Cidade,
Língua, Escola e a violência dos sentidos[1]
Claudia
Castellanos Pfeiffer
Trago
para esse espaço de reflexão uma breve análise
do funcionamento das estatísticas no que diz respeito à
construção de imaginários sobre língua,
sujeito escolar e espaço urbano. Relação que,
de modo tangencial, toquei em minha tese de doutorado. Essa vontade
se fez maior diante das matérias com que me deparei no jornal
de Domingo da Folha de São Paulo no Caderno 'Folha Campinas'
do dia 24 de junho de 2001. São seis matérias no total,
todas assinadas pelo mesmo jornalista, ocupando a primeira, a segunda
e a terceira páginas do Caderno 'Folha Campinas'. E eu diria
ainda, remetendo às discussões de Orlandi (2001) sobre
o assunto, são versões do jornalista que vão
se apresentando a cada matéria.
Em
primeira página lemos a chamada "Educação:
Pelo menos 235 estudantes que cursam a 5ª série de escolas
estaduais de Jundiaí têm dificuldade de leitura"
e, em letras garrafais o título da matéria "Escolas
abrigam[2]
alunos que não sabem ler". Já no corpo da primeira
matéria temos:
"Pelo
menos 2.800 (4,3%) dos 65.406 estudantes da 5ª à
8ª séries da rede pública de ensino das
regiões de Campinas e de Jundiaí estão
com escolaridade atrasada ou não sabem ler.
A informação consta de levantamento obtido pela
Folha na semana passada nas Diretorias Regionais de Ensino
nas duas cidades. (§)As estatísticas do Estado
revelam um panorama mais preocupante na 8cidade de Jundiaí,
onde foi detectado que 235 (4%) dos 5.800 alunos que freqüentam
a 5ª série da rede fundamental de ensino possuem
dificuldade em leitura, podendo ser considerados semi-analfabetos.
(§) São considerados semi-analfabetos os alunos
que terminam os primeiros quatro anos do ensino fundamental
sem conseguir acompanhar os estudos, possuem dificuldades
de interpretação, aprendizagem, leitura e escrita
e, por isso, precisam de acompanhamento especial.
(§) A região coberta pela Diretoria Regional de
Jundiaí também levantou que 492 alunos, ou 2,7%
dos 17.987 estudantes de 5ª a 6ª séries da
cidade, de Campo Limpo Paulista e Várzea Paulista têm
dificuldades para ler e escrever. (§) Essas crianças
freqüentaram o ciclo de alfabetização (da
1ª à 4ª séries) na rede pública
municipal e foram considerados com alfabetização
defasada pelo Estado, que as avaliou e as reteve por um ano
para um programa especial de educação. (§)
Segundo o secretário da Educação de Jundiaí,
(...), o município está investindo na capacitação
de professores para reduzir o índice de alunos que
saem das suas escolas sem uma base de alfabetização.
(§) As duas diretorias de ensino da região de
Campinas, que também incluem escolas de Valinhos e
Vinhedo, não forneceram números de semi-analfabetos
da rede, mas revelaram que, dos 47,4 mil alunos que estudam
entre as 5ª e 8ª séries do ensino fundamental,
2.341 estudantes (4,9%) estão com escolaridade atrasada.
(§) Esses alunos precisam ter seus estudos atualizados
pelo programa de classes de aceleração, criado
pelo Estado após a determinação da não-retenção
de alunos por repetência, em vigor desde 1996.(§)
As crianças que estudam nas classes de aceleração
da 5ª série nessa região são 1569.
Eles representam 3,3% do total de alunos do ensino fundamental
administrado pelas Diretorias. (§) Segundo doutoranda
em educação pela Unicamp (...), os alunos que
chegam com defasagem de ensino ao ciclo da 5ª à
8ª série, provavelmente sairão das escolas
sem uma educação adequada. (§) "A
Alfabetização hoje é vista como um processo,
e se faz entre a 1ª e a 4ª série, não
no outro ciclo"(...)."
|
Assim
termina essa matéria que introduz e dá mote para as
outras cinco que compõem o tema central do Caderno daquele
Domingo sobre a Educação. Das outras matérias
tomarei breves passagens e apenas da segunda, terceira e quarta
matéria. Mas antes de partir para essas matérias,
gostaria de me deter em alguns funcionamentos discursivos de que
posso falar a partir da primeira matéria citada.
Chamo
atenção para uma presença que vai se construindo
no decorrer da matéria de uma imagem mais geral e já
cristalizada do aluno como aquele que tem dificuldades de aprendizagem
e do professor como incapaz (precisa de cursos de capacitação).
