"As
Cidades nos Países Subdesenvolvidos" em um Mundo Globalizado
O
que para nós estudantes, que temos a oportunidade de
conhecer o geógrafo, acadêmico, intelectual,
a pessoa Milton Santos não só o autor de diversas
obras mas também orientador e professor é importante
a sua vivência como cidadão do mundo. A sua vida,
obra e, principalmente, a sua disposição para
com os jovens é de muito valor. Neste pequeno texto
tentaremos colocar as questões levantadas, tanto em
seus livros quanto em suas aulas que nos levaram a estudar.
Não temos a pretensão de falar de todas as suas
obras mas, escrever da parte que nos capta a atenção,
falar um pouco das sementes que ele nos deixa depois de cada
conversa.
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Tatiana
Schor
"Tanto
do ponto de vista da organização regional, como
do ponto de vista da organização interna, a
cidade é, enfim, uma autêntica e total representação
da região a que preside e do mundo com a qual comercia."
(pág. 14)[1]
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Este
pequeno trecho de um dos muitos escritos do Prof. Milton Santos
pode nos mostrar algumas coisas. Por um lado reforça a atualidade
de sua obra. Considerando que foi escrito nos meados da década
de 60 poderíamos, em um primeiro momento, tratá-lo
como ultrapassado, porém ele ainda nos possibilita uma reflexão
sobre um dos maiores problemas da atualidade: as grandes cidades
e, em especial, as grandes cidades nos países subdesenvolvidos.
Por outro lado, a partir desse mesmo texto podemos começar
a compreender a discussão que hoje está em voga, na
qual o próprio autor tem se pronunciado: a Globalização.
O trecho
acima encontra-se no livro As Cidades nos Países Subdesenvolvidos.
Livro interessante, pois discute as cidades nos países subdesenvolvidos,
enfatizando a cidade como expressão desse subdesenvolvimento
que, ao mesmo tempo, contém o germe da evolução
e o germe da renovação desse subdesenvolvimento. Deixando
claro o quanto os problemas da cidade se confundem com os problemas
do próprio país no qual encontra se inserida; explicando
a não competitividade da indústria através
da discussão da formação da cidade e da indústria
nela localizada. Nos levando a compreender a razão pela qual
essa indústria e essa cidade não tem capacidade de
enfrentar o mercado externo. Definindo de uma maneira muito sutil
o significado de cidade e propondo a utilização de
'cidade' como noção, categoria de análise:
"...
a cidade é, antes de tudo, definida por suas funções
e por um gênero de vida, ou, mais simplesmente, por
uma certa paisagem, que reflete ao mesmo tempo essas funções,
esse gênero de vida e os elementos menos visíveis
mas inseparáveis da noção de 'cidade':
passado histórico ou forma de civilização,
concepção e mentalidade dos habitantes."
(pág. 14)
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Como
se pode perceber esse livro contém diversos temas que poderão,
em algum outro momento, serem analisados. Propõem-se aqui,
a partir do trecho inicial, analisar um dos movimentos encontrados
nessa obra. O movimento que queremos analisar é aquele que
procura, na obra, relacionar a organização interna
e regional da cidade com a região que a cidade preside e
o mundo com a qual comercia. Da compreensão desse movimento,
generalizar o papel da cidade e discutir mais especificamente a
cidade nos países subdesenvolvidos.
Percebe-se
neste movimento que a cidade é um lugar no qual a centralidade
da região está concentrada. Esse fato decorre da atuação
de duas forças de organização relacionadas
com: a organização interna e sua organização
regional. Uma organização está intrinsecamente
dentro da outra. Existe uma impossibilidade de compreensão
do centro sem a compreensão de sua não-centralidade.
Essa discussão, essa característica de concentração
no lugar da centralidade da região é clássica.
Surge como preocupação tanto nessa obra como em outras
obras do autor. O questionamento do papel da cidade no desenvolvimento
da região, no espectro de relações sociais
e na formação das forças produtivas nela presentes,
é importante no processo de compreensão da rede de
relações presentes no lugar e fora dele. Desse questionamento
o autor nos leva ao seguinte passo;
"A
cidade não tem poder para forçar a evolução
regional de que depende o seu próprio desenvolvimento.
As possibilidades de evolução regional são
criadas fora da região e da cidade, de acordo com os
interesses do mundo industrial (...) ...tanto maior o subdesenvolvimento
regional, tanto menos a cidade tem força para modificá-lo,
tanto mais ela se ressente da pobreza de sua zona de influência."
