Ocupações revelam déficit habitacional
O problema
das ocupações irregulares de terrenos urbanos para
moradia da população de baixa renda se repete na maioria
das grandes cidades brasileiras e nos países subdesenvolvidos
e em desenvolvimento. O resultado é o crescimento desordenado
e o inchaço das cidades com falta de infra-estrutura para
garantir as necessidades básicas do cidadão, reconhecidas
na Constituição, como o saneamento básico,
abastecimento de água, assistência médica, transporte
e educação.
A outra
grave conseqüência deste crescimento irregular urbano
é o alto índice de violência e criminalidade.
A falta da presença do Estado em certas regiões da
periferia das metrópoles e áreas de risco, como encostas
de morros e beiras de córregos e rios, transforma estes locais
em uma verdadeira terra-de-ninguém, em guetos urbanos onde
a lei é ditada através da violência de grupos
do crime organizado.
Essa
realidade é o reflexo dos vários problemas sociais
enfrentados por países como o Brasil, onde existe grande
concentração de renda e onde há, historicamente,
uma corrente migratória do campo para a cidade em busca de
emprego e dos benefícios da vida urbana. A forma para garantir
o acesso à moradia é a invasão de terrenos
ociosos, seja em grupos que se organizam politicamente ou em atos
isolados.
Mas
há iniciativas governamentais e populares que amenizam o
problema da falta de condições de vida nessas ocupações,
com a comunidade se organizando para superar as principias dificuldades
e reivindicando ações do poder público. Alguns
projetos se tornaram exemplos de solução do problema
de moradia, como a organização das comunidades no
Complexo Oziel / Monte Cristo, em Campinas, e os projetos de planejamento
urbano nas cidades satélites de Brasília.
Tais
exemplo não impedem, contudo, a ocorrência de fatos
trágicos, como o que aconteceu no dia 14 de fevereiro na
cidade de Ananindeua, na região metropolitana de Belém
do Pará. Na área, conhecida como Carlos Mariguela,
no bairro do Aurá, vivem cerca de 1400 famílias, que
ocupam o local há aproximadamente um ano. A polícia
foi ao local para cumprir um mandato de reintegração
de posse e as imagens de violência divulgadas pela imprensa
mostraram a falta de preparo dos poderes executivos e judiciários
para tratar a questão.
O conflito
revelou a falta de negociação entre o poder municipal
e os moradores, a truculência da polícia e o poder
da reação violenta da população local
que, não querendo perder a esperança de ter um local
para morar, resistiu a pedradas à ordem judicial de desocupação
e reintegração de posse, que estava sendo executada
pela Polícia Militar. A polícia teve de abandonar
a área sem cumprir a determinação. A batalha
resultou em 82 feridos, sendo 54 policiais militares e 28 moradores.
Foram decretadas 21 prisões de sem-tetos, dos quais onze
chegaram a ser presos, sendo soltos em seguida após pedido
de relaxamento de prisão.
No
dia seguinte ao confronto, a Justiça suspendeu o mandato
de reintegração por 30 dias, na expectativa de que
possa ser negociada a desapropriação da área
pelo governo municipal ou estadual ou que os lotes sejam vendidos
aos moradores. A coordenação do Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto (MTST), que organiza a ocupação, informou
que os moradores irão resistir caso haja nova tentativa de
reintegração de posse. Segundo as fontes oficiais,
hoje o déficit habitacional no Pará é de 400
mil unidades.
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Em
apoio à invasão do Movimento Nacional da Luta
pela Moradia, Ermínia Maricato veste a camisa do movimento
durante o Fórum Social. Foto: Rafael Evangelista
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Outro
fato que ganhou repercussão na mídia nacional e internacional
foi a invasão de um prédio abandonado na cidade de
Porto Alegre, durante o 2º Fórum Social Mundial, no
começo de fevereiro. Foi um ato político, no qual
300 militantes do Movimento Nacional da Luta pela Moradia (MNLM)
ocuparam o prédio Sul América no centro de Porto Alegre.
Segundo a coordenação do MNLM, a invasão foi
uma forma de protesto contra a forma como são feitas as triagens
das pessoas que se candidatam aos programas de habitação
da Caixa Econômica Federal e contra a falta de uma programa
nacional do Governo Federal para solucionar o problema da moradia
popular.
O prédio
invadido estava abandonado há alguns anos e era habitado
por pombos. Não tinha água, luz, nem banheiros e foi
desocupado alguns dias após a invasão. No prédio
funcionavam salas empresariais e segundo a assessoria da Caixa Econômica
Federal de Porto Alegre, está havendo um processo de negociação
junto aos proprietários para a compra dos imóveis.
Em
Porto Alegre, a prefeitura dividiu a cidade em 16 regiões
e o orçamento participativo de cada uma dessas áreas
definiu como prioridade os projetos de habitação.
