Prós
e contras da revitalização de centros urbanos
Os
projetos de recuperação e preservação
de centros históricos, associados a processos de reestruturação
urbana, têm sido uma constante no Brasil, principalmente a
partir do final da década de 80 e início de 90. Pelourinho
em Salvador, Bairro do Recife na capital pernambucana e o corredor
cultural no Rio de Janeiro são alguns exemplos nacionais
de locais que vêm sofrendo este tipo de intervenção.
Barcelona, Nova Iorque, Boston, Manchester, Paris e Buenos Aires
estão entre os exemplos internacionais que marcam o fenômeno
mundial de revitalização ou remodelação
urbana.
Apesar
de ocorridos em diferentes localidades e de possuírem peculiaridades,
os projetos são semelhantes no fato de terem obtido investimentos
vultosos em locais com grande potencial turístico, que abrigam
interesses históricos e que, em períodos anteriores,
tiveram um apogeu relacionado a uma atividade econômica específica.
Certamente
existem as mais variadas combinações entre o que deve
ou não ser realizado na remodelação urbana,
mas o fenômeno, no Brasil, é marcado por duas posições
que mais se destacam no debate sobre o tema. Em linhas gerais, de
um lado, defende-se a necessidade de reestruturação
de centros urbanos dada a caracterização desses locais
nos últimos anos pela violência, marginalidade, decadência
das construções etc. Esse grupo afirma que investimentos
do setor público e privado podem reverter esse quadro, tornando
os locais mais atrativos, inclusive para novos investimentos, o
que impediria que se iniciasse um novo empobrecimento após
a recuperação. A principal aposta é na preservação
do patrimônio histórico e nos investimentos culturais.
De
outro lado, acusa-se as iniciativas de revitalização
dos centros urbanos de reproduzir um processo de "gentrificação",
isto é, o enobrecimento de locais anteriormente populares.
O resultado desse processo seria a produção de uma
cidade desigual, com a expulsão da população
de baixa renda das regiões revitalizadas em prol de interesses
econômicos das elites, que se beneficiariam. Nessa visão,
a cultura torna-se apenas um captador de investimentos, uma mercadoria
em torno da qual formula-se (importa-se) um consenso sobre o que
deve ser a cidade, financiado pelo capital privado e internacional.
O professor
Silvio Mendes Zanchetti, do Departamento de Arquitetura e Urbanismo
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e a professora Norma
Lacerda, diretora geral de urbanismo da prefeitura de Recife, avaliam
a revitalização de áreas históricas
como uma estratégia de desenvolvimento local. Segundo
eles, em função do declínio da economia
e da crise fiscal e financeira que caracterizou a economia no início
da década de 80, o governo central desobrigou-se das políticas
públicas, transferindo responsabilidades para outras instâncias,
como os municípios. Nesse contexto, deixou-se de manter o
modelo de investimentos em infraestrutura urbana e as prefeituras
foram obrigadas a gerar recursos e elaborar novas estratégias
de desenvolvimento.
Para
Zanchetti e Lacerda da UFPE, num mundo globalizado o que decide
o jogo da competição por investimentos produtivos
são as especificidades das localidades, sustentadas pelos
atributos ambientais, culturais e históricos das cidades.
"As antigas áreas urbanas assumem um papel importante
na construção de políticas locais de desenvolvimento.
São políticas de desenvolvimento voltadas, em geral,
para a revitalização de áreas urbanas deprimidas,
subutilizadas ou abandonadas, que perderam vitalidade econômica",
dizem.
Mas
as questões sobre a revitalização urbana não
encontram apenas esse tipo de avaliação. A professora
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP, Ermínia
Maricato (veja artigo nesta edição),
abordou outro ponto de vista durante a abertura da conferência
"Cidades, populações urbanas" no segundo
Fórum Social Mundial. A professora da FAU - USP apontou
a disseminação de modelos internacionais de urbanismo,
que atropelam condições ambientais e culturais específicas
de cada sociedade, especialmente nos países periféricos"
A crise
econômica e financeira da década de 80 e a consequente
transferência de responsabilidades do governo central para
outras instâncias, apontadas por Zanchetti e Lacerda, são
pensados a partir do desmonte do Estado provedor relacionado ao
processo de globalização. As conseqüências
disso são a perda de direitos sociais econômicos, a
privatização de serviços públicos e
o fortalecimento da ditadura do mercado, entre outras. Em
"Cidade
do Pensamento Único", os professores Ermínia
Maricato, Carlos Vainer e Otília Arantes chamam atenção
para esse processo. Arantes destaca ainda a mercantilização
e a centralidade da cultura, num processo comandado pelo capital,
que caracteriza os modelos europeu e americano de cidade-empresa-cultural
importados pelo Brasil. Ainda segundo Ermínia Maricato, as
cidades de países periféricos e semi-periféricos
acabam, constituindo ilhas em determinados locais que mimetizam
o Primeiro Mundo, onde residem os detentores do capital, cercados
de "cidades ocultas" ignoradas pelo Estado.
