Editorial:

As cidades e os muros
Carlos Vogt

Reportagens:
Prós e contras da revitalização urbana
Enfim o Estatuto da Cidade
Programa Habitat procura desenvolver a qualidade de vida nas cidades
Ocupações revelam déficit habitacional
Fórum Social propõe uma outra cidade possível
Novas metrópoles, velhos problemas
Conflitos entre centro e periferia
Qualidade das águas é cada vez pior
Lixo é problema ambiental com agravantes sociais
Transporte em São Paulo: conflitos e soluções
Poluição sonora piora ambiente urbano
Preservação ambiental: destino alternativo para o litoral sul de São Paulo?
Cidade tenta unir tecnologia com inclusão social
Educação para uma nova cidade
Brasília contrastes de uma cidade planejada
Vilas significaram distância entre patrões e operários
Artigos:
Dimensões da tragédia urbana
Ermínia Maricato

Aprovação do Estatuto da Cidade
Geraldo Moura

O passado nas cidades do futuro
Cristina Meneguello
"As cidades nos países subdesenvolvidos" em um mundo globalizado
Tatiana Schor
Cidades e seus fragmentos
Rogério Lima
Cidade, língua, escolae a violência dos sentidos
Cláudia Pfeiffer
A cidade como objeto de estudo
Maria Josefina Gabriel Sant'Anna
Poema:
Manual do novo peregrino
Carlos Vogt
 
Bibliografia
Créditos

 

 

Cidade, Língua, Escola e a violência dos sentidos[1]

Claudia Castellanos Pfeiffer

Trago para esse espaço de reflexão uma breve análise do funcionamento das estatísticas no que diz respeito à construção de imaginários sobre língua, sujeito escolar e espaço urbano. Relação que, de modo tangencial, toquei em minha tese de doutorado. Essa vontade se fez maior diante das matérias com que me deparei no jornal de Domingo da Folha de São Paulo no Caderno 'Folha Campinas' do dia 24 de junho de 2001. São seis matérias no total, todas assinadas pelo mesmo jornalista, ocupando a primeira, a segunda e a terceira páginas do Caderno 'Folha Campinas'. E eu diria ainda, remetendo às discussões de Orlandi (2001) sobre o assunto, são versões do jornalista que vão se apresentando a cada matéria.

Em primeira página lemos a chamada "Educação: Pelo menos 235 estudantes que cursam a 5ª série de escolas estaduais de Jundiaí têm dificuldade de leitura" e, em letras garrafais o título da matéria "Escolas abrigam[2] alunos que não sabem ler". Já no corpo da primeira matéria temos:

