A
cidade como objeto de estudo: diferentes olhares sobre o urbano
Maria
Josefina Gabriel Sant'Anna
A
cidade ocidental moderna tem sido pensada sob distintas matrizes
teóricas, com diferentes graus de abstração
e de generalização. Busca-se aqui formular um breve
panorama de algumas das diversas concepções que marcam
o pensamento sobre a cidade. Trata-se, portanto, de um recorte,
o que implica na eleição de alguns paradigmas, na
exclusão de outros e ainda na impossibilidade de contemplar
todos os autores e tendências.
A
cidade segundo os clássicos: Marx, Weber, Durkheim
Para Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895), a cidade ocidental moderna
constitui o local da produção e reprodução
do capital, produto da sociedade capitalista, e, portanto, parte
integrante de processos sociais mais amplos. Ela expressa a miséria
e a degradação da classe operária, denunciadas
com contundência em A situação da classe trabalhadora
na Inglaterra (Engels, 1845), retomadas posteriormente em O Capital
(Marx, 1867). Para os autores, "a história de qualquer
sociedade até nossos dias é a história da luta
de classes" (Manifesto Comunista/1848); deriva daí a
concepção do papel histórico e estratégico
que eles imputam à cidade industrial no século XIX,
como locus da luta de classes. Berço da burguesia e de sua
ascensão revolucionária, a cidade é também
o espaço onde se evidencia a exploração dos
trabalhadores e onde, dialeticamente, tal exploração
será superada, por meio da revolução operária.
A cidade capitalista nessa perspectiva tem concretude histórica.
É
diferente, nesse sentido, a ótica de Weber, (1864-1920),
que concebe a cidade como tipo-ideal, demarcando um outro campo
teórico. Interessa ao autor explicitar a origem e o desenvolvimento
do capitalismo moderno e da racionalidade que o atravessa em todas
as suas esferas, destacando o papel que a cidade desempenha na emergência
desses processos. Sua reflexão mais sistemática sobre
a cidade está em The City (1922), posteriormente incorporada
à obra Economia e Sociedade sob o título de A dominação
não-legítima (tipologia de cidades). Nesse texto,
Weber reúne um conjunto de estudos sobre a Antigüidade,
sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo
e sobre a moral econômica das grandes religiões. Esse
conjunto de estudos mostra a intenção do autor de
pesquisar a política econômica urbana, tal como se
desenvolveu na cidade medieval, o que visava compreender o papel
da cidade no desenvolvimento do capitalismo moderno. Na sua forma
típica ideal, a cidade caracteriza-se por constituir-se como
mercado e por possuir autonomia política. A cidade medieval
ocidental é a que mais se aproxima de seu tipo ideal de cidade.
Para
encerrar os clássicos, é preciso mencionar Durkheim
(1971), que se interessa indiretamente pela cidade, graças
à atenção que concede à morfologia social.
Toma como referência para a análise da sociedade a
disposição, em determinado território, de uma
massa de população de certo volume e densidade, concentrada
nas cidades ou dispersa nos campos, que, servida por diferentes
vias de comunicação, estabelece diferentes tipos de
contato. É, portanto, no contexto da anatomia da sociedade,
em seus aspectos marcadamente estruturais, que a cidade surge como
substrato da vida social, acumulando e concentrando parcelas significativas
da população.
Os
preceitos teóricos e o alto grau de abstração
e de generalidade presentes no pensamento dos clássicos da
Sociologia opõem-se à abordagem largamente empiricista
que marca a Escola de Chicago.
A
Escola de Chicago: o nascimento da Ecologia Urbana
A
Escola de Chicago inaugura uma reflexão inédita ao
tomar a cidade como seu objeto privilegiado de investigação,
tratando-a como variável isolada, o que em si não
constituiria um mérito, mas o que renderia à Escola
os créditos da criação da Sociologia Urbana
como disciplina especializada. A validade dessa reverência
é discutível. Para Castells, essa sociologia que advoga
a idéia da existência de um urbano per se, não
é uma ciência, e sim uma ideologia. Essa crítica,
mesmo procedente, não invalida a importância dessa
abordagem que se orienta pelos conceitos da ecologia humana. A teoria
de Robert Park, ilustre representante da Escola, sobre a ecologia
humana e as áreas naturais pressupõe uma analogia
entre o mundo vegetal e animal, de um lado, e o mundo dos homens,
de outro. Utiliza os conceitos de competição, processo
de dominação e processo de sucessão, para explicar
tal similaridade. A cidade é apreendida por meio de um referencial
de análise analógico que tem por base a ecologia animal,
daí identificar a Escola de Chicago como Escola Ecológica.