Para
Carlos Vainer, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), os debates sobre revitalização de áreas
urbanas, centros urbanos ou áreas históricas das cidades
incorrem num grande equívoco. "A discussão está
fundada na idéia de que estas áreas não possuem
vitalidade. Na verdade, essas áreas têm uma extraordinária
vitalidade, mas foram, em muitos casos, ocupadas por grupos sociais
de baixa renda. O que está sendo feito é renegar um
tipo de vitalidade e recuperar essas áreas para determinados
grupos sociais", afirma ele.
Vainer
defende que o problema dessas áreas não é a
de falta de vitalidade mas a falta de investimento público,
justamente porque são locais ocupados pelas camadas menos
favorecidas. Ele contradiz a afirmação de que as classes
de baixa renda não valorizam áreas históricas
ou as áreas urbanas em que vivem. "A sobrevivência
da riqueza patrimonial dessas regiões se deu graças
aos grupos de baixa renda e não a outros. É como expulsar
os índios da floresta para preservá-las, sendo que,
graças a eles, ela ainda está preservada. Mesmo assim,
retiram os índios e fazem reservas indígenas",
diz ele.
Outra
acusação de Vainer é em relação
às parcerias entre os setores público e privada, nas
quais ocorre transferência de investimentos do primeiro para
o segundo. "Se não fosse o investimento público,
o investimento privado seria praticamente inviável. O público
entra com o dinheiro e o privado com os benefícios decorrentes
da valorização imobiliária e de projetos de
natureza econômica", diz. Ele classifica como escandaloso
o projeto Estação das Docas para revitalização
da zona portuária da cidade de Belém, promovido pelo
governo do estado. Segundo ele, o projeto construiu um shopping
e restaurantes luxuosos, financiados com vinte milhões de
reais do dinheiro público. "Um projeto que só
se sustenta com dinheiro público e que é destinado
à parcela mais rica da cidade de Belém", conclui.
A
revitalização do Bairro do Recife
A revitalização
do Bairro de Recife, apesar de suas peculiaridades, pode ser um
exemplo do fenômeno de reestrutração urbana
no Brasil e do embate que o cerca.
O Bairro
do Recife (ou Recife Antigo), situado no centro da capital pernambucana,
margeado pelo mar e pelo rio Capibaribe, segundo avaliação
dos professores Norma Lacerda e Sílvio Zanchetti, era considerado
pela opinião pública, em 1986, uma das principais
áreas-problema da cidade. As ruas e espaços públicos
eram ocupados pelos ambulantes e, somada à degradação
física das edificações e dos espaços
públicos, deu à região o estigma de local perigoso
e marginal.
No
entanto, essa mesma localidade foi o centro econômico da cidade
do Recife do século XVII ao início do XX. Segundo
Zanchetti e Lacerda, a partir de 1930, a região sofreu um
processo de esvaziamento, devido ao deslocamento do centro econômico
para o bairro de Santo Antônio, passando a abrigar cabarés,
boates e prostíbulos. A expansão comercial e residencial
para outras áreas, somadas a políticas públicas
mal sucedidas e à crise da década de 80 culminaram,
segundo eles, no deslocamento da população de baixa
renda para o centro e a consequente proliferação de
vendedores ambulantes e marginais. "Criou-se um círculo
vicioso entre desvalorização imobiliária e
a expansão das atividades de armazenagem. O Bairro tornou-se
uma periferia central", dizem os pesquisadores.
Várias
foram as propostas de revitalização da área,
mas o Plano de Revitalização do Bairro Recife (PRBR),
na avaliação de Lacerda e Zanchetti, elevou a atratividade
do bairro para o investimento privado e constituiu um exemplo de
requalificação do patrimônio construído,
demonstrando que as áreas históricas da cidade têm
grande potencial de desenvolvimento, que deve ser ativado pelo poder
público em parceria com atores econômicos locais.
A implantação
do plano começou, em 1993, com o governo municipal em parceria
com vários agentes privados - como a Fundação
Roberto Marinho e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Em 1996, segundo os pesquisadores, o quadro de degradação
da área estava completamente revertido.
No
entanto, essa não é a opinião de Rogério
Proença Leite, pesquisador-associado do Centro de Estudos
de Migrações Internacionais (Cemi) da Unicamp. "Parece-me
válida qualquer intervenção que melhore as
possibilidades de usos dos espaços públicos da cidade.
Mas o que ocorreu no Bairro do Recife, caracterizou um processo
de "gentrificação", acarretando forte exclusão
social, na medida que espacializou as atividades de lazer do bairro,
numa espécie de zoneamento da diferença", diz
o pesquisador.
Rogério
Proença Leite aborda essa questão em sua tese de doutorado
Espaço público e Política dos lugares,
afirmando que é preciso questionar a quem se destinam as
intervenções urbanas. "As cidades históricas
têm em sua maioria forte apelo comunitário pelo que
representam para a identidade cultural das pessoas. As intervenções
deveriam contabilizar a necessidade de manter a dimensão
pública dos espaços urbanos e promover ações
que possam tornar mais democráticos os usos da cidade",
afirma ele.
