Enfim
o Estatuto da Cidade
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"Não
há senhores, corpo sem células. Não há
estado sem municipalidades. Não pode existir matéria
vivente sem vida orgânica. Não se pode imaginar
existência de nação, sem existência
de estado, sem vida municipal."
Rui
Barbosa - "habeas corpus" em defesa da autonomia
dos municípios brasileiros.
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A
insegurança e o desconforto criados pelos conflitos ambientais
urbanos, faz surgir o clamor consensual pela restauração
da qualidade de vida nas cidades, através da adoção
de políticas públicas que levem a profundas transformações
sociais.
Basicamente,
todos os municípios brasileiros têm seu território
ocupado em desacordo com a legislação urbanística.
Não existe uma consciência coletiva ambientalista que
se preocupe com as ocupações desordenadas que geram
a deterioração do meio ambiente. Assim, loteamentos
clandestinos ou em área de proteção aos mananciais,
favelas, condomínios em áreas rurais e invasões
de terras são uma constante no cenário surreal da
ordem legal urbana. Notadamente, é muito grande a defasagem
entre o modelo adotado pela legislação urbanística
e a vida da cidade real. A tônica do uso do solo e das construções
nas cidades, é a irregularidade.
Por
isso, foi tão festejada a aprovação da Lei
10.257 de 10 de julho de 2001, denominada de "Estatuto da Cidade"
ansiosamente aguardada desde a Constituição de 1988,
e que inovou ao inserir, pela primeira vez em nossa história,
um capítulo sobre reforma urbana no texto constitucional.
Só que algumas destas disposições precisavam
ser regulamentas para entrar em vigor e, somente agora, decorridos
treze anos, é que isso aconteceu.
O art.
2º da lei, dispõe que "a política urbana
tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes
gerais: I - garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido
como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento
ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços
públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras
gerações."
Assim,
pela dimensão de suas disposições norteadoras,
o Estatuto da Cidade adquiriu o status de ser o novo marco institucional
na trajetória da tão apregoada reforma urbana, porque
se preocupa com ''o pleno desenvolvimento das funções
sociais das cidades'' e ''garante o direito a cidades sustentáveis''.
Em vários artigos e parágrafos esse direito é
especificado, se propondo a ordenar e controlar o uso do solo de
forma a evitar a deterioração das áreas urbanizadas,
a poluição e a degradação ambiental.
Para a professora de direito urbanístico da USP, Odete Medauar,
" o Estatuto da Cidade representa, sem dúvida, um passo
marcante em matéria urbanística. Espera-se que ele
seja divulgado, estudado, discutido e sobretudo aplicado pelos municípios,
o que permitirá que se iniciem, o mais breve possível,
as soluções para o caos urbano e suas graves conseqüências.
Certamente essa lei despertará o interesse para o conhecimento
de seus preceitos e, em decorrência, para os problemas subjacentes."
Até
mesmo o jornalista econômico, Joelmir Beting, do Estado de
S. Paulo, dedicou espaço ao tema, ao comentar em sua coluna
que "Finalmente o parto da montanha deu-se na semana passada,
com o novo diploma, a autoridade municipal ganha formato e conteúdo
para intervir na estrutura e na dinâmica da cidade - cuja
gestão constitui, doravante, o maior desafio técnico
e político do século XXI." Entre os pontos positivos
ressaltados - por ele e pela urbanista Raquel Rolnik - estão
a inclusão de um novo vetor tributário como o IPTU
progressivo para ser aplicado aos terrenos urbanos ociosos e aos
loteamentos grilados na periferia.
A vida
nas cidades continua a ser um desafio neste século recém
iniciado, acirrando cada vez mais os conflitantes interesses em
jogo e tendo como pano de fundo uma urbanização perversa
que agrava diuturnamente o quadro de exclusão social, tornando
mais evidente a marginalização de grandes segmentos
populacionais.
Foi
no século passado que o país mais se urbanizou. A
evolução do crescimento da população
urbana, conforme a tabela abaixo, é bastante significativa.
Atualmente, segundo estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), somos 169.590.693 de brasileiros e
chegamos ao ano 2000, com 81,2% da população brasileira
morando em áreas urbanas e 18,8% vivendo em áreas
rurais. Ao contrário do que acontecia na década de
50 quando 63,8% viviam no campo e 36,2% nas cidades.