"Pelo menos 2.800 (4,3%) dos 65.406 estudantes da 5ª à 8ª séries da rede pública de ensino das regiões de Campinas e de Jundiaí estão com escolaridade atrasada ou não sabem ler. A informação consta de levantamento obtido pela Folha na semana passada nas Diretorias Regionais de Ensino nas duas cidades. (§)As estatísticas do Estado revelam um panorama mais preocupante na 8cidade de Jundiaí, onde foi detectado que 235 (4%) dos 5.800 alunos que freqüentam a 5ª série da rede fundamental de ensino possuem dificuldade em leitura, podendo ser considerados semi-analfabetos. (§) São considerados semi-analfabetos os alunos que terminam os primeiros quatro anos do ensino fundamental sem conseguir acompanhar os estudos, possuem dificuldades de interpretação, aprendizagem, leitura e escrita e, por isso, precisam de acompanhamento especial. (§) A região coberta pela Diretoria Regional de Jundiaí também levantou que 492 alunos, ou 2,7% dos 17.987 estudantes de 5ª a 6ª séries da cidade, de Campo Limpo Paulista e Várzea Paulista têm dificuldades para ler e escrever. (§) Essas crianças freqüentaram o ciclo de alfabetização (da 1ª à 4ª séries) na rede pública municipal e foram considerados com alfabetização defasada pelo Estado, que as avaliou e as reteve por um ano para um programa especial de educação. (§) Segundo o secretário da Educação de Jundiaí, (...), o município está investindo na capacitação de professores para reduzir o índice de alunos que saem das suas escolas sem uma base de alfabetização. (§) As duas diretorias de ensino da região de Campinas, que também incluem escolas de Valinhos e Vinhedo, não forneceram números de semi-analfabetos da rede, mas revelaram que, dos 47,4 mil alunos que estudam entre as 5ª e 8ª séries do ensino fundamental, 2.341 estudantes (4,9%) estão com escolaridade atrasada. (§) Esses alunos precisam ter seus estudos atualizados pelo programa de classes de aceleração, criado pelo Estado após a determinação da não-retenção de alunos por repetência, em vigor desde 1996.(§) As crianças que estudam nas classes de aceleração da 5ª série nessa região são 1569. Eles representam 3,3% do total de alunos do ensino fundamental administrado pelas Diretorias. (§) Segundo doutoranda em educação pela Unicamp (...), os alunos que chegam com defasagem de ensino ao ciclo da 5ª à 8ª série, provavelmente sairão das escolas sem uma educação adequada. (§) "A Alfabetização hoje é vista como um processo, e se faz entre a 1ª e a 4ª série, não no outro ciclo"(...)."

Assim termina essa matéria que introduz e dá mote para as outras cinco que compõem o tema central do Caderno daquele Domingo sobre a Educação. Das outras matérias tomarei breves passagens e apenas da segunda, terceira e quarta matéria. Mas antes de partir para essas matérias, gostaria de me deter em alguns funcionamentos discursivos de que posso falar a partir da primeira matéria citada.

Chamo atenção para uma presença que vai se construindo no decorrer da matéria de uma imagem mais geral e já cristalizada do aluno como aquele que tem dificuldades de aprendizagem e do professor como incapaz (precisa de cursos de capacitação). No embate com essas imagens, vemos um primeiro lugar sendo apontado para a responsabilidade pelos índices apresentados: a rede municipal de ensino, que alimenta em sua maioria, o primeiro ciclo do ensino fundamental; vêm dela, portanto, os alunos das 5ªs séries considerados semi-analfabetos. E é exatamente nesse jogo de atribuição da responsabilidade a setores da sociedade (seja a rede municipal, seja o professor, seja o aluno), que se estabiliza uma imagem cristalizada: do aluno enquanto semi-analfabeto. Finalmente, podemos dizer que essa cristalização se fecha discursivamente, com a enunciação vinda do lugar do especialista, ao afirmar que, sendo a alfabetização um processo, restrito ao segundo ciclo do ensino (e evidencio a contradição), quem não se alfabetiza no primeiro ciclo, mantém-se semi-analfabeto. (Não entrarei em discussões teóricas do que se está sendo dito, mas dos efeitos imaginários daquilo que se diz).

A segunda matéria se intitula "Dirigentes dizem que migrações geram as distorções no ensino" e se inicia com:

"Dirigentes regionais de educação de Campinas e Jundiaí dizem acreditar que a migração de pessoas de regiões mais pobres do país para o interior de São Paulo contribui para as chamadas 'distorções'de ensino, que permitem a existência de semi-analfabetos na 5ª série da rede estadual. (...)(§) Segundo o dirigente da região oeste de Campinas, (...), a defasagem de alunos na região é provocada pela migração e também pela experiência individual de cada aluno."

