Editorial:

As cidades e os muros
Carlos Vogt

Reportagens:
Prós e contras da revitalização urbana
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Programa Habitat procura desenvolver a qualidade de vida nas cidades
Ocupações revelam déficit habitacional
Fórum Social propõe uma outra cidade possível
Novas metrópoles, velhos problemas
Conflitos entre centro e periferia
Qualidade das águas é cada vez pior
Lixo é problema ambiental com agravantes sociais
Transporte em São Paulo: conflitos e soluções
Poluição sonora piora ambiente urbano
Preservação ambiental: destino alternativo para o litoral sul de São Paulo?
Cidade tenta unir tecnologia com inclusão social
Educação para uma nova cidade
Brasília contrastes de uma cidade planejada
Vilas significaram distância entre patrões e operários
Artigos:
Dimensões da tragédia urbana
Ermínia Maricato

Aprovação do Estatuto da Cidade
Geraldo Moura

O passado nas cidades do futuro
Cristina Meneguello
"As cidades nos países subdesenvolvidos" em um mundo globalizado
Tatiana Schor
Cidades e seus fragmentos
Rogério Lima
Cidade, língua, escolae a violência dos sentidos
Cláudia Pfeiffer
A cidade como objeto de estudo
Maria Josefina Gabriel Sant'Anna
Poema:
Manual do novo peregrino
Carlos Vogt
 
Bibliografia
Créditos

 

 

"As Cidades nos Países Subdesenvolvidos" em um Mundo Globalizado

O que para nós estudantes, que temos a oportunidade de conhecer o geógrafo, acadêmico, intelectual, a pessoa Milton Santos não só o autor de diversas obras mas também orientador e professor é importante a sua vivência como cidadão do mundo. A sua vida, obra e, principalmente, a sua disposição para com os jovens é de muito valor. Neste pequeno texto tentaremos colocar as questões levantadas, tanto em seus livros quanto em suas aulas que nos levaram a estudar. Não temos a pretensão de falar de todas as suas obras mas, escrever da parte que nos capta a atenção, falar um pouco das sementes que ele nos deixa depois de cada conversa.

 

 

 

 

 

Tatiana Schor

"Tanto do ponto de vista da organização regional, como do ponto de vista da organização interna, a cidade é, enfim, uma autêntica e total representação da região a que preside e do mundo com a qual comercia." (pág. 14)[1]

Este pequeno trecho de um dos muitos escritos do Prof. Milton Santos pode nos mostrar algumas coisas. Por um lado reforça a atualidade de sua obra. Considerando que foi escrito nos meados da década de 60 poderíamos, em um primeiro momento, tratá-lo como ultrapassado, porém ele ainda nos possibilita uma reflexão sobre um dos maiores problemas da atualidade: as grandes cidades e, em especial, as grandes cidades nos países subdesenvolvidos. Por outro lado, a partir desse mesmo texto podemos começar a compreender a discussão que hoje está em voga, na qual o próprio autor tem se pronunciado: a Globalização.

O trecho acima encontra-se no livro As Cidades nos Países Subdesenvolvidos. Livro interessante, pois discute as cidades nos países subdesenvolvidos, enfatizando a cidade como expressão desse subdesenvolvimento que, ao mesmo tempo, contém o germe da evolução e o germe da renovação desse subdesenvolvimento. Deixando claro o quanto os problemas da cidade se confundem com os problemas do próprio país no qual encontra se inserida; explicando a não competitividade da indústria através da discussão da formação da cidade e da indústria nela localizada. Nos levando a compreender a razão pela qual essa indústria e essa cidade não tem capacidade de enfrentar o mercado externo. Definindo de uma maneira muito sutil o significado de cidade e propondo a utilização de 'cidade' como noção, categoria de análise:

"... a cidade é, antes de tudo, definida por suas funções e por um gênero de vida, ou, mais simplesmente, por uma certa paisagem, que reflete ao mesmo tempo essas funções, esse gênero de vida e os elementos menos visíveis mas inseparáveis da noção de 'cidade': passado histórico ou forma de civilização, concepção e mentalidade dos habitantes." (pág. 14)

Como se pode perceber esse livro contém diversos temas que poderão, em algum outro momento, serem analisados. Propõem-se aqui, a partir do trecho inicial, analisar um dos movimentos encontrados nessa obra. O movimento que queremos analisar é aquele que procura, na obra, relacionar a organização interna e regional da cidade com a região que a cidade preside e o mundo com a qual comercia. Da compreensão desse movimento, generalizar o papel da cidade e discutir mais especificamente a cidade nos países subdesenvolvidos.