CRESCIMENTO
DA POPULAÇÃO URBANA NO BRASIL
ano
|
população
|
percentual
|
nº
de municípios
|
2000
|
137.755.550
|
81,2
|
5.507
|
1990
|
110.875.826
|
75,5
|
4.491
|
1980
|
82.013.375
|
67,7
|
3.991
|
1970
|
52.904.744
|
56,0
|
3.952
|
1960
|
32.004.871
|
45,1
|
2.766
|
1950
|
18.782.891
|
36,2
|
1.889
|
Fonte:
Censos Demográficos IBGE
Veja
também - Mapa ilustrativo com o grau
de urbanização do Brasil segundo o IBGE
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A batalha
pelo Estatuto da Cidade foi longa e difícil, com vários
anos de tramitação legislativa. Foi o então
senador, já falecido, Pompeu de Sousa (PMDB - DF), quem elaborou
e propôs originalmente, em 29 de junho de 1989, o Projeto
de lei 181, aprovado no ano seguinte e enviado à Câmara
dos Deputados, onde foi amplamente discutido por quatro comissões:
de Economia, Indústria e Comércio; de Defesa do Consumidor,
Meio Ambiente e Minorias; de Desenvolvimento Urbano e Interior e
de Constituição e Justiça e de Redação.
Decorridos onze anos, retornou ao exame da Comissão de Assuntos
Sociais do Senado, que acatou parecer favorável do relator
Mauro Miranda (PMDB-GO) ao substitutivo da Câmara.
Após
muitos embates em que se explicitaram os conflitos entre inúmeros
interesses em jogo sobre o futuro de nossas cidades, finalmente
foi aprovado por unanimidade pelo senado federal. Fernando Henrique
Cardoso, aprovou a lei que estabelece o Estatuto da Cidade, porém,
efetuou alguns vetos, alguns deles sugeridos pelo Sindicato das
Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração
de Imóveis Comerciais e Residenciais de São Paulo
(Secovi-SP) em conjunto com a Câmara Brasileira da Indústria
da Construção (CBIC). O veto à seção
VI do Estatuto da Cidade foi considerado pela entidade como o mais
relevante. Na avaliação do Sindicato, os artigos vetados
por FHC foram pertinentes. Se mantidos, poderiam induzir à
subjetividade de interpretação, ferindo até
mesmo o direito de propriedade, além de outros aspectos previstos
na Constituição Federal.
Os
artigos 15 a 20 (integrantes daquela seção), que foram
suprimidos do projeto, assegurariam o direito à concessão
de uso especial para fins de moradia. A meta seria a regularização
de cortiços e outras formas de ocupação desses
imóveis. Essa proposta foi defendida com firmeza pelo Fórum
Nacional de Reforma Urbana, nos debates com juristas e nas reuniões
e audiências públicas realizadas no senado. O objetivo
era tentar diminuir as resistências políticas de técnicos,
especialistas e agentes públicos à adoção
da concessão de uso, para fins de moradia, de áreas
públicas ocupadas por populações de baixa renda.
Este instrumento, em razão da luta travada pelo Fórum
de Reforma Urbana, chegou a ser aprovado por unanimidade na Comissão
de Desenvolvimento Urbano.
Mas
o governo defendeu o veto ao texto aprovado no Congresso Nacional
e se comprometeu, na ocasião, a editar uma medida provisória
visando restringir a extensão desse direito para as áreas
públicas ocupadas até a edição do Estatuto
da Cidade, bem como para disciplinar de forma diferenciada a aplicação
da concessão de uso para as áreas públicas.
O argumento
das entidades que compõem o Fórum é que "através
desse instrumento, a grande parcela da população urbana
que vive em nossas favelas, loteamentos populares das periferias,
teria finalmente sua situação de moradia legalizada
e passaria a ter uma efetiva proteção de seus direitos
pelo Estado brasileiro, o que resultaria num grande passo para a
realização da reforma urbana em nossas cidades."
Apesar
desse episódio, o deputado Inácio Arruda (PC do B
- CE), relator do projeto na Câmara avalia que "o Estatuto
fortalece a gestão democrática, mediante a ação
de conselhos de política urbana, das leis de iniciativa popular
e da realização de debates, audiências e consultas
públicas para a provação e a implementação
dos planos diretores e das leis orçamentárias".