O principal projeto de reurbanização a ser implantado
é o "Projeto Integrado Entrada da Cidade", na região
Norte de Porto Alegre, que prevê o beneficiamento de 21 favelas
onde vivem cerca de 12 mil pessoas. Na primeira semana de março,
ocorreu o processo de licitação para a construção
da primeira etapa do projeto.
Maior
Ocupação da América Latina
Em
Campinas, no ano de 1997, começou a ser organizada aquela
que passou a ser conhecida como a maior ocupação da
América Latina, no Parque Oziel, às margens da rodovia
Santos Dumont, que liga Campinas a Sorocaba. Na época, chegou
a se falar em 30 mil famílias ocupando o local. A verdade
é que os números foram superestimados pelos movimentos
políticos, como forma de pressão e negociação.
Até hoje não se sabe ao certo o número de pessoas
que vive nessa área de ocupação chamada de
Complexo Oziel / Monte Cristo, englobando os bairros Parque Oziel,
Jardim Monte Cristo, Jardim do Lago 2 e Gleba B. Mas, com certeza,
essa é uma das maiores áreas urbanas invadidas, com
cerca de 1 milhão de metros quadrados, onde praticamente
se criou uma nova cidade dentro da cidade de Campinas. Essa área
invadida tem 116 proprietários, sendo que 9 deles detêm
o registro de 75% da área.
O início
da ocupação aconteceu quando houve um loteamento da
antiga Fazenda Taubaté que foi invadido. Houve grande repercussão,
com a situação saindo fora de controle e atraindo
pessoas de várias partes do país. A Justiça
já ordenou a reintegração de posse da quadra
68 do Jardim Monte Cristo, onde vivem cerca de 100 famílias,
mas os moradores se preparam para resistir a uma possível
invasão da polícia. Atualmente há uma negociação
entre o Poder Público e os moradores, para evitar um confronto
numa possível ação de reintegração
de posse. Segundo a assessoria de imprensa da Secretaria Municipal
de Habitação e a Companhia de Habitação
Popular (Cohab) de Campinas, existe um estudo para destinar toda
a área do Complexo Oziel / Monte Cristo como "interesse
social", para moradia de famílias de baixa renda.
Segundo
Arnaldo Murilo da Silva Pohl, que foi coordenador geral da ocupação
até o mês de julho do ano passado, existem três
associações de moradores na área. Hoje há
escolas, áreas esportivas e saneamento básico. "A
nossa segunda luta é batizar os nomes das ruas com os nomes
de pessoas ligadas ao movimento, dos companheiros que foram parte
atuante da ocupação, como o finado Paraíba",
diz Murilo Pohl. Segundo ele, o que existe não é só
um problema de moradia, é a falta de uma política
urbana e agrária no Brasil, para evitar o êxodo rural.
"O problema é na estrutura política do país,
com grupos que detêm a posse da terra para especulação
em um país imenso como o nosso", afirma Murilo Pohl.
O mapa
das ruas do Complexo Oziel / Monte Cristo começou a ser desenhado
com a divisão do loteamento original, que previa a divisão
de grandes lotes. Depois, com a ocupação, muitas ruas
foram abertas através da enxada e outros meios, como a passagem
constante das pessoas pelo caminho. Hoje, a maioria dos lotes tem
o tamanho de 126 metros quadrados.
A Cohab
de Campinas começou, em janeiro, a fazer a numeração
das casas e a montar um cadastro físico e territorial da
área, para identificar os números dos lotes por quadra,
área ocupada e situação das áreas públicas
e, em seguida, desenvolver um projeto urbanístico. O projeto
inclui áreas que deverão ser desocupadas para a instalação
de equipamentos públicos, áreas para comércio
e serviços.
O trabalho
de numeração das casas terminou na primeira semana
de março. Foram catalogadas 1470 casas no Jardim Monte Cristo,
1538 casas no Parque Oziel e 290 na Gleba B, totalizando 3290 residências.
Segundo a assesoria da Prefeitura de Campinas, o projeto de urbanismo
da área já está em andamento. No começo
de março, também foi assinado um protocolo de intenções
dos moradores, junto a Coab, que está negociando a aquisição
dos terrenos com os proprietários.
Também
está sendo feito um levantamento topográfico da ocupação
e um levantamento do número de habitantes, que deverá
estar concluído até o final do ano. Segundo as fontes
oficiais da Cohab e da Secretaria Municipal de Habitação
da Prefeitura de Campinas, a cidade tem um déficit habitacional
de 40 mil casas, com cerca de 160 mil pessoas vivendo irregularmente,
em área de risco, favela ou ocupação.
Ocupações
Planejadas
No
caso de Brasília, quando a cidade foi projetada não
se esperava um crescimento populacional tão rápido
no, então longínquo, cerrado do Planalto Central brasileiro.