(pág. 7)
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Dessa
citação podemos observar a discussão da cidade
como um lugar que preside e está intimamente relacionado
com a região. Conjuntamente com o papel da cidade no processo
de formação e reprodução do capital,
seu papel como aglomeradora de diferentes espaços. Considera-se
muito importante para a compreensão da realidade o locus
da formação do capital. O capitalismo tem se mantido
através do tempo pela conquista, incorporação
e integração do espaço ainda não-capitalista
para poder formar o capital. Esse processo de formação
do capital se encontra, sem dúvida alguma, incrustado na
organização das cidades e na sua relação
com as regiões próximas e distantes tanto em termos
geográficos quanto em termos sociais, históricos e
econômicos.
Pode-se
considerar que em um determinado lugar verifica-se a possibilidade
de coexistência de temporalidades históricas diferentes
que determinam, por sua vez, relações sociais e econômicas
distintas. As relações sociais e econômicas
podem ser consideradas como distintas com relação
às formas de acumulação do capital e da organização
desta acumulação. Esse fato pode ser mais claramente
exemplificado em cidades de países subdesenvolvidos.
Na
cidade existem pólos de tecnologia muito avançados,
centros empresariais e financeiros completamente inseridos no contexto
mundial ao lado de locais de temporalidades históricas muitos
diferentes da do capitalismo da pós-grande indústria.
Essas diferentes temporalidades históricas são importantes
na formação do capital que, como foi dito anteriormente,
se dá através da apropriação pelo capital
da efetiva exploração de mão de obra e da acumulação
primitiva que se realiza em determinado local. As cidades são
também importantes na reprodução do capital.
Esta reprodução acontece no capitalismo da grande
indústria, sendo a fábrica o local de subsunção
real do trabalho ao capital (quando acontece subsunção
formal do trabalho ao capital, mesmo que este processo se dê
dentro do local de produção, estamos falando de uma
forma de acumulação não especificamente capitalista).
E é na cidade que pode-se considerar a possibilidade de uma
(re)produção do capital. A (re)produção
comporta temporalidades históricas complexas que envolvem
uma gama miscigenada de temporalidades sociais e econômicas
e acumula utilizando de forma conjunta a subsunção
formal e real do trabalho ao capital. Deste processo de formação,
reprodução e (re)produção do capital
nas relações que têm como lugar de realização
a cidade, verifica-se o quanto ela pode ser estudada como parte
integrante do movimento capitalista.
Percebendo
essa sutileza podemos estudar o objeto 'cidade', tanto a cidade
em um contexto de um país subdesenvolvido quanto em um outro
contexto, através da ótica do movimento do capital,
com a preocupação de compreensão do desenvolvimento
do capital como parte integrante do desenvolvimento do local e do
global.
O movimento
do capital tem como um de seus principais 'motores' a troca. Partindo
do estudo da troca pode-se compreender esse movimento. No trecho
inicial percebemos essa preocupação quando o autor
menciona a relação da cidade com o mundo com a qual
comercia. Essa inserção significa estudar, hoje, a
partir da generalização da mercadoria, a posição
da cidade, em especial da cidade localizada nos países subdesenvolvidos,
na chamada globalização. Para melhor retomar essa
análise pode-se partir da seguinte definição
de globalização:
"O
processo de acumulação primitiva está
esgotado em escala mundial e é esta a essência
última do movimento que se convencionou de chamar globalização."[2]
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Percebe-se,
com a definição e com a discussão anterior,
que a globalização acontece a partir do momento que
em determinado local não existe mais a possibilidade da reprodução
do capital. A partir desse ponto busca-se, para não interromper
o movimento do capital, a intensificação da formação
do capital, que carrega toda a problemática da exploração
do homem e da (re)destruição da natureza, e o 'espalhamento'
da (re)produção do capital. Espalhamento no sentido
de abrangência geográfica do local e do espaço
econômico, político e social desta (re)produção.
O melhor exemplo para captar esse processo é pensar as diferentes
formas que a acumulação flexível se manifesta
nos diversos países do globo. Verifica-se como tendência
global a flexibilização do trabalho, porém
cada local implementa esta flexibilização de maneira
diferente. A globalização pode ser considerada como
o momento no qual todos os países existentes no globo participam
desse processo, é o alargamento do contexto, que pode ser
verificado como crescente.