Percebe-se neste movimento que a cidade é um lugar no qual a centralidade da região está concentrada. Esse fato decorre da atuação de duas forças de organização relacionadas com: a organização interna e sua organização regional. Uma organização está intrinsecamente dentro da outra. Existe uma impossibilidade de compreensão do centro sem a compreensão de sua não-centralidade. Essa discussão, essa característica de concentração no lugar da centralidade da região é clássica. Surge como preocupação tanto nessa obra como em outras obras do autor. O questionamento do papel da cidade no desenvolvimento da região, no espectro de relações sociais e na formação das forças produtivas nela presentes, é importante no processo de compreensão da rede de relações presentes no lugar e fora dele. Desse questionamento o autor nos leva ao seguinte passo;

"A cidade não tem poder para forçar a evolução regional de que depende o seu próprio desenvolvimento. As possibilidades de evolução regional são criadas fora da região e da cidade, de acordo com os interesses do mundo industrial (...) ...tanto maior o subdesenvolvimento regional, tanto menos a cidade tem força para modificá-lo, tanto mais ela se ressente da pobreza de sua zona de influência." (pág. 7)

Dessa citação podemos observar a discussão da cidade como um lugar que preside e está intimamente relacionado com a região. Conjuntamente com o papel da cidade no processo de formação e reprodução do capital, seu papel como aglomeradora de diferentes espaços. Considera-se muito importante para a compreensão da realidade o locus da formação do capital. O capitalismo tem se mantido através do tempo pela conquista, incorporação e integração do espaço ainda não-capitalista para poder formar o capital. Esse processo de formação do capital se encontra, sem dúvida alguma, incrustado na organização das cidades e na sua relação com as regiões próximas e distantes tanto em termos geográficos quanto em termos sociais, históricos e econômicos.

Pode-se considerar que em um determinado lugar verifica-se a possibilidade de coexistência de temporalidades históricas diferentes que determinam, por sua vez, relações sociais e econômicas distintas. As relações sociais e econômicas podem ser consideradas como distintas com relação às formas de acumulação do capital e da organização desta acumulação. Esse fato pode ser mais claramente exemplificado em cidades de países subdesenvolvidos.

Na cidade existem pólos de tecnologia muito avançados, centros empresariais e financeiros completamente inseridos no contexto mundial ao lado de locais de temporalidades históricas muitos diferentes da do capitalismo da pós-grande indústria. Essas diferentes temporalidades históricas são importantes na formação do capital que, como foi dito anteriormente, se dá através da apropriação pelo capital da efetiva exploração de mão de obra e da acumulação primitiva que se realiza em determinado local. As cidades são também importantes na reprodução do capital. Esta reprodução acontece no capitalismo da grande indústria, sendo a fábrica o local de subsunção real do trabalho ao capital (quando acontece subsunção formal do trabalho ao capital, mesmo que este processo se dê dentro do local de produção, estamos falando de uma forma de acumulação não especificamente capitalista). E é na cidade que pode-se considerar a possibilidade de uma (re)produção do capital. A (re)produção comporta temporalidades históricas complexas que envolvem uma gama miscigenada de temporalidades sociais e econômicas e acumula utilizando de forma conjunta a subsunção formal e real do trabalho ao capital. Deste processo de formação, reprodução e (re)produção do capital nas relações que têm como lugar de realização a cidade, verifica-se o quanto ela pode ser estudada como parte integrante do movimento capitalista.

Percebendo essa sutileza podemos estudar o objeto 'cidade', tanto a cidade em um contexto de um país subdesenvolvido quanto em um outro contexto, através da ótica do movimento do capital, com a preocupação de compreensão do desenvolvimento do capital como parte integrante do desenvolvimento do local e do global.

O movimento do capital tem como um de seus principais 'motores' a troca. Partindo do estudo da troca pode-se compreender esse movimento. No trecho inicial percebemos essa preocupação quando o autor menciona a relação da cidade com o mundo com a qual comercia. Essa inserção significa estudar, hoje, a partir da generalização da mercadoria, a posição da cidade, em especial da cidade localizada nos países subdesenvolvidos, na chamada globalização. Para melhor retomar essa análise pode-se partir da seguinte definição de globalização:

"O processo de acumulação primitiva está esgotado em escala mundial e é esta a essência última do movimento que se convencionou de chamar globalização."[2]

Percebe-se, com a definição e com a discussão anterior, que a globalização acontece a partir do momento que em determinado local não existe mais a possibilidade da reprodução do capital. A partir desse ponto busca-se, para não interromper o movimento do capital, a intensificação da formação do capital, que carrega toda a problemática da exploração do homem e da (re)destruição da natureza, e o 'espalhamento' da (re)produção do capital. Espalhamento no sentido de abrangência geográfica do local e do espaço econômico, político e social desta (re)produção. O melhor exemplo para captar esse processo é pensar as diferentes formas que a acumulação flexível se manifesta nos diversos países do globo. Verifica-se como tendência global a flexibilização do trabalho, porém cada local implementa esta flexibilização de maneira diferente. A globalização pode ser considerada como o momento no qual todos os países existentes no globo participam desse processo, é o alargamento do contexto, que pode ser verificado como crescente.