Quero agora chamar atenção para as formas materiais: 'abrigam' (no título da primeira matéria, linha 2) e 'permitem a existência' (linha 4 da segunda matéria). Nelas vou percebendo um jogo parafrástico que ecoa sentidos no processo de personificação do sujeito escolar como o problema a ser extinto. O semi-analfabetismo, ou o sistema educacional que permite a construção do semi-analfabetismo, deixa de ser o objeto. Trata-se do semi-analfabeto. Há nesse jogo parafrástico, eu diria, uma inversão perigosa que coloca no sujeito a personificação do problema, descoisificando o problema. O problema passa a ser o sujeito. Junto a esse funcionamento descrito, junta-se outro que é o da identificação das razões pelo alto índice de semi-analfabetos. essa defendida distorção acaba por regionalizar o problema em torno de pessoas específicas que podem ser apontadas como as responsáveis pelo semi-analfabetismo. Assim, personifica-se o problema para que, depois, se evidencie as "pessoas" responsáveis que dão corpo a essa personificação, preenchendo esse lugar que não deveria existir. Uma presença não bem-vinda, mas abrigada (proteção contra quem?). O processo de preenchimento dessa personificação do semi-analfabetismo também se dá através da qualificação desse sujeito como aquele que deve receber atendimento especial, ele preenche um lugar do objeto das políticas públicas do acompanhamento especial. Ser semi-analfabeto, jogo parafrástico com 'não conseguir acompanhar os estudos', 'ter dificuldade de interpretar, de aprender, de ler e de escrever' (linhas 12 e 13 da 1ª matéria), mostra-se ser um grupo à parte que, através das estatísticas, não só ganha evidência enquanto grupo à parte (deve ter acompanhamento especial), como também ganha visibilidade em suas origens: são migrantes de regiões pobres e/ou experienciadores de uma vivência muito aquém da necessária para se estar condizentemente na escola. São indesejáveis extrapolando os limites antes tão bem traçados...

A terceira matéria intitulada "Jundiaí investe na capacitação de professor" começa dizendo:

"O secretário da educação de Jundiaí, (...), informou que a Prefeitura está preocupada com os 235 alunos semi-analfabetos que saíram da 4ª série das escolas municipais para as estaduais, este ano, e que vai investir nos professores para "zerar" esse número(elipse= esse número de semi-analfabetos) (...)".

De um lado, textualiza-se o lugar da administração pública como a responsável por apontar para as causas do problema, repassando a responsabilidade aos professores: incapazes de ensinar; de outro lado vai-se mais uma vez na direção de cristalizar a imagem do semi-analfabeto. Não se trata do analfabetismo, do semi-analfabetismo, de problemas com o ensino, com a educação, mas do problema do sujeito semi-analfabeto, esse que insiste em existir. O fato da presença desse "sujeito" do problema não pode ser reduzido a uma escolha de estilo do jornalista que "optaria" por discutir a questão usando da pessoa que sofre o problema e não do problema-objeto (o semi-analfabetismo) como sujeito-tema da matéria. Trata-se de um mecanismo perverso (e que não está na ordem do intencional) que leva o sujeito como a prova inquestionável da existência do problema, da personificação do problema e, portanto, consistindo nele mesmo a causa de seu problema.

A quarta matéria intitula-se "Para especialista, programa é inadequado" e começa com:

"'O programa de classes de aceleração não é um instrumento adequado para reduzir o índice de semi-analfabetos dentro da escola'. A opinião é da doutoranda em educação pela Unicamp (...)."

Novamente a personificação do problema: não se trata do semi-nalfabetismo brasileiro, mas de um semi-analfabeto que deve ser extinto. Reduzir o índice de semi-analfabetismo é muito diferente de reduzir o índice de semi-analfabetos. esse tipo de formulação só se dá quando já há o trabalho ideológico dos sentidos que associa o processo de não-alfabetização e sua conseqüência - o estado de estar semi-analfabeto - , reduzindo o processo ao sujeito que o sofre, cristalizando no imaginário de todos o problema do semi-analfabeto: sua existência. Trago essa cristalização dentro de um texto formulado por uma pesquisadora que, se confrontada com essa análise, diria, muito provavelmente, que jamais teria tido a intenção de colocar no sujeito qualificado como semi-analfabeto a responsabilidade de seu estado-ser-existência. Como vemos o problema não é das intencionalidades, mas do trabalho ideológico de sentidos dominantes na formação social em que nos inserimos.

