Retrato
da Cidade pelos seus fragmentos
Rogério
Lima
A
leitura dos textos que narram as cidades e a vida cotidiana nelas
vividas é uma espécie de leitura de fragmentos de
mapas da cidade, é sempre a leitura de uma virtualidade,
de problemas e problematizações que essas cidades
apresentam. Cada texto apresenta um fragmento de uma determinada
cidade, que somente a leitura é capaz de juntar e somente
a partir da leitura é possível construir um sentido
para esses estilhaços de cidade, disseminados nos discursos
narrativos urbanos. Eles presentificam formas realizadas de imaginação
da(s) cidade(s), as diversas maneiras como elas se entrecruzam em
realizações literárias e/ou em outras semióticas
narrativas, tão diversas e ao mesmo tempo tão iguais.
Essa
fragmentação do que aqui é classificado como
mapas textuais carrega consigo a vontade de compreender as tensões
enfrentadas e retratadas pelas narrativas urbanas e seus narradores.
Os narradores da cidade vivem em constante tensão com o espaço
narrado, algumas vezes, chegam mesmo a não compreender o
que se passa ao seu lado, pois as transformações são
de tal forma vertiginosas, velozes e brutais que mal há tempo
para acompanhá-las.
Por
isso, a impossibilidade de apreender a cidade na sua totalidade
e com um único centro, pois já não há
mais cidade com um único centro. O centro que representava
um lugar geográfico específico, marcado por monumentos,
cruzamento de certas ruas e avenidas, casas de espetáculos
(teatros, cinemas), restaurantes, ruas de pedestres. A pesquisadora
Argentina Beatriz Sarlo[1]
chama atenção para o fato de antes podermos discutir
o centro, se ele de fato terminava em determinada rua ou um pouco
depois, "mas ninguém discutia a existência mesma
de um único centro: imagens, ruídos, horários
diferentes". Simplesmente ia-se ao centro como se fosse uma
atividade excepcional, como um programa de final de semana, para
as compras ou, simplesmente, para ver ou para estar no centro. Hoje,
as pessoas pertencem mais aos bairros do que nos anos vinte, quando
a ida ao centro trazia consigo um horizonte de promessas, de desejos
e perigos, era a representação da aventura e exploração
de um espaço sempre novo. Já não há
mais necessidade de deslocamento dos bairros de classe média
para o centro. As distâncias se encurtaram e as pessoas já
não se deslocam na cidade de ponta a ponta. Os bairros mais
ricos configuram os seus próprios centros, mais limpos, mais
organizados, mais iluminados e mais seguros e "com ofertas
materiais e simbólicas mais variadas".
As
transformações urbanísticas e tecnológicas
não permitem mais espaços comuns na cidade. Esses
espaços, que eram representados pelas praças, já
não têm mais importância nem sentido sob o ponto
de vista da lógica da vivência do urbano. Os espaços
comuns foram substituídos por espaços de consumo que
se realizam nos shoppings centers. O que importa é
a circulação do cidadão. A sua conexão
é que é o mais importante. Mas nem por isso o drama
da cidade desapareceu, ele se desenrola, hoje, justamente nos espaços
de conexão (trens, metrôs e outros) e durante os momentos
em que a conexão acontece.
Hoje
o turista já não experimenta manusear, numa cidade
desconhecida, numa esquina, sob tempo ruim, um dos grandes mapas
de papel, que amarfanhavam a cada lufada de vento, e que ao final
se transformavam num amontoado de folhas sujas e rasgadas que o
atormentavam durante toda a viagem. Hoje é possível
ao viajante encontrar uma literatura em expansão sobre orientações
turísticas que ensina como adquirir a sensação
de conforto doméstico em terras estranhas e evitar os embaraços
criados pelas diferenças culturais.
A
maior parte do turismo atual é do tipo home plus (o
sol, o mar, a areia, a vida selvagem etc.) onde toda e qualquer
experiência nova e possivelmente perturbadora é rigorosamente
controlada. Evidentemente, as formas de percepção
da cidade se processarão de maneira muito mais diferenciada
para as pessoas que optam por esse tipo de turismo do que para aquelas
que se colocam em contato por meio de fluxos culturais globais e
"que não só se sentem em casa em outras culturas,
mas também buscam e adotam uma postura reflexiva, metaintelectual
ou estética para experiências culturais divergentes."[2]
Esse
é o caso de Walter Benjamin, filósofo, por sua postura
crítica em relação à cultura e aos movimentos
sociais de seu tempo, e Wim Wenders, cineasta alemão, outro
bom exemplo de intelectual transnacional, que toma para si uma postura
reflexiva, metacultural e estética para experiências
culturais divergentes que experimenta. Esse também me parece
ser o caso do escritor e cineasta norte-americano Paul Auster. Wim
Wenders e Paul Auster, por meio dos seus trabalhos O Céu
de Lisboa, o primeiro, e Sem Fôlego, o segundo.
A
cidade de Lisboa se presentifica para Wim Wenders como espaço
de recuperação da infância vivida nas cidades
alemãs e configura-se também como espaço de
recuperação da imagem de uma Europa que já
não existe mais. O choque cultural que Wenders viveu ao conhecer
Nova York é o ponto de ligação com a mesma
nova York multirracial e multicultural que Paul Auster descentraliza
e desconstrói nos seus dois filmes: Cortina de Fumaça
e Sem Fôlego. No seu livro América, Baudrillard
formula a seguinte pergunta: por que é que as pessoas vivem
em Nova York? Para ele, elas não têm nenhuma relação
entre si. Mas uma energia que se forma no que ele classifica como
"sua promiscuidade pura" e "uma sensação
mágica de contigüidade e de atração para
uma centralidade artificial" é o que possibilita que
Nova York se realize como um universo "auto-atrativo",
o qual não há razão nenhuma para abandonar.
Para Baudrillard, não há nenhum motivo para estar
lá, mas somente o "êxtase da promiscuidade".
Néstor
García Canclini[3]
afirma que as grandes cidades, dilaceradas pelo crescimento desordenado
e por um multiculturalismo conflitante, são o cenário
perfeito para o declínio das metanarrativas históricas,
das utopias "que imaginaram um desenvolvimento humano ascendente
e coeso através do tempo". Mesmos nas cidades impregnadas
de signos do passado, como a capital mexicana ou Lisboa, o encurtamento
do presente e a dúvida diante do futuro incontrolável
são fatores redutores das experiências temporais que
privilegiam as conexões simultâneas. Narrar a megacidade
polifônica, exorbitantemente eloqüente, nos coloca frente
a frente com uma ansiedade: já não se trata de localizar
no mapa uma direção a partir da qual poderíamos
chegar a mil lugares sem chegar a nenhum ponto. O que nos desestabiliza
é que os mapas que colocavam ordem nos espaços e geravam
significação global para os comportamentos, para as
travessias, estão se desvanecendo.
Rogério Lima é doutor em Semiologia pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro e Professor de Teoria Literária
na Universidade de Brasília.
Notas:
- Sarlo, Beatriz. Cenas da vida pós-moderna: intelectuais,
arte e vídeo-cultura na Argentina. Rio de Janeiro: Editora
da UFRJ, 1997.[voltar]
- Featherstone, Mike (Org.). Cultura global: nacionalismo, globalização
e modernidade. 2a edição. Petrópolis: Vozes,
1998.[voltar]
- Canclini, Néstor García. Consumidores e cidadãos:
conflitos multiculturais da globalização. 3 ed..
Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 1997.[voltar]
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