Inicialmente a cidade foi projetada para 500 mil habitantes. A atração
por novas oportunidades de trabalho, fez com que, já no primeiro
ano da construção, em 1960, a população
chegasse a 140 mil habitantes. Em 1970 a população
havia passado dos 500 mil. Depois de 20 anos da inauguração,
várias cidades satélites surgiram ao redor da Capital
Federal e a população passou dos 2 milhões
de habitantes.
Em
1987, Brasília foi tombada pela Unesco, se tornando a primeira
cidade moderna do mundo a ter esse título. Em 1988, havia
na cidade 64 áreas de invasão, uma situação
irregular para uma cidade tombada como Patrimônio Mundial,
que deve ter um plano de preservação do Plano Piloto.
Na época o Governo do Distrito Federal criou um projeto de
assentamento para remover as pessoas das áreas invadidas.
No projeto, em vez de construir as casas como na maioria dos conjuntos
habitacionais, foram distribuídos lotes semi-urbanizados,
para os moradores construírem suas casas de acordo com as
próprias possibilidades financeiras.
O projeto
incluía o planejamento das cidades, do espaço urbano,
com áreas para escolas, lazer, comércio, centros de
saúde e espaço para as ruas asfaltadas, integrando
a cidade com o transporte coletivo e até o estudo de impacto
ambiental. Surgiram cinco novas cidades com esse projeto, incluindo
Samambaia, a primeira a ser construída para erradicar as
favelas do Distrito Federal, com o assentamento de 102.829 famílias.
Na época, as pessoas ficavam assustadas em mudar para um
lugar aonde não existia quase nada, nem iluminação
pública, nem abastecimento de água (que era feito
com chafariz) e nem asfalto. Hoje as invasões continuam a
acontecer nas regiões em Brasília e para assentar
os novos moradores, o Governo vem fazendo o adensamento dessas cidades,
ocupando os lugares ociosos existentes. Apesar de todo o planejamento,
ainda existem várias regiões sem esgoto e sem asfalto.
Esse
foi um modelo diferenciado de construção de casas
populares, que atraiu o interesse de países como a China
e a Venezuela, que procuram exemplos para solucionar problemas de
moradia. Em Caracas, capital da Venezuela, a situação
é semelhante à de Brasília na década
de 80, com muitas ocupações próximas ao centro
do poder. Da China, no ano passado, o governo enviou delegações
para conhecer alguns projetos e neste mês o governador do
Distrito Federal, Joaquim Roriz, está naquele país
para apresentar aos governos de Xangai e Pequim o programa habitacional
implantado na região de Brasília. A China possui uma
população de 1,3 bilhão de habitantes com graves
problemas de moradia.
Apesar
desses projetos de habitação, ainda existem invasões
e áreas de ocupação em Brasília. A maior
área é a Ocupação da Estrutural, com
cerca de 4 mil famílias. A outra área fica na Vila
Planalto, no Setor das Embaixadas, uma área nobre no coração
de Brasília. Essa é uma ocupação histórica,
começou com os pioneiros que vieram para construir a cidade.
Quando a área foi condenada pela Justiça para a moradia,
o Governo cedeu outra área e cerca de 80% dos moradores aceitaram
a transferência. O restante resistiu e hoje vivem cerca de
800 pessoas nesse local, que tem pouca infra-estrutura e não
tem asfalto.
Governo
e Comunidade
Ao
analisar as iniciativas governamentais e as formas de pressão
popular pelo direito à moradia e a ação dos
grupos politicamente organizados, é possível notar
as várias faces do problema de habitação no
Brasil. De um lado, os projetos de habitação dos governos
municipais e estaduais não dão conta da demanda de
moradia nos grandes centros urbanos, porque não há
uma padronização e um planejamento a longo prazo das
iniciativas, que ficam sujeitas a campanhas eleitoreiras e a paralisação
de projetos com a mudança de mandatos dos governantes.
Por
outro lado, os vários movimentos políticos como o
MNLM e o MTST, se mobilizam para pressionar por soluções
para o problema, sugerindo, por exemplo, a criação
de políticas federais até com a criação
de um Ministério da Habitação e de projetos
que evitem o êxodo rural. Mas alguns métodos e formas
de pressão, como as ocupações fora de controle,
também acabam contribuindo para o inchaço das metrópoles,
agravando cada vez mais os problemas sociais dos novos ocupantes
e prejudicando a infra-estrutura, já deficiente, das populações
da periferia, que pagam o terreno e o imposto.
No
aspecto urbanístico, o ideal seria a pesquisa, o estudo e
o planejamento, para a criação de projetos permanentes,
visando às necessidades imediatas da moradia. Estes projetos
devem ser renovados permanentemente para acompanhar as mudanças
populacionais, tentando tornar as grandes cidades sustentáveis
e habitáveis. (GP)
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