A direção argumentativa (não a do nível da formulação, mas a do nível da constituição dos sentidos) construída pela seqüenciação das matérias, ou, em outras palavras, a textualização dos sentidos[3], apresenta na evidência dos sentidos o problema em que o semi-analfabeto se constitui ao existir, ao estar presente e evidente, além de circunstanciar o problema, regionalizando-o. Ele pode ser discernível, alcançável. Responsabiliza, pois, o semi-analfabeto por expor sua existência.

A estatística, que em nosso imaginário constrói generalizações sobre a realidade de modo a conhecermos melhor sobre ela, efetiva uma sectarização da sociedade, apontando para pontos específicos, grupos específicos, agrupados, visualizados, expostos pelas estatísticas, como responsáveis pelos problemas que os números apresentados evidenciam. É um jogo pérfido que, ao mesmo tempo em que através dos números enuncia "aqui tem um problema", regionaliza o problema. Nesse sentido, gostaria de trazer algumas considerações que fiz em meu doutorado.

Tratando das narratividades que percorrem a própria institucionalização da escolarização, trabalhei com alguns documentos[4] que fazem parte da historiografia do século XIX sobre a educação brasileira, com o objetivo de compreender sentidos que nos constituem hoje como sujeitos escolarizados. Sujeito, tal como venho compreendendo em meu percurso analítico, que se constitui como sujeito urbano escolarizado. Sujeito em uma sociedade que constrói seus espaços de significação tocados de uma só vez pelos sentidos do letramento e da urbanização, em uma palavra : civilização.

Trabalhar com sentidos produzidos nas narratividades sobre a educação permite-nos acessar um vai-e-vem de sentidos que apontam para uma discursividade hoje dos lugares construídos pelos sentidos de escolarização. Espaço discursivo da escolarização aqui compreendido como espaço de relações de sentidos que investem nos sujeitos formas e gestos de interpretação muito específicos que conformam suas relações sociais. Relações sociais, pois, calcadas nesses sentidos e formas de uma sociedade que se funda pelo efeito da escrita. Transitamos por um imaginário fortemente marcado pela idéia de que a urbanidade de uma língua se dá pela escrita, que tem seu lugar legítimo de "aquisição" remetido à escola.

Não poderia deixar de citar aqui João Ribeiro, historiador, gramático e jornalista da passagem do século XIX para o XX:

  • "A questão de escrever com precisão e razoável primor a língua que se fala, é uma dessas decências elementares, dessas virtudes de urbanidade que não podem ser indiferentes à arte literária" (grifos meus) (João Ribeiro "A Língua Nacional" in Cartas Devolvidas.p.125).
  • "Não podemos conceber a existência de um bom escritor ou mesmo de escritor aceitável se não se justifica pela urbanidade da linguagem" (grifo meu) (João Ribeiro "Da antigramática" in op.cit. p. 112).
  • Fatos de linguagem que, no entrelaçamento com outros que veremos a seguir, vão lançando e constituindo olhares para os sujeitos que circulam pela nação brasileira, Remeto-me agora a José Ricardo Pires de Almeida e seu livro L'Instruction Publique au Brésil[5].

    Para provar que o Brasil é superior à Argentina o autor apresenta estatísticas que mostram um número maior de escolas no Brasil[6]. Sua escolha pela língua francesa e o argumento estatístico da superioridade brasileira indicam sentidos de uma discursividade dominante do período em que escreve Pires de Almeida (1889). Período em que se dá a gramatização da língua nacional, o que implica em processos de legitimação de um dizer brasileiro, de um poder dizer[7]. Se a língua portuguesa (designação densa de sentidos contraditórios) não se faz capaz, na discursividade que dá lugar para o dizer de Pires de Almeida, de legitimar um lugar para o Brasil (sua evidência), esse dizer é legitimado em língua outra já autorizada. E essa legitimação não está, nessa discursividade, se dando apenas na língua legitimada do outro, ela se dá também na desautorização, deslegitimação de uma nação outra, também colonizada e pertencente ao "Novo Mundo".

