O
uso de modelagem na definição de estratégias
para a conservação da biodiversidade
Ricardo
Scachetti Pereira e
A. Townsend Peterson
Introdução
Durante as últimas décadas, tem-se vivido um período crítico à conservação
e estudo da diversidade biológica. Grande parte dos cientistas têm
chegado a um mesmo consenso, de que a taxa de extinção que a biodiversidade
do planeta tem sofrido nos últimos dois séculos não tem paralelo
algum na história humana, sendo apenas comparável à extinção em
massa ocorrida no passado, como durante o desaparecimento dos dinossauros.
A biodiversidade tem enfrentado uma série de ameaças, incluindo
perdas e fragmentação de habitat, invasões de espécies e mudança
climática, resultado da crescente ação humana sobre o ambiente.
Tendo em vista os danos causados à biodiversidade, este artigo visa
descrever alguns dos principais avanços da tecnologia de informação,
como as redes de computadores, databases distribuídas e algorítmos
de modelagem, que permitem maior compreensão, e conseqüente proteção,
da diversidade biológica no planeta.
Fontes
de Informação de Biodiversidade
A informação relativa à diversidade biológica se apresenta de duas
formas: dados primários e secundários. Basicamente, os dados primários
consistem de coletas de espécimens, observações e estudos diretos
de espécies. A informação é armazenada em museus de história natural
e herbários do mundo inteiro, como coleções de espécimes (amostras
de espécies), assim como em literatura científica, na forma de pesquisas
e publicações. Tal informação, resultado dos esforços de taxonomistas
e sistemáticos nos últimos 300 anos, é provavelmente a fonte de
dados mais importante referente à biodiversidade.
Os dados secundários consistem em resumos baseados nos dados primários
que adquiriram a forma de mapas regionalizados, guias de campo e
registros municipais. Embora seja uma forma conveniente de se obter
subsídios para análises e priorizações relacionas à biodiversidade,
o uso de fontes de dados secundários destrói a conecção vital entre
o produto e os dados. O produto começa a se degradar, logo após
a sua conclusão, porque não se aperfeiçoa ou se aproveita dos dados
mais acurados e abundantes que se tornam disponíveis a cada dia.
Além disso, esta metodologia não utiliza os novas técnicas quantitativas
para a modelagem de distributição e a análise sintética de dados.
A
utilização de informação primária de biodiversidade, principalmente
pontos de ocorrência de espécies, apresenta inúmeras vantagens em
relação ao uso de fontes de dados secundárias. Primeiramente, a
informação primária é aplicável a todas as regiões e grupos taxonômicos,
assim como não precisa aguardar o resumo baseado na forma de informação
secundária. Há uma conexão direta entre dados primários e os resultados.
Além disso, os produtos que utilizam fonte primária não se tornam
obsoletos mas sim são capazes de evoluir com a melhoria da qualidade
e quantidade da informação. Finalmente, essa forma de informação
de biodiversidade pode tirar vantagem de poderosas ferramentas de
inferência, derivadas de áreas como ecologia de paisagem, estatística
e inteligência artificial.
Acesso e Infra-Estrutura de Dados Primários
Dados primários de biodiversidade se encontram atualmente disponíveis
em um sistema disperso baseado em fronteiras institucionais e nacionais.
A maioria dos membros da comunidade de biodiversidade estão ansiosos
por fornecer informação. No entanto, o sistema é simplesmente ineficiente
e de difícil acesso. Por essa razão, os estudos de biodiversidade
não aproveitam completamente as informações já existentes.
A maior parte das informações de diversidade biológica é armazenada
na forma de coleções científicas em museus e universidades por todo
o mundo, concentrados principalmente na Europa e América do Norte.
Essa informação freqüentemente não se encontra informatizada, e
é considerada propriedade de instituições individuais. O acesso
a cada coleção deve ser feito individualmente, tornando o acesso
à totalidade de informação existente uma tarefa árdua.
Assim, a situação atual mundial da informação de biodiversidade
é deploravelmente ineficiente. Os dados, embora existam em quantidade
suficiente para muitos grupos taxonômicos, não estão acessíveis,
e portanto são raramente incorporados aos estudos de biodiversidade.
As pesquisas de conservação de biodiversidade de grande escala,
embora focalizem exatamente nos dados em questão, são baseadas apenas
minimamente ou secundariamente nos dados de biodiversidade. Sendo
assim, tais estudos carecem de poder analítico e seus resultados
freqüentemente refletem tal falha.