A relação entre o local e o global apesar de mediado pelo capital apresenta diferenças que correspondem com um outro aspecto da globalização: o reaparecimento de um tipo 'moderno', ou como alguns preferem, 'pós-moderno' de imperialismo;

"Descartada a nacionalização, (...), resta a alternativa de transformar as economias periféricas em plataformas de exportação. Esse é o padrão de desenvolvimento moderno dos asiáticos. A esse novo paradigma de relacionamento entre centro e periferia deu-se o nome de globalização."[3]

Na verdade, pode-se considerar a globalização como um novo e, claro, complexo paradigma de comércio que envolve, tendencialmente, todas as regiões, lugares e locais do globo. Cada região, cada lugar e local tem relações diferentes entre si. Essas relações além de se realizarem no território, se realizam de uma outra forma que alguns estudiosos desse processo estão chamando de espaço digital[4]. O espaço digital não deve ser considerado só como um espaço de transmissão mas como um espaço de (re)produção do capital, que para tal (re)produção apropria-se das simulações e dos signos existentes nessa sociedade, com isto possibilitando a continuidade do movimento do capital.

Conjuntamente com a discussão da globalização o pequeno trecho inicial também nos coloca em contato com essa idéia de simulação. Podemos estudar a cidade como representação do mundo na qual ela se insere, principalmente quando estamos falando de um mundo com as características tais como o mundo de hoje. Um mundo que ao mesmo tempo recoloca a importância do lugar, dado a necessidade de formação do capital e realiza a possibilidade do espaço digital que se configura pela crescente necessidade de (re)produção do capital.

A população das cidades dos países subdesenvolvidos vivem e talvez até percebem a representação, o simulacro da realidade na qual eles se encontram capturados e as contradições da globalização. A globalização nessa sociedade capitalista pós-industrial é desigual e igual. É desigual na sua vivência. É igual na sua concepção. A estratégia do capital, que aceita a desigualdade do processo, faz com que os lugares que queiram e, de certo modo são obrigados a participar da "onda digital", aceitem a impossibilidade de resolver a desigualdade. A partir dessa aceitação cria-se um consenso de que a globalização é o efetivo limite de realização da possibilidade de democracia. Democracia no sentido de acesso a informação.

Deve-se atentar para a necessidade de romper-se com a eterna dicotomia entre o cidadão, que vota e nesse sentido é igual, e o produtor dividido pelas relações de produção. Como não se rompe com esta dicotomia pelo acesso a informação, esta democracia não cria, necessariamente, uma possibilidade de atuação tanto social quanto política com essa informação. O contraditório desta onda cibernética é que o quanto maior o número de participantes do processo maior também o número de não-participantes. Estes não-participantes são, é claro, aqueles que não tem acesso real ao processo mas são também aqueles que tem todo o acesso. O indivíduo ter todo o acesso ao mundo não significa que ele se torna mais que um individuo no seu estrito senso, apesar dele acreditar no contrário. O indivíduo continua indivíduo e não "cidadão do mundo", pois ser cidadão significa mais que ter acesso a muita informação e ser parte dessa informação mundial. Ser cidadão do mundo pode significar romper com a divisão ser social / ser econômico / ser político e simplesmente ser.

Não se deve perder a esperança. A possibilidade de real democracia informacional existe. Essa existência cria e recoloca novas e antigas possibilidades de mudança. Cabe àqueles que percebem o quanto o mundo não muda no caso de continuar a existir não-participantes na referida democracia, compreender o processo; não negá-lo, mas colocar em evidência o seu limite e quem sabe propor um novo limite. Assim, afastando a fronteira para um lugar cada vez mais distante e, quem sabe, rompendo com a referida dicotomia cidadão/produtor.

Tatiana Schor é economista, aluna de pós-graduação do Departamento de Geografia.

Notas

  1. SANTOS, Milton. A Cidade nos Países Subdesenvolvidos. Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Brasil, 1965.[voltar]
  2. HADDAD, Fernando. De Marx a Habermas. O Materialismo Histórico e seu Paradigma Adequado. tese de doutorado, orientador Prof. Dr. Paulo E. Arantes, Departamento de Filosofia, FFLCH, USP, mimeo, 1996. (Pág 12)[voltar]
  3. idem, pág.79.[voltar]
  4. Termo utilizada pela Profa. Saskia Sassen da Columbia University em uma conferência proferida no 10º Encontro Nacional dos Geográfos realizado no Recife -PE na semana do 14 ao 19 de julho de 1996.[voltar]
 

Atualizado em 10/03/2002

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