No embate com essas imagens, vemos um primeiro lugar sendo apontado
para a responsabilidade pelos índices apresentados: a rede
municipal de ensino, que alimenta em sua maioria, o primeiro ciclo
do ensino fundamental; vêm dela, portanto, os alunos das 5ªs
séries considerados semi-analfabetos. E é exatamente
nesse jogo de atribuição da responsabilidade a setores
da sociedade (seja a rede municipal, seja o professor, seja o aluno),
que se estabiliza uma imagem cristalizada: do aluno enquanto semi-analfabeto.
Finalmente, podemos dizer que essa cristalização se
fecha discursivamente, com a enunciação vinda do lugar
do especialista, ao afirmar que, sendo a alfabetização
um processo, restrito ao segundo ciclo do ensino (e evidencio a
contradição), quem não se alfabetiza no primeiro
ciclo, mantém-se semi-analfabeto. (Não entrarei em
discussões teóricas do que se está sendo dito,
mas dos efeitos imaginários daquilo que se diz).
A segunda
matéria se intitula "Dirigentes dizem que migrações
geram as distorções no ensino" e se inicia com:
"Dirigentes regionais de educação de Campinas
e Jundiaí dizem acreditar que a migração
de pessoas de regiões mais pobres do país
para o interior de São Paulo contribui para as chamadas
'distorções'de ensino, que permitem
a existência de semi-analfabetos na 5ª
série da rede estadual. (...)(§) Segundo o dirigente
da região oeste de Campinas, (...), a defasagem de alunos
na região é provocada pela migração
e também pela experiência individual de
cada aluno." |
Quero
agora chamar atenção para as formas materiais: 'abrigam'
(no título da primeira matéria, linha 2) e 'permitem
a existência' (linha 4 da segunda matéria). Nelas vou
percebendo um jogo parafrástico que ecoa sentidos no processo
de personificação do sujeito escolar como o
problema a ser extinto. O semi-analfabetismo, ou o sistema educacional
que permite a construção do semi-analfabetismo, deixa
de ser o objeto. Trata-se do semi-analfabeto. Há nesse jogo
parafrástico, eu diria, uma inversão perigosa que
coloca no sujeito a personificação do problema, descoisificando
o problema. O problema passa a ser o sujeito. Junto a esse funcionamento
descrito, junta-se outro que é o da identificação
das razões pelo alto índice de semi-analfabetos. essa
defendida distorção acaba por regionalizar o problema
em torno de pessoas específicas que podem ser apontadas como
as responsáveis pelo semi-analfabetismo. Assim, personifica-se
o problema para que, depois, se evidencie as "pessoas"
responsáveis que dão corpo a essa personificação,
preenchendo esse lugar que não deveria existir. Uma presença
não bem-vinda, mas abrigada (proteção
contra quem?). O processo de preenchimento dessa personificação
do semi-analfabetismo também se dá através
da qualificação desse sujeito como aquele que deve
receber atendimento especial, ele preenche um lugar do objeto das
políticas públicas do acompanhamento especial. Ser
semi-analfabeto, jogo parafrástico com 'não conseguir
acompanhar os estudos', 'ter dificuldade de interpretar, de aprender,
de ler e de escrever' (linhas 12 e 13 da 1ª matéria),
mostra-se ser um grupo à parte que, através das estatísticas,
não só ganha evidência enquanto grupo à
parte (deve ter acompanhamento especial), como também ganha
visibilidade em suas origens: são migrantes de regiões
pobres e/ou experienciadores de uma vivência muito aquém
da necessária para se estar condizentemente na escola. São
indesejáveis extrapolando os limites antes tão bem
traçados...
A terceira
matéria intitulada "Jundiaí investe na capacitação
de professor" começa dizendo:
"O
secretário da educação de Jundiaí,
(...), informou que a Prefeitura está preocupada com
os 235 alunos semi-analfabetos que saíram da 4ª
série das escolas municipais para as estaduais, este
ano, e que vai investir nos professores para "zerar"
esse número(elipse= esse número de semi-analfabetos)
(...)".
|
De
um lado, textualiza-se o lugar da administração pública
como a responsável por apontar para as causas do problema,
repassando a responsabilidade aos professores: incapazes de ensinar;
de outro lado vai-se mais uma vez na direção de cristalizar
a imagem do semi-analfabeto. Não se trata do analfabetismo,
do semi-analfabetismo, de problemas com o ensino, com a educação,
mas do problema do sujeito semi-analfabeto, esse que insiste em
existir. O fato da presença desse "sujeito" do
problema não pode ser reduzido a uma escolha de estilo do
jornalista que "optaria" por discutir a questão
usando da pessoa que sofre o problema e não do problema-objeto
(o semi-analfabetismo) como sujeito-tema da matéria. Trata-se
de um mecanismo perverso (e que não está na ordem
do intencional) que leva o sujeito como a prova inquestionável
da existência do problema, da personificação
do problema e, portanto, consistindo nele mesmo a causa de seu problema.