A relação
entre o local e o global apesar de mediado pelo capital apresenta
diferenças que correspondem com um outro aspecto da globalização:
o reaparecimento de um tipo 'moderno', ou como alguns preferem,
'pós-moderno' de imperialismo;
"Descartada
a nacionalização, (...), resta a alternativa
de transformar as economias periféricas em plataformas
de exportação. Esse é o padrão
de desenvolvimento moderno dos asiáticos. A esse novo
paradigma de relacionamento entre centro e periferia deu-se
o nome de globalização."[3]
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Na
verdade, pode-se considerar a globalização como um
novo e, claro, complexo paradigma de comércio que envolve,
tendencialmente, todas as regiões, lugares e locais do globo.
Cada região, cada lugar e local tem relações
diferentes entre si. Essas relações além de
se realizarem no território, se realizam de uma outra forma
que alguns estudiosos desse processo estão chamando de espaço
digital[4]. O espaço digital não deve ser considerado
só como um espaço de transmissão mas como um
espaço de (re)produção do capital, que para
tal (re)produção apropria-se das simulações
e dos signos existentes nessa sociedade, com isto possibilitando
a continuidade do movimento do capital.
Conjuntamente
com a discussão da globalização o pequeno trecho
inicial também nos coloca em contato com essa idéia
de simulação. Podemos estudar a cidade como representação
do mundo na qual ela se insere, principalmente quando estamos falando
de um mundo com as características tais como o mundo de hoje.
Um mundo que ao mesmo tempo recoloca a importância do lugar,
dado a necessidade de formação do capital e realiza
a possibilidade do espaço digital que se configura pela crescente
necessidade de (re)produção do capital.
A população
das cidades dos países subdesenvolvidos vivem e talvez até
percebem a representação, o simulacro da realidade
na qual eles se encontram capturados e as contradições
da globalização. A globalização nessa
sociedade capitalista pós-industrial é desigual e
igual. É desigual na sua vivência. É igual na
sua concepção. A estratégia do capital, que
aceita a desigualdade do processo, faz com que os lugares que queiram
e, de certo modo são obrigados a participar da "onda
digital", aceitem a impossibilidade de resolver a desigualdade.
A partir dessa aceitação cria-se um consenso de que
a globalização é o efetivo limite de realização
da possibilidade de democracia. Democracia no sentido de acesso
a informação.
Deve-se
atentar para a necessidade de romper-se com a eterna dicotomia entre
o cidadão, que vota e nesse sentido é igual, e o produtor
dividido pelas relações de produção.
Como não se rompe com esta dicotomia pelo acesso a informação,
esta democracia não cria, necessariamente, uma possibilidade
de atuação tanto social quanto política com
essa informação. O contraditório desta onda
cibernética é que o quanto maior o número de
participantes do processo maior também o número de
não-participantes. Estes não-participantes são,
é claro, aqueles que não tem acesso real ao processo
mas são também aqueles que tem todo o acesso. O indivíduo
ter todo o acesso ao mundo não significa que ele se torna
mais que um individuo no seu estrito senso, apesar dele acreditar
no contrário. O indivíduo continua indivíduo
e não "cidadão do mundo", pois ser cidadão
significa mais que ter acesso a muita informação e
ser parte dessa informação mundial. Ser cidadão
do mundo pode significar romper com a divisão ser social
/ ser econômico / ser político e simplesmente ser.
Não
se deve perder a esperança. A possibilidade de real democracia
informacional existe. Essa existência cria e recoloca novas
e antigas possibilidades de mudança. Cabe àqueles
que percebem o quanto o mundo não muda no caso de continuar
a existir não-participantes na referida democracia, compreender
o processo; não negá-lo, mas colocar em evidência
o seu limite e quem sabe propor um novo limite. Assim, afastando
a fronteira para um lugar cada vez mais distante e, quem sabe, rompendo
com a referida dicotomia cidadão/produtor.
Tatiana
Schor é economista, aluna de pós-graduação
do Departamento de Geografia.
Notas
-
SANTOS, Milton. A Cidade nos Países Subdesenvolvidos. Editora
Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Brasil,
1965.[voltar]
- HADDAD,
Fernando. De Marx a Habermas. O Materialismo Histórico
e seu Paradigma Adequado. tese de doutorado, orientador Prof.
Dr. Paulo E. Arantes, Departamento de Filosofia, FFLCH, USP, mimeo,
1996. (Pág 12)[voltar]
- idem,
pág.79.[voltar]
- Termo
utilizada pela Profa. Saskia Sassen da Columbia University em
uma conferência proferida no 10º Encontro Nacional
dos Geográfos realizado no Recife -PE na semana do 14 ao
19 de julho de 1996.[voltar]
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