    Vejamos mais. Em outro argumento de superioridade, este referente à relação número de alunos/número de habitantes entre Brasil e Argentina, o autor propõe uma outra forma de contabilizar a população brasileira :

    "Il faut se rapeller que ce chiffre de population (brasileira) comprend les indigènes et les travailleurs ruraux de race africaine. Il y a lieu aussi de prendre en considération l'immense étendue du territoire, sur lequel vit, à l'intérieur du pays, une population très disséminée, relevant de paroisses dont le siège est à cinq, six, huit kilomètres et plus de la demeure d'un grand nombre d'habitants, -- paroisses de deux ou trois cents âmes, avec une superficie supérieure à celle de bien des diocèses d'Italie. Cette dissémination rend impossible la création d'écoles à proximité de toutes les familles.§ L'esprit de justice exigerait que, pour comparer (os números brasileiros e os argentinos), on réduisit de plus de moitié le chiffre de la population de l'Empire, afin d'asseoir bien sûrement les calculs de la statistique, car il n'y a peut-être pas six millions d'habitants placés dans des conditions favorables à l'établissement et la fréquentation des écoles primaires publiques ou privées."[8](grifos meus)[9].

    Uma nova forma de contabilização da população do Império que nos aproxima dos sentidos imaginários que constituem o ser brasileiro. Os dois argumentos que fundamentam essa proposta nos mostram que os sentidos de pertencimento à "população do Império" estabelecem um recorte, através do escopo referencial produzido dentro da própria enunciação[10]. Fazem parte dessa população aqueles que habitam onde há condição de acesso físico à escola, isto é, onde há proximidade geográfica com os "centros em que se é possível" fazer escolas. Independentemente das condições de estabelecimento de uma escola, 'índios' e 'africanos' não devem ser contabilizados. Distinguem-se, assim, duas dimensões que condicionam o pertencimento a ser brasileiro: "origem" e "lugar de habitação". Dimensões que sem dúvida se intercruzam. Assim, para redimensionar a verdadeira população (legítima) a compor os quadros estatísticos da relação número de aluno/número de habitantes, apresentam-se dois grandes argumentos que sustentam a idéia de que há um número exagerado (equivocado) referente à população brasileira: 1) a existência dos indígenas e trabalhadores rurais africanos que aumentam indevidamente as cifras da população ; 2) a dispersão de grande parte da população no território brasileiro, sendo difícil para o Império construir escolas e para os alunos irem até a escola. A primeira causa do aumento indevido das cifras populacionais não apresenta justificativa : ser índio ou africano justifica-se por si mesmo; no segundo caso a situação de habitação, estar disperso em territórios vastos ou longe dos centros urbanos, impossibilita a construção de escolas o quê, naturalmente, não deve estar contabilizado porque não faz parte da competência do Império. Muitos sentidos estão postos. Pertencer ao Império, à tutela do Império, é poder ir à escola e poder ir à escola faz do indivíduo uma cifra a ser contabilizada na população do Império. E o que não é contabilizado ? E o resto ? Este resto nos aponta para sentidos que conformam o ser brasileiro em uma relação constitutiva com a escolarização: pode ir à escola quem é brasileiro e ser brasileiro é poder ir à escola. Eu diria ainda que esses sentidos apontam para uma relação fundante entre escolarização e urbanidade. Está apto a ser escolarizado aquele que está urbanizado. E volta a mesma uma palavra : civilizado.

    Tomemos a discursividade do relatório Estatistica da Instrucção[11] da Diretoria Geral de Estatística, escrito em 1916.

