Mudança
Institucional e Política Industrial no Setor Petróleo
André
Tosi Furtado
A década
de 1990 trouxe profundas mudanças, tanto no plano institucional
como macro-econômico, que tiveram consideráveis desdobramentos
para os setores de infra-estrutura. Esses setores eram dominados
por grandes empresas estatais que, a partir de sua posição
de monopsônio na compra de equipamentos, e sob influência
do poder público, haviam montado políticas de capacitação
de fornecedores locais de equipamentos, as quais incluíam,
além do domínio tecnológico da produção
de equipamentos complexos, a absorção de tecnologias
geradas pelos centros de pesquisa das estatais. Essas políticas
se intensificaram durante as décadas de 70 e 80, com as crises
energética e do endividamento externo, porque serviram de
instrumento para reduzir a vulnerabilidade externa da economia brasileira.
A partir
dos anos 1990, as mudanças ocorridas, em primeiro lugar,
no plano macro-econômico, como a abertura externa da economia
brasileira, e no plano institucional, como a quebra de monopólios
e privatizações, interromperam os antigos elos que
existiam entre as empresas estatais prestadoras de serviços
públicos e os fornecedores nacionais de equipamentos e serviços.
As empresas estatais foram desmembradas e privatizadas com o intuito
de aumentar a concorrência em setores que se caracterizavam
por serem "monopólios naturais". As novas empresas
passaram, na busca de atualização tecnológica
e modernização produtiva, a se relacionar diretamente
com fornecedores externos. As aberturas comercial e tecnológica,
além de uma taxa de câmbio sobrevalorizada, favoreceram
a importação de tecnologia incorporada e desincorporada.
Houve, em decorrência, um recuo dos fornecedores e da produção
local.
A indústria
de petróleo, embora não tenha incorrido pelo mesmo
processo de privatização e desmembramento dos setores
elétricos e de telecomunicações, acompanha
a mesma tendência de mudança da relação
usuário-fornecedor dos demais. A mudança institucional
da quebra do monopólio do petróleo (Lei n. 9.478 de
1997), e a maior abertura comercial da economia brasileira, trouxeram
importantes conseqüências para essa indústria
brasileira de petróleo.
Essa
indústria se compõe basicamente de dois tipos de atores:
as companhias de petróleo, chamadas de operadoras, e os fornecedores
de bens e serviços, denominados de indústria para-petroleira.
Ela apresentava, antes da mudança institucional, uma organização
verticalizada centrada na empresa líder: a Petrobras. Por
apresentar um impacto muito negativo na Balança Comercial,
a estatal foi induzida pelo poder público a buscar a auto-suficiência
do país na produção de bruto e a reduzir o
seu impacto nas importações de bens de capital. Por
essa razão, e também por ser a mais antiga dos setores
de infra-estrutura, ela desenvolveu uma política pioneira
e bastante bem sucedida de capacitação e qualificação
dos fornecedores nacionais.
A abertura
comercial, no início da década de 1990, alterou a
estratégia da Petrobras de aumentar cada vez mais o índice
de nacionalização dos insumos e equipamentos adquiridos.
Esse índice, segundo dados da companhia, chegou a alcançar
92% no início dos anos 1990, mas logo declinou para um nível
próximo de 80% ao longo da década. A empresa passou
a fazer licitações internacionais e incluiu em seu
cadastro, os fornecedores estrangeiros.
Os
fornecedores locais de equipamentos, principalmente o segmento da
construção naval, que era muito ligado aos investimentos
realizados pela Petrobras no transporte naval e, desde a década
de 1980, na produção offshore da Bacia de Campos,
foram muito afetados pelo refluxo desses investimentos no início
da década de 1990. Os investimentos só voltaram para
níveis normais quando, a partir de meados dessa década,
o governo aumentou preços internos dos derivados de petróleo.
Em decorrência, a Petrobras pode recobrar rentabilidade interna,
tornando viável a exploração do enorme potencial
produtivo, descoberto na Bacia de Campos, em águas profundas.
O salto produtivo que estamos presenciando na atualidade - a produção
interna de bruto passa de 630 mil barris/dia em 1990 para mais de
1,5 milhão de barris de petróleo por dia nos dias
de hoje - somente foi possível graças ao enorme avanço
tecnológico que logrou a partir de programas tecnológicos
como o Procap 1000 e 2000. Porém, o aumento dos investimentos
da Petrobras, não repercutirá, em função
da abertura, tão favoravelmente nas compras internas de materiais
e equipamentos da empresa.
Neste
aspecto, a mudança institucional comprometeu ainda mais os
encadeamentos internos dos investimentos da Petrobras. A Lei 9.478
de 1997 sanciona a quebra do monopólio exercido pela Petrobras
sobre as atividades de exploração, produção,
refino e transporte de petróleo, derivados e gás natural,
possibilitando que empresas operadoras e prestadoras de serviços,
sejam elas nacionais ou estrangeiras, venham competir com a empresa
estatal em todos esses segmentos de atividades. No bojo da mudança
institucional, surge um novo ator governamental, a Agência
Nacional do Petróleo, que é o órgão
regulador encarregado de zelar pelo adequado funcionamento dessa
indústria em bases competitivas. Para a indústria
de fornecedores, cria-se também um novo ator, a Onip (Organização
Nacional da Indústria do Petróleo) com a finalidade
de organizar essa indústria para torná-la competitiva
frente aos fornecedores externos.