A fim de ilustrar a importância da informação completa de biodiversidade,
a Figura abaixo mostra os dados de ocorrência de três diferentes
museus para espécies de peixe. Cada coleção individual representa
apenas uma fração de todo o conhecimento de biodiverisdade e se
baseia em uma ou outra região geográfica. No entanto, uma vez agregada
em um conjuto de dados único, essa informação seria instrumento
essencial nos avanços de conservação, planejamento de uso de terra,
projeto de áreas de proteção e biologia básica.
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Integração
dos registros de espécimes georeferenciados de três coleções
de peixe
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Existem atualmente várias iniciativas para superação das barreiras
descritas acima. Um exemplo é um esforço de pesquisa multi-institucional
denominado The Species Analyst, desenvolvido como parte da
rede de informação em biodiversidade norte-americana. The Species
Analyst consiste em um servidor de informação de biodiversidade
distribuído baseado na Internet que utiliza padrões de recuperação
de informação baseadas no Z39.50 e HTTP/XML para integrar informação
de diversos bancos de dados e plataformas computacionais heterogêneos.
Essa informação integrada é então retornada aos usuários através
Internet ou através de extensões a aplicações desktop como Microsoft
Excel ou ESRI Arcview, que permitem consulta, visualização e recuperação
de dados em vários formatos.
The
Species Analyst atualmente fornece acesso a mais de 14 milhões
de registros em 25 bancos de dados localizados em 19 instituições.
Outros 31 milhões de registros estão comprometidos a participar,
em 30 bancos de dados adicionais. The Species Analyst, portanto,
conta com aproximadamente 50 milhões de registros de ocorrência
de espécies, a maioria validada por espécimes em coleções científicas.
Como iniciativa européia, tem-se a ENHSIN (European Natural History
Specimen Information Network) que conta atualmente 7 instituições.
Seu projeto piloto integra atualmente 4 bancos de dados. Outras
iniciativas nacionais, no México e na Austrália por exemplo, completam
o cenário internacional em termos de infraestrutura para integração
de dados sobre biodiversidade.
Ferramentas
de Modelagem para Bioinformática Aplicada à Biodiversidade
O procedimento usado para converter dados primários na forma de
pontos de ocorrência de espécies, em previsões contínuas de presença
ou ausência numa determinada região geográfica é crítico ao sucesso
dos produtos de biodiversidade.
O foco principal dos esforços de modelagem é o conceito de nicho
ecológico fundamental de uma espécie. Este pode ser definido como
a combinação de condições ecológicas dentro das quais a espécie
consegue manter populações.
No desenvolvimento de modelos que produzam a distribuição da previsão
geográfica de espécies, dois tipos de erro podem ser cometidos:
omissão e sobreprevisão. Omissão consiste em não considerar, na
previsão, áreas realmente habitadas, enquanto que sobreprevisão
representa incluir áreas que não são verdadeiramente habitadas.
Embora algumas solução simples possam minimizar ambos tipos de erro
(por exemplo, incluir o mapa inteiro como presença da espécie reduz
a zero o erro de omissão; incluir apenas os pontos de ocorrência
conhecidos reduz a zero o erro de sobreprevisão), um algorítimo
ideal minimizaria ambos simultaneamente.
Vários métodos são usados por investigadores para resolver tal problema.
Um dos primeiros métodos nessa área, desenvolvido nos anos 80, é
denominado BIOCLIM ("Bioclimatic Envelope"). Nessa aproximação,
os pontos de dados de ocorrência de espécies são sobrepostos em
um conjunto de coberturas climáticas, como temperatura, precipitação,
radiação solar e neve. O algoritmo então define o conjunto de categorias
que abrange 95% dos pontos de ocorrência como sendo o nicho fundamental
da espécie. Tais categorias são destacadas no mapa, mostrando a
distribuição geográfica potencial da espécie. A principal vantagem
deste método se encontra em sua simplicidade. Entretanto, esse método
tende a mostrar grandes erros de sobreprevisão e é relativamente
susceptível à qualidade dos pontos de ocorrência da espécie.