    "Apparecem essas publicações com a maior opportunidade justamente no momento em que o Congresso Nacional cogita do assumpto, afim de attenuar os males que o analphabetismo acarreta á Republica Brazileira, prejudicando o seu progresso e collocando-o em nivel inferiores á situação de outros paizes do continente americano. (...) Dizer a verdade não é um crime de leso-patriotismo. É um dever não só dos governantes, mas tambem dos que auxiliam os poderes publicos na obra bemfazeja do engrandecimento da patria. A verdade, honesta e sinceramente dita, só pode fazer bem. É o melhor incentivo para procurarmos corrigir os defeitos que nos deprimem, como collectividade no confronto internacional".(prefacio : III)

    "Na monographia que serve de prefacio ao inquerito censitario sobre o ensino, esta comprovada por algarismos irrefutaveis a precaria situação da maioria dos habitantes do Brazil quanto ao grao de instrucção, tornando-se evidente a necessidade da interferencia dos poderes publicos nacionaes no provimento do ensino elementar."(idem :p. IV)

    "Não há progresso intelligente e firme, em instrucção publica, sem uma bôa estatistica escolar, que incuta no espirito do povo o sentimento das suas necessidades e dos sacrificios impreteriveis".(idem ibidem)

    "Ao novo regimen ficara, assim, com todo o seo pêso, a tarefa ingente de libertar o povo brasileiro do seo endemico analphabetismo"(Introdução : p. XLIII)

    Práticas discursivas que produzem um deslize de sentidos na referência ao problema do analfabetismo enunciado. O problema passa a ser o sujeito referido como analfabeto. Vejamos. O analfabetismo acarreta males ao país, seus habitantes, os índices evidenciam (são marcados por) a precariedade do grau de instrução (não é o país que possui baixo índice de alfabetização, são os habitantes que não possuem instrução), habitantes que devem estar prontos ao sacrifício pela pátria que é perder seu endêmico analfabetismo. A responsabilidade pelo analfabetismo desliza para o analfabeto.

    Remetendo-me à reflexão de Mariza Vieira (1998), retomo sua análise sobre a igualdade jurídica instaurada pela constituição de 1891 que declara pela primeira vez, no Brasil, todos são iguais perante a lei. Para a autora a declaração dessa igualdade jurídica, que as práticas sociais desmentem, traz a "escrita" como um novo elemento demarcador das diferenças que salvaguardam a manutenção das desigualdades sociais de uma ordem burguesa, urbana e industrial que vem a se contrapor a uma ordem oligárquica, rural e agrícola, tida como desigual. Dois mundos : os bem letrados e os mal letrados, em um confronto estratégico de um só mundo[12].

    A escrita, funcionando como esse divisor de águas, instaura para esse sujeito, que estou chamando de urbano escolarizado[13], um lugar de evidência para seu estado de barbárie quando não conformado ao modelo canônico da escrita - a urbanidade da língua, seu lugar moral. A escrita, então, não só pratica a desigualdade como, em seu modo de funcionamento moderno, produz o efeito de culpabilidade, deslocando da ordem do social a produção dessas desigualdades, imputando-a à ordem do individual. Resulta, enquanto efeito, que é da responsabilidade do indivíduo o fato de que, apesar da tentativa da construção da igualdade, não tenha capacidade para ser igual : civilizado. Todos sentidos que, trombando-se, confrontando-se, constituem hoje lugares para o sujeito e seu espaço citadino tomados a partir do lugar fundamental ocupado pela estatística e os efeitos de sua divulgação na conformação de um imaginário sobre cidade, língua, escola e, decorrência constitutiva, sobre o sujeito que vive esses espaços.

    Claudia Castellanos Pfeiffer é pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos da Unicamp, Doutora em Lingüística, atua sobretudo em pesquisas sobre a relação constitutiva dos processos de escolarização e urbanização.

