Os
desafios de construção de uma cidade democrática
a partir da aprovação do Estatuto da Cidade
Geraldo
Moura
A
recente aprovação pelo Congresso Nacional, após
mais de dez anos de tramitação, da Lei n° 10.257/2001
conhecida como Estatuto da Cidade que regulamentou o capítulo
de política urbana da Constituição Federal
estabelecendo diretrizes gerais de política urbana, representou
um inegável avanço na luta por um território
mais justo e democrático. Prevendo a função
social da cidade (e da propriedade), passou a respaldar os municípios
na adoção de instrumentos legais que garantam a todos
os setores da sociedade a equânime distribuição
dos ônus e benefícios sócio-territoriais causados
pelo processo de urbanização.
Ainda
que parte de seu texto original tenha sido vetado, a existência
do Estatuto deve ser entendida como uma importante conquista de
entidades civis e de movimentos sociais ligados à reforma
urbana que, por mais de uma década, estiveram inseridos em
uma ampla discussão dos temas relativos ao desenvolvimento
das cidades, imprimindo à essa lei, mesmo em sua forma final
de redação, relevante legitimidade social.
A
construção e o desenvolvimento tradicionalmente disseminados
nas cidades brasileiras foram claramente marcados por um distanciamento
entre a ordem urbanística vigente e a gestão do território
municipal. Com isso, por estarem localizados na primeiro bloco,
a abrangência do planejamento urbano e da legislação
restringiram-se apenas à regulação das ações
de uma parcela minoritária da população com
real capacidade de participação no mercado imobiliário
estabelecido, "sobrando" uma maioria de cidadãos
que se instalaram no contexto urbano à margem da própria
legalidade urbanística.
Esse
"esquecimento" do poder público diante da maioria
excluída, longe de ser uma atitude irracional, é resultado
de uma lógica sutil e perversa, existente e fundamental na
perpetuação desse paradigma de desenvolvimento. E,
como consequência dessa responsabilidade institucional não
assumida pelo Estado, temos que o agente que ocupa o cargo público
terminou muitas vezes, por delegar-se um papel personificado de
executor e interlocutor entre os atores sociais envolvidos, criando
e reforçando uma relação política de
favores baseada no clientelismo.
Mais
que a "tradução" ou a consequência
do quadro de profundas diferenças sociais e da concentração
de renda do país, esse modelo de separação
entre a gestão e o planejamento foi e continua sendo o principal
responsável pelas profundas desigualdades presentes na construção
do território urbano, influenciada, sobretudo pelo poder
do capital e pela lógica mercantil. Essa situação
por sua vez, acarreta em uma total discrepância territorial
da qualidade de vida vinculada e determinada pela questão
econômica.
O
que se vê de uma maneira geral nas cidades brasileiras é
uma grande maioria das oportunidades de expansão econômica
e das ofertas de serviços concentradas em "ilhas de
inclusão" aonde há uma tendência de instalação
da população com melhores condições
sociais, em oposição a uma porção majoritária
que tem sensivelmente dificultada seu acesso às oportunidades
de trabalho e lazer.
Como
estratégia de construção de uma cidade mais
justa, o Estatuto procurou garantir, sobretudo em seu capítulo
IV, a participação popular através de instrumentos
como os conselhos de política urbana; os debates, audiências
e consultas públicas e as conferências de desenvolvimento
urbano, entre outros. Esses mecanismos visam também, aumentar
a pouca interlocução existente entre poder público
e sociedade civil em geral e, pelo forte impacto que os planos e
normas urbanísticas acarretam na cidade como um todo, tentam
impedir o caráter tecnicista, adotado tradicionalmente na
discussão urbana, ampliando para além das fronteiras
dos setores que têm atividades ligadas diretamente a construção
da cidade.
É
necessário, contudo, para a concretização dessa
efetiva participação que a sociedade e o Estado estejam
preparados para essa situação. É preciso que
os atores sociais envolvidos, e não só o poder público
e as áreas técnicas, estejam capacitados para enfrentar
o debate, o que significa estarem munidos com as informações
e os dados necessários a essa atividade. Mas é fundamental
também, que os gestores do poder municipal não vejam
nessa nova situação uma ameaça ao poder obtido
eleitoralmente. E aí residem problemas aos quais devemos
estar atentos: à medida que o Estatuto previu o fomento da
participação dos diversos agentes sociais que atuam
no cenário urbano convidando e instruindo-os a posicionarem-se
segundo seus interesses em uma instância pública, legítima
e democrática de discussão, criou também e,
em consequência, novas formas de disputa do poder local que,
não raro, vêm chocando com as formas tradicionalmente
empregadas, enfrentando resistência daqueles setores detentores
desse poder.