Uma
aproximação mais poderosa se trata do GARP (Genetic Algorithm for
Rule-set Prediction). Este inclui numerosos algorítimos individuais
(por exemplo, BIOCLIM, regressão logística) e utiliza as combinação
de suas habilidades analíticas para gerar regras num conjunto de
regras mais amplo; portanto, algumas porções da distribuição das
espécies podem ser determinadas como dentro ou fora do nicho baseadas
em diferentes regras de vários algorítimos. Dessa forma, GARP é
um superconjunto de outras aproximações, que deverá ter sempre maior
habilidade de previsão que qualquer uma delas. Testes realizados
com o GARP demonstram uma excelente habilidade de previsão, requerindo
um número relativamente baixo de pontos de ocorrência, evitando
muitos dos problemas que atrapalham os outras técnicas.
Aplicações das Ferramentas de Modelagem de Espécies na Conservação
da Biodiversidade
A utilização de ferramentas de modelagem de distribuição de espécies,
baseada em pontos de ocorrência primário, para o planejamento da
conservação da biodiversidade fornece uma série de vantagens com
relação aos métodos convencionais:
- Permite
um melhor entendimento da distribuição de espécies raras e ameaçadas
de extinção, para as quais existem poucos espécimes ou observações
disponíveis. Por exemplo, GARP pode gerar modelos razoavelmente
precisos para espécies com apenas 10 a 20 pontos geo-referenciados
de ocorrência conhecidos;
-
Permite o projeto de programas de reintrodução para espécies;
- É
uma ferramente poderosa para compreender os efeitos das mudanças
climáticas globais e outras alterações de escala global nas distribuições
de espécies;
-
Possibilita técnicas pró-ativas para combater invasões de espécies;
-
Auxilia no desenvolvimento de planos de conservação da biodiversidade,
através do fornecimento de um mecanismo de inferência poderoso
para determinar as áreas de maior riqueza e diversidade de espécies.
A Figura
abaixo exemplifica o uso de modelagem para avaliar a eficiência
de alocação de recurso para reservas de conservação no México. A
figura apresenta o padrão de riqueza de espécies de pássaros endêmicos
do sudoeste do México, calculado através do uso de múltiplos modelos
do GARP e dados de espécimes de vários museus. A área em verde escuro
representa alta riqueza de espécies endêmicas, enquanto que as estrelas
azuis mostram as localidades de reservas biológicas do sudoeste
mexicano.
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Modelo
das espécies de pássaros endêmicos na floresta seca do sudoeste
do mexicano e relação às localidades das reservas
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Uma
das reservas está localizada próxima à concentração primária, porém
nenhuma delas deixa de atingir a concentração secundária, indicando
uso não otimizado dos recurso de conservação.
Essas
técnicas de modelagem podem ser também aplicadas ao estudo de espécies
invasoras, como mostrado nas figuras 3 e 4. Nesse exemplo, observa-se
uma espécie de inseto nativa do leste asiático, o besouro chinês
(Anoplophora glabripennis), conhecida pelos danos
a florestas. O mapa da esquerda mostra uma previsão de distribuição
gerada pelo GARP a partir de pontos de ocorrência na região nativa.
O mapa da direita mostra o nicho ecológico obtido na região nativa
projetada nos Estados Unidos. Neste exemplo, pode-se observar que
a costa leste é muito mais vulnerável a invasão das espécies, mesmo
sabendo que os pontos de desembarque oriundos da Ásia são concentrados
na costa oeste. Desse modo, é possível desenvolver estratégias de
combate à invasão com máxima eficiência.
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Exemplo
de previsão de invasão de espécies utilizando ferramentas
de modelagem do nicho ecológico
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Esta
estratégia oferece uma alternativa às técnicas reativas de combate
a invasão de espécies. Ao invés de esperar pela próxima invasão
para que se tome medidas de combate, pode-se tomar medidas preventivas,
estudando as potenciais espécies invasoras, com base nas relações
comerciais entre os países. Dessa forma, pode-se criar estratégias
de prevenção, combate e erradicação antes mesmo da invasão ocorrer.
Conclusão
Para que se reverta o cenário de depredação ambiental e extinção
das espécies, é necessário que todas as informações e ferramentas
computacionais disponíveis sejam reunidas a fim de se compreender
melhor e, dessa forma, poder proteger a biodiversidade. Com o auxílio
de ferramentas de modelagem do nicho ecológico, é possível se utilizar
mais efetivamente os dados de biodiversidade primários, assim como
otimizar o uso dos escassos recursos de conservação atualmente disponíveis.
Ricardo
Scachetti Pereira é pesquisador do Centro de Referência
em Informação Ambiental e A. Townsend Peterson é
pesquisador do Natural History Museum da Universidade do Kansas
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