Editorial:

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Carlos Vogt

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Artigos:
Dimensões da tragédia urbana
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Aprovação do Estatuto da Cidade
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Cristina Meneguello
"As cidades nos países subdesenvolvidos" em um mundo globalizado
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Cidades e seus fragmentos
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Cidade, língua, escolae a violência dos sentidos
Cláudia Pfeiffer
A cidade como objeto de estudo
Maria Josefina Gabriel Sant'Anna
Poema:
Manual do novo peregrino
Carlos Vogt
 
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Preservação ambiental: destino alternativo para o litoral sul de São Paulo?

O Vale do Ribeira, que abrange porções dos estados de São Paulo e Paraná, tem 68% do seu território coberto pela Mata Atlântica. Desse total, 51% está dentro de Unidades de Conservação Ambiental. Ainda não se sabe os números exatos da degradação ambiental na região, como desmatamento, ocupações irregulares do solo em áreas protegidas e extrativismos animal e vegetal clandestinos. Entretanto, o aumento do fluxo turístico e o crescimento urbano são dados práticos do cotidiano vivenciado por algumas cidades, principalmente aquelas localizadas no litoral sul de São Paulo. Cananéia, Iguape e Ilha Comprida destacam-se pela preocupação ambiental e a corrida contra o relógio: tentam buscar alternativas de desenvolvimento, mas o litoral norte, que sofre as penas da especulação imobiliária e do crescimento urbano desordenado, despeja naquelas cidades os veranistas que não mais comporta e agrada. Durante a temporada de verão, a população da Ilha Comprida, por exemplo, salta de aproximadamente 7 mil para até 250 mil pessoas.

O caminho de um desenvolvimento, clamado por muitos como sustentável, é tortuoso e repleto de obstáculos. A legislação ambiental, complexa e muitas vezes obscura e distante da realidade, cuja interpretação é, em certos casos, inflexível, confunde o poder público local, os leigos e até mesmo os técnicos. Há, também, o fantasma da falta de recursos humanos e financeiros, que ronda os órgãos públicos responsáveis pelo gerenciamento, fiscalização e licenciamento ambiental, como o Ibama (Instituto Brasileiro dos Recursos Naturais Renováveis), o DEPRN (Departamento Estadual de Proteção aos Recursos Naturais), da Secretaria do Meio Ambiente (SMA), e a Polícia Militar Florestal, hoje denominada Polícia Ambiental. "Temos apenas dois fiscais para atuar em 230 mil hectares", informa a chefe da Área de Proteção Ambiental federal de Cananéia, Iguape e Peruíbe, Paula Ansarah. Sem falar na morosa atuação burocrática desses órgãos e na aplicação equivocada de recursos que sempre fizeram parte da máquina estatal brasileira.

O agrônomo Márcio José Lúcio, diretor do DEPRN, também aponta situações que limitam a atuação dos órgãos públicos, como a falta de um sistema de monitoramento e vigilância dos impactos ambientais na região e ausência de um sistema de informações sobre a qualidade ambiental das áreas onde se deseja fazer empreendimentos imobiliários.

Loteamentos

O município de Ilha Comprida é o que melhor ilustra a confusão que cerca os turistas, o poder público e a população local. O território da Ilha foi declarado Área de Proteção Ambiental (APA) através do decreto estadual no 26.881, de 1987, que proíbe o exercício de qualquer atividade potencialmente causadora de degradação ambiental, como construções sem prévia análise e autorização (através de laudos) de órgãos ambientais. A regulamentação aconteceu dois anos depois, instituindo áreas de Zona de Vida Silvestre e Zonas de Ocupação Controlada, com o propósito, expresso nos artigos da lei, de preservar recursos naturais imprescindíveis à manutenção da qualidade de vida das pessoas que vivem nas vilas da Ilha. No entanto, antes dessa data, a Ilha Comprida já estava inteira retalhada pelos loteamentos. Apenas dois ou três parcelamentos do solo foram feitos após a regulamentação da APA.