A quarta
matéria intitula-se "Para especialista, programa é
inadequado" e começa com:
"'O
programa de classes de aceleração não
é um instrumento adequado para reduzir o índice
de semi-analfabetos dentro da escola'. A opinião
é da doutoranda em educação pela Unicamp
(...)."
|
Novamente
a personificação do problema: não se trata
do semi-nalfabetismo brasileiro, mas de um semi-analfabeto que deve
ser extinto. Reduzir o índice de semi-analfabetismo é
muito diferente de reduzir o índice de semi-analfabetos.
esse tipo de formulação só se dá quando
já há o trabalho ideológico dos sentidos que
associa o processo de não-alfabetização e sua
conseqüência - o estado de estar semi-analfabeto - ,
reduzindo o processo ao sujeito que o sofre, cristalizando no imaginário
de todos o problema do semi-analfabeto: sua existência. Trago
essa cristalização dentro de um texto formulado por
uma pesquisadora que, se confrontada com essa análise, diria,
muito provavelmente, que jamais teria tido a intenção
de colocar no sujeito qualificado como semi-analfabeto a responsabilidade
de seu estado-ser-existência. Como vemos o problema não
é das intencionalidades, mas do trabalho ideológico
de sentidos dominantes na formação social em que nos
inserimos.
A direção
argumentativa (não a do nível da formulação,
mas a do nível da constituição dos sentidos)
construída pela seqüenciação das matérias,
ou, em outras palavras, a textualização dos sentidos[3],
apresenta na evidência dos sentidos o problema em que o semi-analfabeto
se constitui ao existir, ao estar presente e evidente, além
de circunstanciar o problema, regionalizando-o. Ele pode ser discernível,
alcançável. Responsabiliza, pois, o semi-analfabeto
por expor sua existência.
A estatística,
que em nosso imaginário constrói generalizações
sobre a realidade de modo a conhecermos melhor sobre ela, efetiva
uma sectarização da sociedade, apontando para pontos
específicos, grupos específicos, agrupados, visualizados,
expostos pelas estatísticas, como responsáveis pelos
problemas que os números apresentados evidenciam. É
um jogo pérfido que, ao mesmo tempo em que através
dos números enuncia "aqui tem um problema", regionaliza
o problema. Nesse sentido, gostaria de trazer algumas considerações
que fiz em meu doutorado.
Tratando
das narratividades que percorrem a própria institucionalização
da escolarização, trabalhei com alguns documentos[4]
que fazem parte da historiografia do século XIX sobre a educação
brasileira, com o objetivo de compreender sentidos que nos constituem
hoje como sujeitos escolarizados. Sujeito, tal como venho compreendendo
em meu percurso analítico, que se constitui como sujeito
urbano escolarizado. Sujeito em uma sociedade que constrói
seus espaços de significação tocados de uma
só vez pelos sentidos do letramento e da urbanização,
em uma palavra : civilização.
Trabalhar
com sentidos produzidos nas narratividades sobre a educação
permite-nos acessar um vai-e-vem de sentidos que apontam para uma
discursividade hoje dos lugares construídos pelos sentidos
de escolarização. Espaço discursivo da escolarização
aqui compreendido como espaço de relações de
sentidos que investem nos sujeitos formas e gestos de interpretação
muito específicos que conformam suas relações
sociais. Relações sociais, pois, calcadas nesses sentidos
e formas de uma sociedade que se funda pelo efeito da escrita. Transitamos
por um imaginário fortemente marcado pela idéia de
que a urbanidade de uma língua se dá pela escrita,
que tem seu lugar legítimo de "aquisição"
remetido à escola.
Não
poderia deixar de citar aqui João Ribeiro, historiador, gramático
e jornalista da passagem do século XIX para o XX:
"A
questão de escrever com precisão e razoável
primor a língua que se fala, é uma dessas decências
elementares, dessas virtudes de urbanidade que não
podem ser indiferentes à arte literária"
(grifos meus) (João Ribeiro "A Língua Nacional"
in Cartas Devolvidas.p.125).
