As
insatisfatórias fronteiras entre o Brasil urbano e o Brasil
rural
As
cidades brasileiras vêm passando por uma reestruturação.
A febre de construção de edifícios de luxo
já não se restringe a áreas nobres ou centrais.
Os galpões que antes abrigavam fábricas em bairros
tipicamente industriais, hoje são transformados em condomínios
para classe média e alta. Nas áreas de antigas fazendas
surgem condomínios fechados horizontais. Com todas essas
mudanças ainda seria possível fazer a distinção
entre urbano e rural, entre centro e periferia? O Brasil é
um país urbano ou rural?
De
acordo com os resultados do Censo Demográfico de 2000, 81.2%
da população reside em áreas urbanas. Este
percentual cai para 57% em outras pesquisas realizadas por equipes
do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
do Instituto de Pesquisa Econômicas Aplicadas (Ipea) e da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Para
José Eli da Veiga, professor da Universidade de São
Paulo (USP) e secretário do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Rural Sustentável (CNDRS), a explicação de
tamanha diferença está na metodologia aplicada para
classificar e contar a população brasileira. É
considerada urbana, na metodologia em vigor, toda sede de município
(cidade) e de distrito (vila), sejam quais forem suas características.
Dessa forma, em estatísticas oficiais, cidades com poucos
habitantes têm o mesmo peso de metrópoles.
O caso
extremo - citado pelo professor no artigo O Brasil verdadeiro urbano,
publicado no início do ano no jornal Estado de S. Paulo -
está no Rio Grande do Sul, onde a sede do município
de União da Serra é uma cidade na qual o recenseamento
de 2000 só encontrou 18 habitantes. Essa não é
uma exceção, já que no último censo
foram identificadas 1.176 sedes de municípios com menos de
2 mil habitantes, 3.887 com menos de 10 mil e 4.642 com menos de
20 mil. Todas com status de cidade.
O grande
risco do que Veiga chama de "ficção estatística"
é fortalecer a idéia da progressiva extinção
da população rural, tornando irrelevante qualquer
política voltada à dinamização da sociedade
rural. "No fundo, supõe-se que dar mais atenção
ao Brasil rural seria como 'gastar vela com mau defunto' já
que mais dia menos dia todos estarão nas cidades", assinala
no texto A encruzilhada
estratégica do Brasil Rural, apresentado no seminário
Brasil Rural - Na virada do Milênio, realizado em abril de
2001, em São Paulo.
A definição
vigente de cidade, como ressalta o professor, é obra do Estado
Novo. Foi o Decreto-Lei 311, de 1938, que transformou em cidades
todas as sedes municipais existentes, independentemente de suas
características estruturais e funcionais. Embora, em 1991,
o IBGE tenha definido três categorias de áreas urbanas
(urbanizadas, não-urbanizadas e urbanas-isoladas) e quatro
tipos de aglomerados rurais (extensão urbana, povoado, núcleos
e outros) foi mantida a convenção de que toda a sede
de município é necessariamente espaço urbano,
seja qual for sua função, dimensão ou situação.
Pouquíssimos países do mundo usam esse critério.
Apenas El Salvador, Guatemala, Equador e República Dominicana.
Para
que a análise da configuração territorial possa
evitar a ilusão imposta pela metodologia oficial, Veiga defende
a combinação do critério de tamanho populacional
do município com a densidade demográfica e sua localização.
Seria uma tipologia alternativa, capaz de captar a diversidade dos
municípios.
As
três convenções - tamanho populacional do município,
densidade demográfica e localização - já
são utilizadas. O critério mais simples é o
de tamanho populacional, em que não são consideras
áreas urbanas, municípios com menos de 20 mil habitantes.
Todavia, há muitos municípios com menos de 20 mil
habitantes que têm altas densidades demográficas, e
uma parte deles pertence a regiões metropolitanas e outras
aglomerações. Nessa ótica, seria rural a população
dos 4.024 municípios que tinham menos de 20 mil habitantes
em 2000.
A Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) define três categorias de regiões : "essencialmente
rural", em que mais de 50% da população está
em localidades com densidade inferior a 150 habitantes por quilômetro
quadrado;
"relativamente rurais", nas quais entre 15% e 50% dos
habitantes vivem em locais com a mesma densidade demográfica;
"urbana", quando 85% da população se encontra
em localidades com densidade acima de 150 hab/hm2.
Na
opinião de Veiga, não é possível adotar
plenamente esse padrão no Brasil, pois existem diferenças
substanciais entre a superfície dos municípios brasileiros
e as unidades político-administrativas dos países
da OCDE, além das dificuldades de trabalhar com uma classificação
tríplice, em face da atual divisão entre lugares urbanos
ou rurais em todos os municípios do país.
A melhor
configuração territorial do Brasil é, de acordo
com o professor, a resultante da pesquisa IBGE/Ipea/Unicamp. A rede
urbana identificada nessa pesquisa é formada por 455 municípios,
com uma população, em 2000, de 96.3 milhões
(57% do total de 169.6 milhões de brasileiros). Eles são
residentes de 12 aglomerações metropolitanas, outras
37 aglomerações e 77 centros urbanos. "Esse é
o Brasil inequivocamente urbano", afirma.
Para
distinguir, dentre os restantes 5.052 municípios existentes
em 2000, aqueles que pertenciam ao Brasil rural e os que se encontravam
em posição intermediária, o critério
utilizado pelos pesquisadores foi o de densidade demográfica
que varia de acordo com o tamanho populacional dos municípios.
Estão classificados no Brasil rural, 30% da população,
ou seja, 51.6 milhões de brasileiros. Não pertencem
ao Brasil urbano e nem ao rural, 13% da população
(21.7 milhões).