Louis
Wirth, outro autor de destaque da Escola, afirma que a cidade produz
uma cultura urbana que transcende os limites espaciais da cidade,
afirmação totalmente inovadora. A cidade atua e se
desdobra para além de seus limites físicos, através
da propagação do estilo de vida urbano, e torna-se
o locus do surgimento do urbanismo como modo de vida.
O
empirismo que marca a abordagem da Escola - que transforma a cidade
de Chicago em um "laboratório social"- resulta
do interesse de buscar soluções concretas para uma
cidade caótica marcada por intenso processo de industrialização
e de urbanização, que ocorre na virada do século
XIX para o XX. Seu crescimento demográfico espantoso, seu
imenso contigente imigratório, seus guetos de diferentes
nacionalidades geradores de segregação urbana, sua
concentração populacional excessiva e suas condições
de vida e de infra-estrutura precaríssimas, favorecem a formulação
pela Escola da idéia da cidade como problema, que dificulta
a articulação de um pensamento com maior grau de abstração
acerca da cidade.
A
sociologia francesa: o urbano capitalista
Para
os sociólogos franceses (bem como para os norte-americanos
fundadores da eloqüentemente intitulada "new urban sociology",
C. Wright Mills e Floyd Hunter, para citar apenas os mais influentes),
o urbano deveria ser compreendido como espaço socialmente
produzido, assumindo diferentes configurações de acordo
com os vários modos de organização socioeconômica
e de controle político em que está inserido. Ganha
importância a interação entre as relações
de produção, consumo, troca e poder que se manifesta
no ambiente urbano. Esse enfoque expressa o descontentamento dos
neomarxistas franceses com a idéia defendida pela Escola
de Chicago de que haveria um urbano per se, a partir do qual era
possível explicar toda uma série de fenômenos
sociais (Valladares e Freire-Medeiros, 2001).
Assim,
no final da década de 1960, Castells, Lojkine, Ledrut e Lefebvre
propõem novos marcos para a renovação da reflexão
sobre a cidade. Com tal enfoque, politiza-se a questão urbana
e surgem novas questões: os movimentos sociais urbanos, os
meios de consumo coletivo, a estruturação social do
território na sociedade capitalista e o papel do Estado na
urbanização (Gonçalves, 1989, p. 71).
Lojkine
(1981) discute a questão do Estado na sociedade de capitalismo
avançado, com base na hipótese de que a urbanização,
como uma forma desenvolvida da divisão social do trabalho,
é um dos maiores determinantes do Estado do Bem-estar Social.
Analisa o papel do Estado na urbanização capitalista,
a relação da política urbana e suas dimensões
com a luta de classes e a questão dos movimentos sociais
urbanos diante do Estado.
Henri
Lefebvre, outro expoente dessa vertente francesa, traz um novo enfoque
sobre a cidade, concebendo-a como o reino da liberdade e do novo
urbanismo. Mesmo reverenciado como um dos maiores teóricos
do marxismo contemporâneo, Lefebvre tem suas últimas
obras criticadas, no campo da discussão urbana, tanto por
Castells (1977) quanto por Ledrut (1976). Argumentam que o autor
expulsa o marxismo do campo das lutas de classe para o da "cultura",
formulando assim uma concepção ideológica do
urbano. Pode-se, em defesa de Lefebvre, dizer que na sua ótica
o urbano não representa apenas a transformação,
pelo capitalismo, do espaço em uma mercadoria, mas também
a arena potencial do cotidiano vivido como jogo, como festa (1970).
Considera simplista "a concepção que coloca,
de um lado, a empresa e a produção e, de outro, a
cidade e o consumo", o que não permite desvendar a verdadeira
dimensão do espaço (1990), numa clara alusão
às críticas de Castells e Ledrut.