"Não
podemos conceber a existência de um bom escritor ou
mesmo de escritor aceitável se não se justifica
pela urbanidade da linguagem" (grifo meu) (João
Ribeiro "Da antigramática" in op.cit. p.
112).
|
Fatos
de linguagem que, no entrelaçamento com outros que veremos
a seguir, vão lançando e constituindo olhares para
os sujeitos que circulam pela nação brasileira, Remeto-me
agora a José Ricardo Pires de Almeida e seu livro L'Instruction
Publique au Brésil[5].
Para
provar que o Brasil é superior à Argentina
o autor apresenta estatísticas que mostram um número
maior de escolas no Brasil[6].
Sua escolha pela língua francesa e o argumento estatístico
da superioridade brasileira indicam sentidos de uma discursividade
dominante do período em que escreve Pires de Almeida (1889).
Período em que se dá a gramatização
da língua nacional, o que implica em processos de legitimação
de um dizer brasileiro, de um poder dizer[7].
Se a língua portuguesa (designação densa de
sentidos contraditórios) não se faz capaz, na discursividade
que dá lugar para o dizer de Pires de Almeida, de legitimar
um lugar para o Brasil (sua evidência), esse dizer é
legitimado em língua outra já autorizada. E essa legitimação
não está, nessa discursividade, se dando apenas na
língua legitimada do outro, ela se dá também
na desautorização, deslegitimação de
uma nação outra, também colonizada e pertencente
ao "Novo Mundo".
Vejamos
mais. Em outro argumento de superioridade, este referente à
relação número de alunos/número de habitantes
entre Brasil e Argentina, o autor propõe uma outra forma
de contabilizar a população brasileira :
"Il
faut se rapeller que ce chiffre de population (brasileira) comprend
les indigènes et les travailleurs ruraux de race africaine.
Il y a lieu aussi de prendre en considération l'immense
étendue du territoire, sur lequel vit, à l'intérieur
du pays, une population très disséminée,
relevant de paroisses dont le siège est à cinq,
six, huit kilomètres et plus de la demeure d'un grand
nombre d'habitants, -- paroisses de deux ou trois cents âmes,
avec une superficie supérieure à celle de bien
des diocèses d'Italie. Cette dissémination rend
impossible la création d'écoles à proximité
de toutes les familles.§ L'esprit de justice exigerait
que, pour comparer (os números brasileiros e os argentinos),
on réduisit de plus de moitié le chiffre de la
population de l'Empire, afin d'asseoir bien sûrement les
calculs de la statistique, car il n'y a peut-être pas
six millions d'habitants placés dans des conditions favorables
à l'établissement et la fréquentation des
écoles primaires publiques ou privées."[8](grifos
meus)[9]. |
Uma
nova forma de contabilização da população
do Império que nos aproxima dos sentidos imaginários
que constituem o ser brasileiro. Os dois argumentos que fundamentam
essa proposta nos mostram que os sentidos de pertencimento à
"população do Império" estabelecem
um recorte, através do escopo referencial produzido dentro
da própria enunciação[10].
Fazem parte dessa população aqueles que habitam onde
há condição de acesso físico à
escola, isto é, onde há proximidade geográfica
com os "centros em que se é possível" fazer
escolas. Independentemente das condições de estabelecimento
de uma escola, 'índios' e 'africanos' não devem ser
contabilizados. Distinguem-se, assim, duas dimensões que
condicionam o pertencimento a ser brasileiro: "origem"
e "lugar de habitação". Dimensões
que sem dúvida se intercruzam. Assim, para redimensionar
a verdadeira população (legítima) a
compor os quadros estatísticos da relação número
de aluno/número de habitantes, apresentam-se dois grandes
argumentos que sustentam a idéia de que há um número
exagerado (equivocado) referente à população
brasileira: 1) a existência dos indígenas e trabalhadores
rurais africanos que aumentam indevidamente as cifras da população
; 2) a dispersão de grande parte da população
no território brasileiro, sendo difícil para o Império
construir escolas e para os alunos irem até a escola. A primeira
causa do aumento indevido das cifras populacionais não apresenta
justificativa : ser índio ou africano justifica-se por si
mesmo; no segundo caso a situação de habitação,
estar disperso em territórios vastos ou longe dos centros
urbanos, impossibilita a construção de escolas o quê,
naturalmente, não deve estar contabilizado porque não
faz parte da competência do Império. Muitos sentidos
estão postos. Pertencer ao Império, à tutela
do Império, é poder ir à escola e poder ir
à escola faz do indivíduo uma cifra a ser contabilizada
na população do Império. E o que não
é contabilizado ? E o resto ? Este resto nos aponta
para sentidos que conformam o ser brasileiro em uma relação
constitutiva com a escolarização: pode ir à
escola quem é brasileiro e ser brasileiro é poder
ir à escola. Eu diria ainda que esses sentidos apontam para
uma relação fundante entre escolarização
e urbanidade. Está apto a ser escolarizado aquele que está
urbanizado. E volta a mesma uma palavra : civilizado.