Conceitos
extrapolam a objetividade
Na
opinião da professora Maria Tereza Luchiari, da Unicamp,
isolar as variáveis quantitativas como número de habitantes,
tipos de atividades e construções, a exemplo do que
faz o IBGE, não é mais suficiente para distinguir
o urbano do rural. O conceito de urbano vai além dos dados
concretos. Urbano é o modo de vida, que não está
mais restrito à cidade. "Hoje há atividades rurais
que são de concepção urbana. É o caso
de quando se usa uma tecnologia de ponta em uma área agrícola
ou um hotel fazenda que oferece todos os atributos do modo de vida
urbano", explica.
A divisão
entre centro e periferia, de acordo com Luchiari, não é
mais tão rígida. "Até os anos 70, a área
central das cidades brasileiras era caracterizada por ser melhor
equipada, enquanto a periferia era associada aos pobres. Hoje não
se sustenta mais esse modelo centro-periferia, nem na escala das
relações internacionais, nem na estrutura urbana das
cidades. A periferia hoje está no centro e vice-versa",
afirma.
A justaposição
centro-periferia é um fenômeno recorrente em várias
cidades mundiais. No Brasil, as cidades, principalmente as da região
sudeste, estão cada vez mais perdendo suas áreas rurais
em conseqüência da conurbação. Americana,
na região metropolitana de Campinas, é um exemplo
de cidade predominantemente urbana, com quase nenhum espaço
rural.
Segregação
dos condomínios fechados
O modelo
contemporâneo de urbanismo, que inclui a formação
de condomínios fechados, é inspirado no modelo norte-americano,
em que se privilegia a privatização dos espaços
públicos. De acordo com Maria Tereza Luchiari, são
imaginadas cidades ideais em que a população possa
se isolar de todos os problemas. O que nem sempre é o que
acontece na realidade.
A proliferação
de condomínios fechados acaba colocando em evidência
a cisão social. "É a segregação
das elites", diz a pesquisadora. As pessoas de maior poder
aquisitivo foram atraídas por esses empreendimentos imobiliários
em busca de amenidades, como local com áreas naturais, distância
da violência, do barulho e menos trânsito.
Os
condomínios fechados estão localizados tanto em áreas
mais distantes (antes consideradas como periferias ou rurais) quanto
centrais. É comum ver condomínios de luxo ao lado
de favelas. Essa proximidade em nada melhora a infra-estrutura disponível
para os vizinhos pobres. Isso porque a territorialidade é
seletiva, ou seja, os condomínios têm sua própria
infra-estrutura e serviços, disponíveis ao grupo social
que pode arcar com o valor do investimento, o que reforça
a segregação social.
Mesmo
com o isolamento físico há uma relação
entre os moradores dos condomínios fechados e a vizinhança.
O que é chamado, de acordo com Luchiari, de fragmentação
articulada. Embora os condomínios sejam uma unidade independente,
os moradores precisam contratar serviços profissionais (por
exemplo, pedreiro, pintor, empregada doméstica, eletricista
e encanador), que habitam os núcleos residenciais em seu
entorno. Em muitos casos, a população carente é
ainda mais prejudicada, pois tem o seu acesso ao interior do condomínio
dificultado pelos esquemas de segurança e pela ausência
de transporte público.
Políticas
de desenvolvimento
Elaborar
e propor um plano de desenvolvimento sustentável do
Brasil Rural é a finalidade do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável (CNDRS), formado
por representantes de nove ministérios, dez organizações
da sociedade civil e sete entidades paragovernamentais.
Em
abril será lançado um esboço preliminar
do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável do
Brasil Rural. Este será amplamente divulgado e debatido
durante os dois meses seguintes de maneira a que se tenha
em junho uma versão inicial. Subsídios essenciais
para o processo de discussão já foram publicados
pelo Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento
Rural (NEAD) e estão disponibilizados no portal www.nead.org.br.
A versão final do Plano será submetida a avaliação
na I Conferência Nacional para o Desenvolvimento Sustentável
do Brasil Rural, a ser realizada em Brasília nos dias
15 a 17 de novembro.
O
Plano deve conter diretrizes, objetivos e metas que favoreçam
sinergias entre a agricultura e os setores terciários
e secundários de economias locais, além de oferecer
novas e melhores perspectivas aos 4.500 municípios
rurais, nos quais vivem quase 52 milhões de brasileiros.
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Do
ponto de vista da forma física, a professora da Unicamp não
condena os condomínios fechados. "O problema não
é a forma que, em alguns casos, pode proporcionar uma alternativa
ambientalmente correta, já que o zoneamento interno, normalmente
independente, pode auxiliar na preservação de áreas
verdes. A questão é a sua função elitista".
O que
também tem preocupado estudiosos é o futuro das novas
gerações. Os condomínios fechados não
contêm diversidade social. Os moradores integram um grupo
social homogêneo, com mesmo perfil sócio-econômico,
padrão de consumo, gostos e hábitos. "É
um caminho perigoso. Tenho medo em relação às
gerações mais novas criadas nesses condomínios.
Eles não têm convívio com o outro. Temos exemplos
de gangues de condomínios no Rio, São Paulo e Brasília",
alerta Luchiari.
A segurança
é a maior justificativa para a formação dos
condomínios fechados. No entanto, Luchiari ressalta o fato
de países que mantêm seus espaços públicos,
como Japão e países europeus, apresentarem os índices
mais baixos de criminalidade, enquanto os Estados Unidos, onde se
originou esse modelo urbanístico, têm os maiores índices.
(LC)
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