    Notas:

    1. Este artigo é resultado de uma síntese de minha apresentação oral na II Jornada Internacional História das Idéias Lingüísticas realizada em 12 de julho de 2001 e de análises realizadas em meu doutorado, Bem dizer e Retórica: um lugar para o sujeito. Tese defendida no IEL, sob orientação da Profa Dra. Eni P. Orlandi, em 2000.[voltar]
    2. Todas as rubricas em itálico e sublinhado são minhas. Os negritos são do Jornal.[voltar]
    3. Orlandi, 2001.[voltar]
    4. Na Análise do Discurso um documento não reflete ideologias, não oculta sentidos, um documento é um monumento (Foucault), isto é, ele faz parte da construção dos sentidos na história que nos toca sempre no entremeio do mesmo e do diferente.[voltar]
    5. Almeida, J. R. P. de L'Instruction Publique au Brésil. Leuzinger & Filhos, Rio de Janeiro, 1889. Este livro foi originalmente escrito em francês, o que comentarei mais adiante. Sua tradução foi realizada em 1989 e foi um lugar discursivo de análise no trabalho de Silva (1998).[voltar]
    6. Segundo documentos oficiais brasileiros, diz o autor, em 1886 havia no Brasil 6.161 escolas primárias, sendo 5.151 públicas e 1.010 particulares. E, somando escolas normais, colégios, liceus, escolas técnicas, faculdades, poder-se-ia contar 6.224 estabelecimentos (sem fazer distinção entre públicos e particulares).[voltar]
    7. Ver sobre essa questão os trabalhos desenvolvidos no interior do projeto História das Idéias Lingüísticas (Capes-Cofecub), coordenado por Auroux (Paris VII) e Orlandi (Unicamp).[voltar]
    8. "É preciso que nos lembremos que essa cifra de população compreende os índios e os trabalhadores rurais de raça africana. É preciso ainda levar em conta a imensa extensão do território, sobre o qual vive, no interior do país, uma população muito disseminada, proveniente de paróquias cuja sede se encontra a cinco, seis, oito quilómetros ou mais de onde residem um grande número de habitantes, -- paróquias de duzentas ou trezentas almas, com uma superfície superior àquela de muitas diocèses da Itália. essa disseminação torna impossível a criação de escolas próximas a todas as famílias. O espírito de justiça exigiria que, para comparar, reduzíssemos em mais da metade a cifra da população do Império, a fim de assentar, com segurança, os cálculos da estatística, porque talvez não haja seis mil habitantes assentados em condições favoráveis ao estabelecimento e à frequentação de escolas primárias públicas ou privadas".[voltar]
    9. De agora em diante os grifos são de minha autoria, quando for do autor citado, farei saber o leitor.[voltar]
    10. Aqui trabalho enunciação tal como Guimarães (1993:28) a define enquanto «um acontecimento de linguagem, perpassado pelo interdiscurso, que se dá como espaço de memória no acontecimento. É um acontecimento que se dá porque a língua funciona ao ser afetada pelo interdiscurso".[voltar]
    11. Diretoria Geral de Estatistica "Estatistica da Instrucção", I parte, em Estatistica Escolar, vol. I, Rio de Janeiro, 1916.[voltar]
    12. Pêcheux (1990 :10/11), analisando a revolução burguesa, coloca que sua particularidade consistiu na tendência de "absorver as diferenças rompendo as barreiras". Há uma dupla universalização : "das relações jurídicas e da circulação do dinheiro, das mercadorias e dos trabalhadores livres". essa universalização que instaura todos e cada um como cidadãos chama pela responsabilidade individual. É o sujeito de direito que Haroche (1975) define como conformado por "uma liberdade sem limites e uma submissão sem falhas". Com a revolução burguesa, completa Pêcheux (op.cit.), apaga-se o "choque de dois mundos" para resignificar-se em um "confronto estratégico em um só mundo".[voltar]
    13. O sujeito que tendo ou não passado pela escola, por se encontrar em uma sociedade escolarizada, precisa se submeter ao processo de legitimação de seu dizer que passa pelos sentidos da escolarização.[voltar]
     

    Atualizado em 10/03/2002

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