Tomemos
a discursividade do relatório Estatistica da Instrucção[11]
da Diretoria Geral de Estatística, escrito em 1916.
"Apparecem essas publicações com a maior opportunidade
justamente no momento em que o Congresso Nacional cogita do
assumpto, afim de attenuar os males que o analphabetismo
acarreta á Republica Brazileira, prejudicando o
seu progresso e collocando-o em nivel inferiores á
situação de outros paizes do continente americano.
(...) Dizer a verdade não é um crime de leso-patriotismo.
É um dever não só dos governantes, mas
tambem dos que auxiliam os poderes publicos na obra bemfazeja
do engrandecimento da patria. A verdade, honesta e sinceramente
dita, só pode fazer bem. É o melhor incentivo
para procurarmos corrigir os defeitos que nos deprimem,
como collectividade no confronto internacional".(prefacio
: III)
"Na
monographia que serve de prefacio ao inquerito censitario
sobre o ensino, esta comprovada por algarismos irrefutaveis
a precaria situação da maioria dos habitantes
do Brazil quanto ao grao de instrucção, tornando-se
evidente a necessidade da interferencia dos poderes publicos
nacionaes no provimento do ensino elementar."(idem :p.
IV)
"Não há progresso intelligente e firme, em instrucção
publica, sem uma bôa estatistica escolar, que incuta
no espirito do povo o sentimento das suas necessidades e dos
sacrificios impreteriveis".(idem ibidem)
"Ao novo regimen ficara, assim, com todo o seo pêso,
a tarefa ingente de libertar o povo brasileiro do seo
endemico analphabetismo"(Introdução
: p. XLIII)
|
Práticas
discursivas que produzem um deslize de sentidos na referência
ao problema do analfabetismo enunciado. O problema passa
a ser o sujeito referido como analfabeto. Vejamos. O analfabetismo
acarreta males ao país, seus habitantes, os índices
evidenciam (são marcados por) a precariedade do grau de instrução
(não é o país que possui baixo índice
de alfabetização, são os habitantes que não
possuem instrução), habitantes que devem estar prontos
ao sacrifício pela pátria que é perder
seu endêmico analfabetismo. A responsabilidade pelo analfabetismo
desliza para o analfabeto.
Remetendo-me
à reflexão de Mariza Vieira (1998), retomo sua análise
sobre a igualdade jurídica instaurada pela constituição
de 1891 que declara pela primeira vez, no Brasil, todos são
iguais perante a lei. Para a autora a declaração
dessa igualdade jurídica, que as práticas sociais
desmentem, traz a "escrita" como um novo elemento
demarcador das diferenças que salvaguardam a manutenção
das desigualdades sociais de uma ordem burguesa, urbana e industrial
que vem a se contrapor a uma ordem oligárquica, rural e agrícola,
tida como desigual. Dois mundos : os bem letrados e os mal letrados,
em um confronto estratégico de um só mundo[12].
A escrita,
funcionando como esse divisor de águas, instaura para esse
sujeito, que estou chamando de urbano escolarizado[13],
um lugar de evidência para seu estado de barbárie quando
não conformado ao modelo canônico da escrita - a urbanidade
da língua, seu lugar moral. A escrita, então, não
só pratica a desigualdade como, em seu modo de funcionamento
moderno, produz o efeito de culpabilidade, deslocando da ordem do
social a produção dessas desigualdades, imputando-a
à ordem do individual. Resulta, enquanto efeito, que é
da responsabilidade do indivíduo o fato de que, apesar da
tentativa da construção da igualdade, não tenha
capacidade para ser igual : civilizado. Todos sentidos que, trombando-se,
confrontando-se, constituem hoje lugares para o sujeito e seu espaço
citadino tomados a partir do lugar fundamental ocupado pela estatística
e os efeitos de sua divulgação na conformação
de um imaginário sobre cidade, língua, escola e, decorrência
constitutiva, sobre o sujeito que vive esses espaços.
