicaram na conceituada revista de divulgação
Scientific American, sob o título O fim do óleo
barato, a mais recente peça apocalíptica sobre
o assunto.
Os
autores mencionados subtraíram das estimativas divulgadas
pelo Oil and Gas Journal e pela revista World Oil,
que informam dados oficiais fornecidos pela indústria do
petróleo e gás natural, alguns bilhões de barris
em áreas onde a expectativa de ocorrência não
condizia com as avaliações geológicas e econômicas
deles próprios. Contudo, não sendo essa subtração
significativa em relação ao volume das reservas globais
apontadas pela indústria, à época 1020 bilhões
de barris, Campbell e Laherrère submeteram os parâmetros
estatísticos usualmente utilizados nessas estimativas a um
tratamento de choque. Passaram a considerar a média, extraída
da curva gaussiana que representa distribuição temporal
do óleo já produzido mais aquele ainda por ser produzido
(life-cycle model), e não o nível de probabilidade
90, como a expressão mais provável dos volumes de
óleo convencional ainda passíveis de serem produzidos.
Ora,
não são necessários profundos conhecimentos
para apontar a fragilidade do exercício realizado por Campbell
e Laherrère. Sem maiores comentários a respeito do
ineditismo da opção pela média, observa-se
que os autores remeteram ao campo da ficção pelo menos
40% das reservas de óleo do planeta (óleo que pode
ser produzido com a tecnologia disponível e aos níveis
de preço atuais) ao descartar o nível de probabilidade
90 como valor aceitável. Em outras palavras, os autores restringiram
as possibilidades de acerto das estimativas das reservas existentes
de óleo a meros 50%, quando o professor Rogério Cezar
de Cerqueira Leite, mesmo dando eco a Campbell e Laherrère
sobre o fim do petróleo barato, nos ensina, em matéria
na Folha de São Paulo sob o título O fim do
petróleo, que ...'Hoje conhecemos suficientemente o planeta,
pelo menos no que diz respeito ao petróleo, para poder traçar
a curva de Gauss de sua produção global, com um nível
de incerteza inferior a 10%', ou seja, com nível de certeza
superior a 90%.
Ao
aceitarmos que a indústria do petróleo opera com um
nível de certeza, quanto a possibilidade de produzir o total
das reservas estimadas, superior a 90%, não poderemos ao
mesmo tempo concordar com os 50% adotados por Campbell e Laherrère.
E, ao não concordar, passaremos a posicionar, necessariamente,
o fim do petróleo e, conseqüentemente, o fim do petróleo
barato, em horizontes além dos dez anos prognosticados pelos
autores.
Mas
vamos ao que interessa de fato, ao que deve balizar a discussão
quanto ao esgotamento ou não das reservas globais de petróleo.
Reservas de petróleo, como ademais de todos os recursos minerais,
são o resultado de investimentos prévios em pesquisa,
em exploração e em tecnologia. E, sendo assim, dinâmicas
no tempo. Dinamismo esse que gera a expectativa de que avaliações
sucessivas possam acrescentar novos volumes de óleo a cada
estimativa anterior. O que não quer dizer, absolutamente,
que as reservas aumentarão indefinidamente. Há difusos
limites físicos para tanto e bem mais precisos do ponto de
vista tecnológico e econômico.
Na
contramão da perspectiva do fim do petróleo barato
estão as reavaliações das reservas petrolíferas
mundiais realizadas pelo United States Geological Survey
em 1997 e 2000, órgão que assessora o governo norte-americano
em suas ações para manter o fluxo de insumos minerais
e energéticos para a indústria daquele país.
Diga-se de passagem, país com enorme dependência do
subsolo alheio em matéria de petróleo. Essas reavaliações,
diferentemente do que foi vaticinado por Campbell e Laherrère,
informam que as reservas de petróleo vêm sendo sistematicamente
sub-avaliadas pelo órgão, permitindo-lhe concluir
que '... um desbalanceamento num futuro próximo entre a demanda
e o suprimento de óleo devido à exaustão dos
recursos mundiais é pouco provável'. Sendo pouco provável
também, nessas circunstâncias, o fim do petróleo
barato.