Resumindo, aplica-se ao caso algo parecido com a "regra Tostines": a lei deve ser aplicada aos raros loteamentos feitos após a lei, ou os loteamentos feitos antes da lei devem ser submetidos à lei que os sucedeu? Está instaurada a confusão, muito mais difícil de ser esclarecida aos veranistas ludibriados, que compraram terrenos na cidade antes de 1989 e que, ao pé da letra da lei, nada valem. "Muitos turistas vêm aqui me mostrar o carnê do IPTU pago por eles. Mas o IPTU é cobrado sobre a propriedade e não sobre a utilização dela", conta o diretor do DEPRN de Iguape, órgão responsável pelo licenciamento ambiental. "Tento explicar a eles o por quê de nada poderem fazer em seus terrenos". Em muitos casos qualquer obra fica economicamente inviável perante às exigências legais, como os estudos e laudos de impacto ambiental, que acabam custando mais que o próprio lote.

Esse caso também comprova que nem sempre o excesso de restrições é capaz de prestar nobres serviços à conservação. O fluxo de pessoas na Ilha tem aumentado a cada ano, bem como o número de ocupações irregulares e o trânsito de carros na praia, área de descanso e alimentação de aves migratórias e residentes. Para o prefeito de Ilha Comprida, Décio Ventura, o parcelamento do solo no município deveria ser permitido, dependendo do lugar em que fosse feito. Ele também sugere a constituição de um novo decreto, que modifique o que regulamentou a APA em 1989, alterando os limites para a ocupação humana e a conservação ambiental. Essa modificação criaria um sistema de compensação, no qual 1/3 de um terreno, por exemplo, seria destinado à construção, enquanto 2/3 seriam conservados. "O decreto que está aí não é efetivo, porque não é exeqüível. Tem muita gente no governo brincando de preservar o meio ambiente", diz o prefeito. E conclui: "Ele gera uma desapropriação indireta dos terrenos, pela qual as pessoas são obrigadas a abandonar os lotes por falta de recursos para brigar na justiça".

Na opinião de Ventura, a conservação ambiental pode acontecer por outras vias. Ele frisa que as pessoas costumam confundir área de proteção com área de preservação. "O objetivo principal de uma área de proteção é manter a qualidade de vida de quem mora ali. A interpretação da legislação está equivocada. Eu preciso viabilizar infra-estrutura para receber o turista". A informação fornecida pelo prefeito que mais estarrece é a de que o município não possui um Plano Diretor, que, se bem feito, poderia nortear o crescimento da cidade. "O Plano Diretor depende do que diz a regulamentação da APA, que, por sua vez, não atende as necessidades da população", explica. "Hoje, a lei que devemos obedecer é inócua, não tem valor e, então, não temos Plano Diretor".

Para provar que a validade da lei é questionável, basta citar o decreto estadual no 750, de 1993, que proíbe a supressão de vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração da Mata Atlântica. De que vale, então, o decreto de regulamentação da APA expedido em anos anteriores? Com exceção do centro da cidade, também conhecido como boqueirão norte, todo o restante da Ilha tem vegetação primária ou nos estágios avançado e médio de regeneração. Depreende-se daí que nela nada pode ser feito, o que invalida o Zoneamento Ecológico Econômico proposto pelo poder público estadual. "Tomando como base o decreto no 750, eu não posso autorizar o desmatamento nem de 10% de um lote", afirma Márcio Lúcio.

No litoral sul, as receitas dos municípios decorrem em especial do turismo e da cobrança do IPTU. Essas cidades, assim como todas as que estão dentro do Vale do Ribeira, têm seu crescimento econômico - como o que conhecemos nos grandes centros urbanos e outras cidades do interior - subjugado pelas leis da preservação ambiental, as quais inviabilizam a instalação de indústrias e outras atividades potencialmente poluidoras. Daí decorre a preocupação do prefeito de Ilha Comprida, que em nada difere da preocupação dos outros prefeitos do Vale, em incentivar a atividade turística.