Além
disso, Arruda elogia a obrigatoriedade do plano diretor para cidades
com mais de 20 mil habitantes, sendo este exigido também
para aquelas situadas em áreas de especial interesse turístico
e outras, sujeitas a empreendimentos ou atividades com significativo
impacto ambiental.
Entretanto,
apesar da importância do Estatuto, Medauar ressalta que sua
"aprovação não acarreta, por si, automaticamente,
os resultados pretendidos". Segundo a professora de direito
urbanístico da USP ele é "um conjunto de figuras
jurídicas, de um instrumental a ser operacionalizado em nível
municipal, adaptado à realidade de cada cidade. O Estatuto
fornece os parâmetros aos executivos e legislativos municipais
para a elaboração de suas leis e planos urbanísticos,
no entanto, ressalta ela, nem sempre os municípios, em especial
os de menor porte, contam com pessoal técnico ou têm
condições financeiras de contratar juristas para elaborar
estas normas."
As
dificuldades para delimitar, com precisão, as diretrizes
do Estatuto recebem as principais críticas. Para Benamy Turkienicz,
arquiteto e professor da UFRGS, "a maior dificuldade para a
aplicação da lei reside, talvez, na falta de ferramentas
e metodologias para aferir limites e possibilidades criados generosamente
pelo estatuto". Para ele "os obstáculos principais
para que a lei atenda aos objetivos encontram-se, principalmente,
na inexistência de critérios tecnicamente consensuais
sobre inúmeras matérias nela contidas". Ele afirma
que a redação do Estatuto enfatiza um pensamento esperançoso,
chamado por ingleses e americanos de wishful tinkink, mais do que
um conjunto de medidas e critérios que viabilizem sua aplicação."
José
Eli da Veiga, professor da Faculdade de Economia e Administração
da USP, afirma que há uma falha imperdoável nesse
Estatuto ao não definir o que é cidade, prolongando
uma aberração que coloca o Brasil entre os países
mais atrasados do mundo do ponto de vista territorial. Segundo ele,
no Brasil, "toda sede de município é cidade,
sejam quais forem suas características demográficas
e funcionais". A delimitação territorial das
cidades é de responsabilidade das Câmaras Municipais
e, segundo ele, inexiste em quase 40% dos casos, sendo improvisada
às vésperas dos censos demográficos. "São
inúmeras as distorções impostas pela abominável
divisão territorial em vigor", afirma. A lei que determina
que a sede de todo município tem a categoria de cidade data
do Estado Novo, de 1938. Veiga lamenta que o Estatuto seja omisso
quanto ao assunto. "O Brasil urbano dificilmente será
formado por mais do que 800 cidades que concentrarão, talvez,
uns 70% da população. Outros 30% ou mais continuarão
distribuídos por milhares de pequenos municípios do
vasto Brasil rural.", prevê.
Questionamentos
também são feitos pelo Procurador do Estado de São
Paulo, José Roberto Castilho, "o projeto aprovado contém
pontos extremamente positivos, mas não faz jus ao tempo de
espera da lei". Castilho queixa-se da arquitetura equivocada
do projeto, "a começar pela intrincada questão
competencial". Ele levanta a questão da omissão
das terras devolutas (que nunca foram transferidas por título
legítimo ao domínio particular, nem incorporadas ao
patrimônio público). "Como se sabe, grande parte
dos municípios brasileiros tem um patrimônio devoluto
considerável. Este patrimônio é ideal para a
reforma urbana, haja vista que o Poder Público não
precisa desapropriar, isto é, despender recursos públicos
escassos, no entanto, os municípios não costumam utilizá-lo
para esta finalidade", aponta Castilho.
Ao
que parece, o problema urbano não é de escassez de
terra, mas de uso efetivo da terra e de organização
do espaço urbano. O Estatuto respalda constitucionalmente
a função social da cidade e a sua sustentabilidade,
só falta definir melhor o que isto significa para cada município,
para que eles se tornem alternativas concretas de futuro para as
novas gerações.
(MP)
Para
saber mais
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Leia
a íntegra do texto do Estatuto
da Cidade
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