O USGS
estima as reservas identificadas em 1100 bilhões de barris
de óleo, as quais somadas aos recursos ainda não identificados
do tipo convencional, 430 bilhões de barris, totalizam 1530
bilhões de barris de óleo. Se nada mais vier a ser
adicionado a esse número e o consumo de petróleo se
mantiver no patamar atual (75 milhões de barris/dia), ainda
teríamos petróleo para usar por mais 50 anos. Período
por demais longo para afirmar que o petróleo ainda continuará
sendo o principal combustível da matriz energética
mundial. Como escreve Cerqueira Leite, '... daqui a 40 anos ...
já teremos encontrado uma alternativa para o petróleo...',
logo, não se justifica prognosticar seu fim.
Cenários
publicados recentemente pelo Grupo Shell e pela Agência Internacional
de Energia, já no presente milênio, dão conta
que é muito improvável acontecer escassez de óleo
antes de 2025, horizonte que pode ser estendido para 2040 através
de ganhos de eficiência em veículos e do lado da demanda
de um modo geral. Também informam que o custo de produção
do barril de óleo deverá se manter, pelo menos até
2025, num patamar inferior aos US$ 20, pressionado por avanços
tecnológicos. Os custos decrescentes do biofuel e
da conversão gas to liquids, ambos já bem abaixo
dos US$ 20 por barril equivalente de óleo, impõem
limites ao aumento dos preços do barril de petróleo.
Num
cenário de grande dinamismo inovador, mais otimista que o
anterior, em 2030 já deveremos estar adquirindo células
combustíveis nas redes de distribuidores e supermercados
para abastecer nossos veículos e suprir nossas necessidades
energéticas domésticas, mudando, assim, radicalmente
nosso perfil energético e o da matriz energética mundial.
Nessa situação, o petróleo, muito antes de
se esgotar, perderá seu apelo como combustível, firmando-se
como fonte de matérias-primas para outros setores industriais.
Sem demanda significativa, seus preços se tornariam tremendamente
deprimidos: 'Oil is not need'.
Por
tudo isso, entendo que a '...advertência inequívoca
de Campbell e Laherrère...' sobre o fim do petróleo
barato pode ser tudo, menos inequívoca. Pensando bem, não
se trata senão de outro daqueles tantos presságios
que assolaram o Fim do Milênio.
Newton
Müller Pereira é geólogo pela UFRGS, mestre pela
UFBa, doutor pela EPUSP, pós-doutorado pelo SPRU, UK. Professor
do Departamento de Política Científica e Tecnológica
do IG/Unicamp, atuando no campo das políticas e economia
dos recursos naturais e do meio ambiente, e no de avaliação
de programas tecnológicos. Exerceu a coordenação
da pós-graduação do Departamento, a coordenação
da pós-graduação e a direção
do Instituto de Geociências.
Para
ler sobre o assunto:
_ Adelman,
M.A. and Lynch, M.C. - Fixed view of resources limits creates undue
pessimism. Oil and Gas Journal, v95, n014.
_ Campbell, J. C. and Laherrère, J. H. - The End of Cheap
Oil. Scientific American, March, 1998.
Ivanhoe, L. F. - Update Hubbert curves analyze world oil supply.
World Oil, 1997.
_ IEA - World Energy Outlook 2002: Executive Summary.
_ Cerqueira Leite, R. C. de - O fim do petróleo. Folha
de São Paulo 10.05.98.
_ Shell International Limited - Exploring the Future: Energy Needs,
Choices and Possibilities - Scenarios 2050. London, 2001.
_ UNDP - World Energy Assessment: Overview. New York, 2000.
_ USGS World Petroleum Assessment 1997 e 2000.
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