Há dois anos Ventura conseguiu terminar a ponte que liga Iguape à parte norte da Ilha Comprida. Antes a cidade estava literalmente "ilhada", sendo o acesso realizado por duas balsas, uma na parte norte e outra no sul, na cidade de Cananéia. Para o Prefeito a ponte não é responsável pelo aumento do fluxo de pessoas e de veículos na praia. "Não foi a ponte que trouxe a construção. O governo tem que lembrar que aqui tem gente e tem turismo. Ele deveria então ter decretado a Ilha um Parque e não uma APA". Hoje, ele também quer construir uma estrada de ligação entre as partes norte e sul da Ilha. Ele rebate a resistência dos órgãos ambientalistas afirmando que sem a estrada não há como impedir que os veículos transitem pela praia. Por outro lado, os ambientalistas atacam o argumento, afirmando que será inevitável o aumento do fluxo de carros na Ilha, o que tornará inviável controlar os veículos na areia.

Controvérsias

Técnicos e ambientalistas discordam das idéias do prefeito e vislumbram um destino trágico para o litoral sul de São Paulo. O oceanógrafo, que realiza pesquisas no Instituto de Pesca de Cananéia, Edison Barbieri explica, através de um diagnóstico ambiental da parte sul da Ilha Comprida, que "os loteamentos, de modo geral, foram feitos em áreas inadequadas. Quase todos possuem partes de seus lotes em áreas de mangue, dunas ou alagadiços permanentes". Barbieri também aponta a degradação social e cultural como uma causa negativa do turismo. As vilas de Pedrinhas, Juruvaúva e Morretinho já sofrem com o avanço dos loteamentos sobre suas terras. Algumas comunidades, que antes viviam apenas da pesca, hoje estão rendidas às atividades ligadas ao turismo. Muitos tornam-se caseiros para os veranistas.

Isso não acontece apenas na Ilha Comprida. Na Ilha do Cardoso, um Parque Estadual em Cananéia, quase todas as famílias, que ali vivem espalhadas em vilas, complementam a renda com o dinheiro trazido pelo turista. E, na própria cidade, muitos chegam ao extremo de abandonar suas próprias casas durante as temporadas para entregá-las aos veranistas. Em troca eles recebem uma quantia que nunca conseguiriam juntar com o trabalho e os salários disponíveis na cidade. É assim que miséria e degradação ambiental andam lado a lado. Sem falar nos caiçaras que, para sobreviver, dedicam-se ao extrativismo clandestino de ostras, mexilhões, caranguejos, palmitos e caça de animais silvestres, muitos dos quais a caminho da extinção.

Barbieri ainda alerta sobre os riscos da degradação ambiental em ilhas. "Os ambientes costeiros estão entre os mais frágeis do planeta devido à sua dificuldade e, muitas vezes, impossibilidade de recuperação diante de algum tipo de impacto. No litoral, o turismo tem uma atuação negativa, eliminando plantas e habitats de animais e contaminando a água". Para o pesquisador, a ocupação dos loteamentos previstos para a região estuarino-lagunar da parte sul da Ilha Comprida poderia trazer crescimento econômico para o município. Entretanto, esse crescimento não será convertido em melhoria da qualidade de vida da população e os prováveis prejuízos superariam em muito os eventuais benefícios.

Manejo sustentado

Mas nem tudo são espinhos no rumo das tentativas de alcançar a sustentabilidade. Embora demorados e com uma implantação cheia de percalços, há na região do litoral sul de São Paulo projetos que atuam na área de manejo sustentado de recursos naturais que têm surtido efeito em longo prazo. Exemplos não faltam e, por incrível que possa parecer aos pessimistas, são fruto do trabalho conjunto entre órgãos governamentais, não-governamentais e comunidades tradicionais. Em Cananéia, funciona uma cooperativa dos produtores de ostras, a Cooperostra. Ela é resultado do trabalho da comunidade do bairro Mandira e tem possibilitado a extração racional e ordenada de ostras do mangue Crassostrea brasiliana. No Parque Estadual da Ilha do Cardoso, é cultivado o mexilhão da pedra Perna perna pelas famílias de pescadores da vila do Pontal de Leste. Em Iguape há tentativas de organizar uma cooperativa dos pescadores da manjuba. Na Ilha Comprida são desenvolvidos o Programa de Manejo Sustentado da Samambaia Silvestre e Produção e Comercialização do Siri-Mole do Lagamar. Todos esses projetos são fomentados pelas próprias comunidades e associações de moradores, com o apoio do Instituto de Pesquisas do Litoral Sul do Instituto de Pesca, órgão da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo, e da prefeitura de Ilha Comprida. São honrosas iniciativas, mas resta saber se poderão acompanhar o ritmo das demandas causadas pela degradação ambiental.

