O
passado nas cidades do futuro
Cristina
Meneguello
Quando
se pensa no futuro das cidades, impõem-se temas como a explosão
populacional e a conseqüente sobrecarga de transportes, recursos
e serviços. Aglomerados urbanos gigantes, que se multiplicam
nos países da África, Ásia e América
Latina, e a veloz taxa de crescimento de cidades de porte pequeno
e médio, em todo o mundo, indicam aos estudiosos das cidades
que nos próximos anos testemunharemos não a dissolução
dos organismos urbanos, mas sim sua intensificação.
Conforme
dados recentes das Nações Unidas, nos próximos
15 anos várias mega-cidades atingirão a marca de mais
de 10 milhões de habitantes, e, salvo exceções
como Tóquio e Nova York, a imensa maioria se localizará
em países com altíssimas taxas de miséria e
de desigualdade social. Dentro das duas próximas décadas,
mais de 15 milhões de habitantes viverão em cidades
como Lagos na Nigéria, Dakha em Bangladesh, Calcutá
e Delhi na Índia, Jacarta na Indonésia, Karashi no
Paquistão, Cidade do México e, estima-se, aqui no
Brasil a cidade de São Paulo contará com uma população
de mais de 20 milhões de pessoas. (Fonte: Population Division
of the Department of Economic and Social Affairs of the United Nations
Secretariat, World Urbanization Prospects: 2001).
Segundo
essa avaliação de que os países subdesenvolvidos
serão os grande atingidos, a sustentabilidade das cidades
tem sido apresentada como uma solução, visto que a
preocupação com o ambiente de forma geral abrange
uma gama de questões que vão da produção
de alimento, consumo de energia, gerenciamento do transporte e do
lixo até a eliminação da pobreza, a proteção
das fontes geradoras de energia e a requalificação
da vida cultural urbana. Nesse quadro, declarações
de que as cidades do futuro deverão abranger a diversidade
e manter - ou reatar - os liames com o passado são moeda
corrente. Tais discursos escondem, todavia, um tema extremamente
complexo: o da preservação de traços do passado,
presentes nas estruturas e nas relações sociais, em
cidades em constante mutação. A preservação
das marcas do passado, usualmente defendida como um fator de "qualidade
de vida" para as populações urbanas, vem muitas
vezes propor o falseamento ou uma reinterpretação
do passado urbano, revelando escolhas e omissões evidentes.
Podemos
pensar esse problema em dois diferentes níveis. Em primeiro
lugar, as mega-cidades são muitas vezes entendidas como cidades
globais, ou seja, que ultrapassaram fronteiras históricas
e geográficas e que disponibilizam cultura, produtos e serviços
semelhantes aos de qualquer outro grande centro mundial. Mas, por
outro lado, os organismos de preservação do patrimônio,
oficiais ou não, investem exatamente no estabelecimento de
identidades e peculiaridades que diversifiquem um local dos demais,
que dêem a ele a medida do raro, do diferente, do único.
Assim, enquanto o discurso é global, o investimento no passado
é sempre mediado pelo único, não raro pelo
"exótico". O passado das cidades torna-se, assim,
um espaço que não possui nenhuma permanência
dentro do presente - é como se o passado e a história
fossem locais pitorescos a serem visitados, jamais forças
ativas dentro do presente. Destarte, dá-se primazia à
proteção de bens edificados por sua concretude e as
práticas são consideradas por demais cambiantes para
serem fixadas.
Nesse
modo de ver, dificilmente a idéia de patrimônio urbano
pode ser associada a grandes cidades. Apenas enclaves (como por
exemplo os centros das cidades) têm sido entendidos como passíveis
de serem preservados. Afinal, as cidades consideradas "patrimônio
mundial" não são as mega-cidades ou as grandes
metrópoles mas justamente aquelas que, por diferentes razões
- na maioria dos casos a decadência política ou econômica
ocorrida no passado - tiveram sua expansão refreada e suas
fronteiras bem definidas. No caso do Brasil, as cidades listadas
pela Unesco como patrimônio mundial são Salvador, Brasília,
Olinda, Ouro Preto, São Luís do Maranhão e
a recentemente incluída cidade de Goiás (Fonte:UNESCO.