O principal
motivo da mudança institucional no setor do petróleo
e do gás natural não foi a necessidade de consolidar
a política industrial, senão a oportunidade de ampliar
o volume de investimentos para atender ao consumidor final e valorizar
os potencias recursos do país. Nesse sentido, a mudança
institucional apresenta importantes oportunidades para indústria
de fornecedores. A quebra do monopólio permite a entrada
de novas empresas operadoras, tanto no upstream (segmentos
da exploração e produção) como no downstream
(segmentos do transporte, refino e distribuição) da
indústria de petróleo. Essas empresas representam
novos clientes para os fornecedores de equipamentos locais.
Esse
aspecto, potencialmente positivo, foi encoberto por uma mudança
ainda mais significativa do regime tributário da indústria.
A indústria do petróleo, por ser de propriedade pública
e porque o país carecia ainda de produção de
bruto em nível suficiente para atender ao mercado interno,
possuía uma carga fiscal que recaía fundamentalmente
sobre o consumo de derivados. A produção era praticamente
desonerada de impostos, com a justificativa de incentivar a descoberta
e o desenvolvimento de novos campos. Com a Lei do petróleo
de 1997, o país adotou um novo regime que passou a tributar
fortemente a produção. Os royalties passaram
de 5 para 10%, dependendo da margem obtida pela operadora. Os campos
mais rentáveis tiveram que pagar participações
especiais sobre o lucro. Uma mudança um pouco anterior fez
com que a Petrobras começasse a pagar imposto de renda. As
empresas que concorreram às licitações de bloco
da ANP, inclusive a Petrobras, tiveram que pagar bônus e aluguel
de área. Essas mudanças aumentaram substancialmente
a carga tributária sobre as atividades do upstream.
Elas seguem o padrão de regime tributário de países
exportadores de petróleo ou de grandes produtores como Estados-Unidos
e a Grã-Bretanha.
Em
face à sua "geologia rebelde", que acarreta maiores
riscos geológicos e maiores custos de desenvolvimento, o
Brasil era menos atrativo do que países dotados de abundantes
recursos a baixos custos. Isto exigiu uma alteração
da carga tributária que recai sobre as importações
de equipamentos para a exploração e o desenvolvimento
de campos marítimos no Brasil. O novo regime tributário
implantado em 1999, denominado de Repetro (Regime Aduaneiro Especial
para a Indústria do Petróleo), possibilitou que a
importação de equipamentos fosse franqueada de qualquer
tributação. Os equipamentos permanecem por um tempo
determinado em solo nacional (durante o contrato de concessão)
sem ter que pagar impostos federais (Imposto de Importação,
PIS, Cofins e IPI) e estaduais (ICMS). Esse regime, que é
adotado internacionalmente, conduziu a serias distorções
para a indústria de fornecedores quando foi aplicado no Brasil.
A produção nacional acabou sendo desfavorecida porque
não logrou ser completamente desonerada de impostos através
do sistema de "exportação ficta", o qual
foi criado pelo Governo Federal para compensar os fornecedores locais
da concorrência desigual dos produtos importados. A produção
local, mesmo quando desonerada de impostos federais, não
logrou livrar-se dos impostos estaduais.
Preocupada
com o destino da indústria de fornecedores, a ANP passou
a incorporar nos critérios para seleção dos
leilões de áreas índices de nacionalização.
Esses índices ficaram, entretanto, muito aquém do
que fora alcançado anteriormente (abaixo de 40%). O Repetro
não é a única causa das operadoras se desinteressarem
pelos fornecedores nacionais. Estes estavam defasados tecnologicamente
e careciam de mecanismos de financiamento adequados.
A indústria
de fornecedores não entrou completamente em declínio
porque a Petrobras sob pressão do Governo do Estado do Rio
tem aumentado consideravelmente suas encomendas aos estaleiros navais.
Essa indústria está hoje re-emergindo após
uma depressão profunda que quase a levou à extinção.
Em
suma, as mudanças institucionais da década de 1990
alteraram profundamente os sistemas industriais e de inovação
setoriais, centrados anteriormente nas estatais. A lógica
empresarial, que passou a dominar as estratégias das empresas
lideres, aliada à abertura da economia nacional, induziu
esses atores a buscar fornecedores externos. No caso da indústria
do petróleo, a abertura à concorrência no upstream,
feita com o propósito de aumentar o volume de investimentos
nessa atividade, contribuiu para criar um regime tributário
que desincentiva a produção local.
Embora
essas mudanças tenham conduzido à busca de eficiência
e a uma maior concorrência entre empresas, elas não
foram suficientes para reforçar os elos entre os atores dos
sistemas setoriais de produção e inovação.
Pelo contrário, em alguns aspectos essas mudanças
enfraqueceram esses elos porque deram maior margem de manobra a
atores-chaves, como a Petrobras. Além de, em certos casos,
beneficiarem a importação ao invés da produção
local. Como o sistema produtivo dos fornecedores locais padece de
séria defasagem tecnológica em relação
aos concorrentes internacionais, e como ocorrem muitas "falhas
de mercado" no Brasil - por ex. taxas de juros altas, infra-estrutura
deficiente, etc. -, é necessário que haja um órgão
de política industrial que atue no sentido de corrigi-las.
É justamente esse ator que esteve ausente das mudanças
institucionais e das políticas da década de 1990 na
indústria do petróleo.
André
Tosi Furtado é professor do Departamento de Política
Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências,
da Unicamp.
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