Saneamento básico e lixo

O turismo já faz parte há muito tempo do cotidiano das cidades do litoral sul. Na Ilha Comprida, entretanto, somente há quatro anos teve início a implantação de sistemas de coleta e tratamento de esgoto. Durante o verão, quando a população sofre um acréscimo de 400%, é desagradável o cheiro do esgoto que corre pelas ruas dos loteamentos da parte norte. De acordo com a Sabesp, boa parte da rede coletora já instalada não funciona porque a segunda estação de tratamento do município ainda não está pronta. Hoje, apenas 19% do esgoto é coletado e tratado.

Já Cananéia e Iguape possuem 53% e 69% de coleta e tratamento de esgoto, respectivamente. A Sabesp justifica o baixo percentual com a demora na alocação de recursos para concluir as obras de saneamento. Em Iguape falta coleta dos bairros mais afastados do centro, Icapara e Barra do Ribeira que, durante a temporada são os mais populosos. Porém, nessas cidades não existe o problema do abastecimento de água como na Ilha Comprida. O reservatório de água do município não tem capacidade para abastecer a população flutuante da temporada. A água chega às casas, mas sem pressão. "Os projetos e obras não conseguem acompanhar o ritmo de crescimento da cidade", justifica a Sabesp.

O lixo também é questão crucial em áreas de preservação ambiental. Em Cananéia, um dos lixões da cidade já foi autuado por não ter feito um aterro sanitário. Na Ilha, o problema é mais grave. Um imenso lixão em meio à restinga, tipo de vegetação teoricamente protegido pela lei, no boqueirão norte, atrai urubus e pessoas que constroem moradias precárias ao seu redor. Márcio Lúcio, do DEPRN, explica que ali não existe lugar para fazer aterro sanitário por ser uma área de proteção ambiental. "O lixo tem de ir para o município mais próximo", explica. A situação parece que está a ponto de ser resolvida. Está quase pronto o licenciamento de uma área em Iguape para ser feito o aterro sanitário do lixo da Ilha. Apesar da boa notícia, esse fato evidencia a morosidade do poder público em resolver questões urgentes. "A denúncia do lixão ilegal da Ilha eu fiz há sete anos ao Ministério Público", afirma Lúcio. Somente agora acontece alguma coisa.

Repressão ou educação?

Se a aplicação da lei é uma realidade eventual, os órgãos de fiscalização e licenciamento ambiental trabalham com recursos humanos e financeiros escassos e a quase totalidade das ações ligadas à melhoria da qualidade ambiental dependem de vontade e iniciativa política (o que pode levar décadas para acontecer). A educação ambiental tem papel relevante na mudança desse quadro de relações intrincadas. "O turista que vem aqui e joga lixo na praia, muitas vezes não sabe o que está fazendo", opina Márcio Lúcio.

O tenente Ezequias, da Polícia Ambiental do Vale do Ribeira, que atua em Iguape e Ilha Comprida com apenas um pelotão de 30 policias e, em Cananéia, com o número ridículo de 6 policiais avalia: "O certo não é investir apenas em repressão. O ideal é também investir em prevenção".

Talvez a educação também possa começar a sensibilizar as pessoas e mudar a cômica realidade exposta por Paula Ansarah, do Ibama: "quem retira areia das dunas na Ilha Comprida, que são áreas de preservação permanente, já tem um esquema para driblar as denúncias e a fiscalização. Quando chegamos no lugar para autuar, as máquinas estão paradas ou já foram embora". E mais: "A pesca de arrasto na costa é proibida a certa distância, e fazemos o controle disso por binóculo, porque não temos barco. Muitas embarcações modificam os números de idenficação, para que as multas não cheguem às capitanias". O que é mais risível? A fuga das máquinas, a troca de números, o uso de barcos ou a falta de barco para atuar no mar? Tudo e todos precisam da educação ambiental: turistas, população local, órgãos públicos, poder legislativo, ministério público, secretarias, prefeituras, promotores de justiça...

(SN)

 

Atualizado em 10/03/2002

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