A reforma
certamente transformou a paisagem urbana de Recife, mas o pesquisador
associa a mudança ao que ocorreu segundo ele, em Nova Iorque.
"Na revitalização de Recife, antigas prostitutas
foram removidas de suas casas e no local foram estabelecidos sofisticados
bares e restaurantes - numa operação que relembra
a experiência de limpeza social do Times Square. Hoje, o bairro
transformou-se em um agitado ponto de encontro, com ampla visibilidade
pública da cidade", aponta Rogério.
As
muitas vozes do centro
Esse
tipo de reforma urbana, que acaba excluindo a população
pobre moradora de áreas a serem revitalizadas, vêm
encontrando a resistência organizada da sociedade civil
O Fórum
Centro Vivo, fundado em dezembro de 2000, congrega movimentos populares
urbanos, pastorais, universidades e entidades de defesa dos direitos
humanos, educação e cultura em São Paulo. Surgiu
em maio de 2000, durante o encontro "Movimentos populares e
Universidade", organizado por estudantes da USP, pela Central
dos Movimentos Populares (CMP) e pela União dos Movimentos
de Moradia (UMM).
Segundo
Mariana Fix, arquiteta, pesquisadora da FAU-USP e participante do
Fórum, o objetivo é articular as pessoas e grupos
que lutam pelo direito de permanecer no centro da cidade de São
Paulo, contrapondo-se ao processo de renovação urbana
e exclusão que vem ocorrendo. Entre outras ações,
destaca-se o envio de propostas de reformulação e
debate do Plano Reconstruir o Centro, da prefeitura de São
Paulo.
De
acordo com sua carta princípios, o Fórum busca fortalecer
as lutas sociais em prol do uso democrático do espaço
público, garantindo a ampla acessibilidade ao centro, combatendo
as formas de segregação social e defendendo a função
social da propriedade, contra a especulação imobiliária.
A idéia de defesa da preservação da história
e da memória também está presente entre os
princípios do Fórum, mas como patrimônio vivo,
e portanto, contra a sua monumentalização e museificação.
Essa
visão choca-se com algumas posições adotadas
pela Associação Viva Centro, fundada em São
Paulo, em 1991, por entidades e empresas vinculadas à região.
A associação defende a reformulação
do centro de São Paulo visando inseri-lo de forma competitiva
no conjunto das "cidades mundiais". Para a Viva Centro,
o centro de São Paulo é o local privilegiado de cultura,
história e desenvolvimento urbano da metrópole e é
entendido como potencial alternativa para a reorganização
funcional e espacial da metrópole que, com padrões
de eficiência e qualidade, pode passar a abrigar as principais
corporações e organizações nacionais
e supranacionais.
Júlia
Andrade, geógrafa e participante do Fórum Centro Vivo,
analisou as intervenções urbanas em São Paulo
em "Da Cultura da Intervenção à Intervenção
da cultura", afirmando que a idéia de São Paulo
como uma cidade mundial advém da reinvenção
de seu centro sustentada por uma coalizão inédita
de parcerias público-privadas. Segundo ela, nesse processo,
a cultura torna-se uma peça central no processo de valorização
e ocupação da terra urbana. Júlia Andrade explica
que, sob o signo de investimentos ou intervenções
culturais, cria-se um consenso em torno da necessidade de se fazer
essas intervenções e mobilizam-se uma série
de interesses da iniciativa privada e dos governos locais para reativar
o turismo de negócio ou outros negócios ligados a
cultura. "O discurso do governo e do BID associa diretamente
cultura e economia. Como consequência das intervenções
a população local que vivia naquelas regiões
antes degradadas, vai sendo direta ou indiretamente expulsa, muitas
vezes sem indenização", afirma Júlia Andrade
Para
Carlos Vainer, a esfera da cultura também é encarada
nesse processo como uma esfera econômica. "Temos como
exemplo a abertura de um Museu Guggenheim no Rio de Janeiro. O Guggenheim
exporta franquias para vários lugares como uma cadeia de
fast foods. Um vende comida, o outro vende exposições",
afirma Vainer.
A cidade,
para ele, passa a ser um espaço relevante, pois é
o locus onde determinado conjunto de eventos e atividades do mercado
cultural atualizam-se e alteram-se como espetáculo. "Quase
sempre isso acaba operando como um mecanismo de homogeinização
artística e cultural que asfixia manifestações
culturais tradicionais. Instalado um mercado cultural, vige nele,
como nos outros mercados, as regras da competência, do capital
acumulado, em que apenas os maiores têm capacidade de competição",
afirma Vainer.
(MK)
Leia
também sobre o Programa de Preservação
do Patrimônio Cultural Urbano - Monumenta, para saber
mais sobre recuperação urbana e preservação
de centros históricos.
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