Claudia
Castellanos Pfeiffer é pesquisadora do Laboratório
de Estudos Urbanos da Unicamp, Doutora em Lingüística,
atua sobretudo em pesquisas sobre a relação constitutiva
dos processos de escolarização e urbanização.
Notas:
- Este artigo é resultado de uma síntese de minha
apresentação oral na II Jornada Internacional História
das Idéias Lingüísticas realizada em 12 de
julho de 2001 e de análises realizadas em meu doutorado,
Bem dizer e Retórica: um lugar para o sujeito. Tese defendida
no IEL, sob orientação da Profa Dra. Eni P. Orlandi,
em 2000.[voltar]
- Todas as rubricas em itálico e sublinhado são
minhas. Os negritos são do Jornal.[voltar]
- Orlandi, 2001.[voltar]
- Na Análise do Discurso um documento não reflete
ideologias, não oculta sentidos, um documento é
um monumento (Foucault), isto é, ele faz parte da construção
dos sentidos na história que nos toca sempre no entremeio
do mesmo e do diferente.[voltar]
- Almeida, J. R. P. de L'Instruction Publique au Brésil.
Leuzinger & Filhos, Rio de Janeiro, 1889. Este livro foi originalmente
escrito em francês, o que comentarei mais adiante. Sua tradução
foi realizada em 1989 e foi um lugar discursivo de análise
no trabalho de Silva (1998).[voltar]
- Segundo documentos oficiais brasileiros, diz o autor, em 1886
havia no Brasil 6.161 escolas primárias, sendo 5.151 públicas
e 1.010 particulares. E, somando escolas normais, colégios,
liceus, escolas técnicas, faculdades, poder-se-ia contar
6.224 estabelecimentos (sem fazer distinção entre
públicos e particulares).[voltar]
- Ver sobre essa questão os trabalhos desenvolvidos no
interior do projeto História das Idéias Lingüísticas
(Capes-Cofecub), coordenado por Auroux (Paris VII) e Orlandi (Unicamp).[voltar]
- "É preciso que nos lembremos que essa cifra de população
compreende os índios e os trabalhadores rurais de raça
africana. É preciso ainda levar em conta a imensa extensão
do território, sobre o qual vive, no interior do país,
uma população muito disseminada, proveniente de
paróquias cuja sede se encontra a cinco, seis, oito quilómetros
ou mais de onde residem um grande número de habitantes,
-- paróquias de duzentas ou trezentas almas, com uma superfície
superior àquela de muitas diocèses da Itália.
essa disseminação torna impossível a criação
de escolas próximas a todas as famílias. O espírito
de justiça exigiria que, para comparar, reduzíssemos
em mais da metade a cifra da população do Império,
a fim de assentar, com segurança, os cálculos da
estatística, porque talvez não haja seis mil habitantes
assentados em condições favoráveis ao estabelecimento
e à frequentação de escolas primárias
públicas ou privadas".[voltar]
- De agora em diante os grifos são de minha autoria, quando
for do autor citado, farei saber o leitor.[voltar]
- Aqui trabalho enunciação tal como Guimarães
(1993:28) a define enquanto «um acontecimento de linguagem,
perpassado pelo interdiscurso, que se dá como espaço
de memória no acontecimento. É um acontecimento
que se dá porque a língua funciona ao ser afetada
pelo interdiscurso".[voltar]
- Diretoria Geral de Estatistica "Estatistica da Instrucção",
I parte, em Estatistica Escolar, vol. I, Rio de Janeiro, 1916.[voltar]
- Pêcheux (1990 :10/11), analisando a revolução
burguesa, coloca que sua particularidade consistiu na tendência
de "absorver as diferenças rompendo as barreiras".
Há uma dupla universalização : "das
relações jurídicas e da circulação
do dinheiro, das mercadorias e dos trabalhadores livres".
essa universalização que instaura todos e cada um
como cidadãos chama pela responsabilidade individual. É
o sujeito de direito que Haroche (1975) define como conformado
por "uma liberdade sem limites e uma submissão sem
falhas". Com a revolução burguesa, completa
Pêcheux (op.cit.), apaga-se o "choque de dois mundos"
para resignificar-se em um "confronto estratégico
em um só mundo".[voltar]
- O sujeito que tendo ou não passado pela escola, por se
encontrar em uma sociedade escolarizada, precisa se submeter ao
processo de legitimação de seu dizer que passa pelos
sentidos da escolarização.[voltar]
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