A
cidade na visão latino-americana
A
década de 1960 inaugura também a reflexão latino-americana
sobre urbanização e desenvolvimento em "países
periféricos". Aníbal Quijano, José Nun,
entre outros, elegem a teoria da marginalidade e da pobreza como
seu principal foco de atenção. Esse paradigma, que
sempre fornece explicações veladamente funcionalistas
à desigualdade socioeconômica, será por isso
criticado por estudiosos urbanos brasileiros.
Sociologia
urbana no Brasil
Enquanto
nos Estados Unidos e na Europa, a década de 1960 inaugura
um confronto entre uma sociologia urbana de cunho ecológico
e uma "nova sociologia" preocupada com o urbano de forma
mais abrangente, no Brasil, essa mesma década marca o próprio
surgimento da sociologia urbana como disciplina especializada. Apesar
de esforços isolados de pesquisa e reflexão sobre
pequenas comunidades urbanas desde fins dos anos 1940 (inspirados,
sobretudo, por antropólogos americanos como Donald Pierson
e Charles Wagley), a sociologia brasileira só aparece de
fato e de direito, como uma "ciência do urbano",
com a publicação, em 1968, do livro Desenvolvimento
e Mudança Social: formação da sociedade urbano-industrial
no Brasil, de J. B. Lopes, a primeira grande tentativa de reflexão
sociológica sobre a relação entre desenvolvimento
industrial, falência do modelo patrimonial e urbanização
(Valladares e Freire Medeiros, 2001). O trabalho de Lopes, bem como
os estudos latino-americanos, motivaram os sociólogos brasileiros
da década de 1960, que, entretanto, rejeitaram criticamente
o paradigma da marginalidade. Pesquisas pioneiras, como as de Francisco
Oliveira, de Paul Singer, de Maria Célia Paoli, de Manoel
Tostes Berlink, demonstram que a marginalidade resulta não
de um problema de integração social, mas de uma questão
estrutural: a preservação da pobreza ocorre através
de mecanismos institucionais que nada têm de "marginais"
ao sistema. Instala-se, então, uma ruptura com as concepções
anteriores sobre migração e marginalidade e se traz
à tona o papel desempenhado por formas não-capitalistas
de produção na acumulação do capital.
Como
resultado, as noções de "espoliação
urbana" (Kowarick, 1979) e de "periferização"
orientam novas pesquisas. Ganha destaque a dimensão política
da urbanização e proliferam os estudos sobre a dupla
espoliação sofrida pelas classes populares: como força
de trabalho subjugada pelo capital e como cidadãos submetidos
à lógica da expansão metropolitana que lhes
negava o acesso aos bens de consumo coletivos (Valladares e Freire,
2001).
Quanto
aos clássicos da Sociologia, foi o pensamento de Marx que
mais influenciou a produção sobre a cidade, quer por
meio da sociologia urbana francesa, quer na visão crítica
da teoria da marginalidade.
No
que se refere à Escola de Chicago, sabe-se que ela exerceu
grande influência entre os pensadores brasileiros. Sua herança
foi marcante, seja fundando, curiosamente, os estudos de comunidade
próprios da Sociologia Rural, que têm na obra de Antonio
Candido Parceiros do Rio Bonito (1964) seu exemplo emblemático,
seja na Antropologia Urbana que até hoje trabalha com os
métodos e alguns conceitos da Escola de Chicago, como por
exemplo a noção de "zona moral" de Park.
Por
sua vez, os preceitos da sociologia urbana francesa marcaram os
anos 1980 como pano de fundo teórico e como início
dos estudos sobre as contradições urbanas, sobretudo
o estudo da grande novidade temática da década: os
movimentos sociais urbanos.
Hoje
os estudiosos urbanos continuam importando paradigmas, mas permanece
o empenho de investigar e de explicar as particularidades da realidade
urbana brasileira. A temática da globalização,
por exemplo, está presente nos estudos sobre as metrópoles
brasileiras. A discussão sobre dual city, uma cidade de estrutura
social polarizada, dual, em que o espaço dos ricos contrapõe-se
ao dos pobres, resultante da globalização das economias
urbanas, não deixa de motivar os pesquisadores urbanos, mas
há uma preocupação com os limites da aplicabilidade
de tal noção. O que se nota como peculiar à
reflexão contemporânea sobre a cidade é que
ela se torna cada vez mais ampla e multidisciplinar incrementando
o leque temático da Sociologia Urbana.
|