Além
disso, a vitória e a ascensão dos partidos progressistas
em várias cidades nas últimas eleições
municipais, entre elas as três maiores do Estado de São
Paulo (São Paulo, Guarulhos e Campinas, respectivamente),
potencializou um paradoxo a ser enfrentado. Por um lado, se representou
uma maior possibilidade de aplicação dos instrumentos
urbanísticos recém aprovados, dentro de um compromisso
mais democrático e popular (ao menos essa foi a proposta
vitoriosa nas eleições). Por outro, essa aplicação
além de tencionar conflitos pela posse da terra urbana, até
então "adormecidos" pela inexistência de
mecanismos mais acessíveis e democráticos, acabou
por significar um remodelamento de forças políticas
ligadas à questão urbana, que ampliou a participação
dos agentes e alterou em parte o papel e a importância do
poder público nesse processo.
Ocorre
que essa alteração para o gestor público significou,
em alguns casos, uma profunda mudança na sua lógica
de poder e, este agente, ainda que nesses casos tenha uma postura
ideológica vinculada aos segmentos democráticos, nem
sempre se encontra preparado para enfrentar uma transformação
desse porte.
Outro
importante fator a ser encarado é que, estando os movimentos
sociais e entidades ligadas à luta por moradia e da reforma
urbana historicamente mais próximos dos setores (e partidos)
políticos com tendências progressistas, as lideranças
e os técnicos que atuam nessa área vieram a ser colocados
em um curioso dilema.
O
resultado das urnas obtido no último pleito municipal significou,
em muitos casos, que a mesma parcela que teve destacada importância
na militância durante o processo eleitoral, encontra-se hoje
frente a um agente público com o qual tem certo alinhamento
ideológico (quando não interpretando o duplo papel),
reivindicando frente a esse agente, uma maior participação.
A
vitória das esquerdas representou também, que uma
parcela relevante de militantes e técnicos engajados na luta
pela reforma urbana migraram para o setor público, trazendo
uma momentânea sensação de esvaziamento dos
movimentos. Mesmo que essa noção seja falsa sabe-se,
porém, que o fortalecimento dos movimentos sociais e sua
real inserção na discussão sobre os destinos
da cidade evidenciou a existência dessas instituições
aumentando a probabilidade de surgimento de uma disputa interna
com outros segmentos mais conservadores nunca antes vinculados a
essa discussão.
Nesse
novo contexto, onde a disputa política passa a se dar também
de novas formas e em outros espaços, o poder público
(e consequentemente seu gestor), enquanto agente implementador dessas
medidas tem o desafio e o dever de entender essas alterações
não como uma perda de poder político, mas como uma
etapa de um processo que ampliará de fato a participação
popular na discussão das cidades. Também deve atentar-se
em não realizar uma análise da situação
sob uma ótica maniqueísta, percebendo apenas fatos
positivos da participação popular quando alinhada
ideologicamente ao governo. Compreender a importância do discurso
permanente com setores sociais variados, mesmo que, em um olhar
mais superficial, pareça contraditória algumas vezes
a adoção de posturas conservadoras de determinados
grupos que coincidem justamente com o "olhar do opressor".
É
função do poder público potencializar essa
discussão ainda que venha a conflitar com alguns de seus
compromissos e obrigações políticas assumidas,
mesmo que legítimas. Cabe ainda, municiar os agentes com
informações vitais que possibilitem uma constante
ampliação e aprofundamento das críticas bem
como, da percepção de novas demandas para os municípios.
Pois, já se sabe da pouca eficácia de aplicação
de determinado instrumento quando utilizado a partir de uma demanda
construída por agentes externos ou por imposição
institucional (PORTELA, MENDES & MOURA: 2000).
Ainda
que percebidas intuitivamente, as contradições colocadas
nesse artigo vêm sendo demonstradas em exaustão pelos
agentes públicos municipais em sua prática diária.
Fica assim evidente, que a aplicação prática
dos conceitos acima mencionados, ainda que para os setores com maiores
compromissos democráticos, é sensivelmente dificultada
quando nos vemos diante da dinâmica de um cotidiano de administração
pública, e o desafio principal, em um momento histórico
que a instrumentalização disponível permite
reais transformações estruturais de inegável
evolução qualitativa para o planejamento e a gestão
das cidades, tornar-se então evitar contradições
e conciliar a experiência vivida enquanto poder municipal
com uma trajetória baseada em posturas éticas com
respaldo ideológico.
Geraldo
Moura é arquiteto e urbanista com especialização
em Desenho e Gestão do Território Municipal pela FAU-PUC
Campinas e trabalha atualmente na Prefeitura Municipal de Guarulhos/SP.
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