Organization of World Heritage Cities).
Desse
modo, um segundo nível deste problema deriva das escolhas
sobre qual passado deve ser preservado nas grandes cidades. No caso
brasileiro, essa questão é flagrante: frente a grandes
cidades em expansão, extremamente mutáveis, nas quais
as populações circulantes não são sequer
oriundas do local onde vivem, qual patrimônio histórico
deve ser escolhido? Usualmente, defende-se um patrimônio que
se identifica a épocas consideradas áureas: casarões
de barões do café e mansões de ricos industriais
do passado ganham relevo e "usos culturais", levando,
entre outros fenômenos, à multiplicação
de centros culturais em prédios considerados históricos.
Ao mesmo tempo, o que tem muito mais a dizer das grandes cidades
e de seu desenvolvimento histórico, como por exemplo seu
patrimônio industrial (fábricas, estações
ferroviárias, trilhos, maquinário, galpões
industriais) é diariamente destruído ou abandonado
à própria sorte; é como se não estivessem
adequados ao passado "romântico" e turístico
que se quer aplicar às cidades.
Observa-se
essa questão especialmente em relação aos centros
das grandes cidades. Se no passado os centros concentraram funções
comerciais e políticas e garantiam uma certa identidade urbana,
hoje tais locais, que nem ao menos são mais o centro geográfico
das cidades e se encontram ocupados de forma desordenada, são
reinvestidos de valor: "revitalizar o centro da cidade"
se torna uma estratégia, um mote político, e se afigura,
novamente, como uma solução para os males urbanos.
O investimento na idéia de centro surge como solução,
igualmente, porque traz uma recuperação da identidade,
da diversidade, que busca conferir aos moradores uma sensação
de pertencimento em uma cidade percebida de forma fragmentada e
compartimentada.
Não
se pode ignorar que soluções e propostas recentes
tem problematizado o uso dos centros de forma bastante interessante,
como no caso da utilização dos antigos edifícios
para uso habitacional; da antiga fórmula urbana de usos mistos
(habitacionais e comerciais) que garantem às regiões
antes apenas comerciais uma vitalidade durante todo o tempo ou mesmo
do vigor urbano e arquitetural que estimula a freqüência
a regiões antes evitadas.
Por
outro lado, a preservação do patrimônio nas
grandes cidades, hoje, ainda nos remete a uma identidade criada,
ensinada ou forjada, visando atender aos imperativos do turismo,
do consumo e da imagem corporativa de bancos e grandes empresas.
Experiências como as ocorridas no Pelourinho em Salvador ou
no Pólo Bom Jesus em Recife culminaram na expulsão
das populações tradicionais de suas moradias e na
criação de "ilhas de lazer" destinadas ao
consumo abastado. Esses usos, todos juntos, contribuem para que
se crie uma imagem "fake" do passado a ser consumida,
por sua vez, mostrada aos turistas ou absorvida nas publicidades
corporativas. E, ao pensarmos nas futuras mega-cidades na África
e América Latina que ainda têm que conciliar o passado
dos colonizadores com o passado das populações locais,
ou as práticas e edifícios nascidos desse encontro,
a situação torna-se ainda mais complicada - como no
caso paradigmático da cidade do México, onde se busca
conciliar o passado dos astecas, o dos colonizadores e as necessidades
da megalópole.
Logo,
a preservação do passado nas grandes cidades, para
possuir algum significado para as populações atuais
ou futuras, deverá libertar-se da idéia de que o passado
está morto e congelado, e propor hipóteses de qualificação
do espaço urbano que recuperem a importância do passado
na vida atual, compreendendo a constante transformação
que faz parte do viver urbano.
Cristina Meneguello é doutora em história e professora
do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas.
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