A
evolução do conceito de biodiversidade
Thomas
Michael Lewinsohn
Biodiversidade é hoje um dos termos científicos mais conhecidos
e divulgados em todo o mundo. Em menos de 15 anos de existência,
entrou no vocabulário de uso geral. Deveria, portanto, ser um conceito
muito bem estabelecido e definido mas, pelo contrário, não é ainda
bem compreendido por muitas pessoas, inclusive por cientistas. Neste
texto, quero mostrar como surgiu este conceito e explorar um pouco
seu significado.
Desde
os primórdios da humanidade
A noção de variedade da vida é muito antiga. Filósofos e naturalistas
gregos como Aristóteles, ou romanos como Plínio,
listaram os tipos de organismos conhecidos em suas épocas e esboçaram
esquemas para classificá-los. Estes trabalhos faziam parte da "Filosofia
natural", no longo período em que as ciências naturais não se separavam
claramente de outras formas do conhecimento.
Outras
civilizações, como a chinesa e a maia, deram nomes aos diferentes
organismos que conheciam e produziram esquemas de classificação.
Na verdade, todas as culturas humanas, têm nomes e sistemas de classificação
para os organismos vivos dos ambientes que habitam. Estas etnoclassificações
produzidas por diferentes culturas e povos são uma parte essencial
da etnociência e, hoje, têm atraído muito interesse pelo seu valor
para apontar novas plantas medicinais e outras formas de bioprospecção.
Com
o surgimento da ciência moderna na Europa, entre os séculos 16 e
17, a classificação de organismos vivos foi um tema de grande interesse
para os cientistas que pesquisavam a História Natural (na qual se
combinava o que hoje chamamos de Biologia com Geologia, entre outras
áreas). Diversas teorias e novos estudos - por exemplo, a anatomia
microscópica - permitiram o aperfeiçoamento de sistemas de classificação.
Finalmente, no século 18, Lineu propôs um sistema
de classificação que é uma das bases da classificação atual dos
organismos.
Dois outros acontecimentos deram um grande impulso à atividade de
reconhecer e classificar a variedade de seres vivos. Em primeiro
lugar, a descoberta e exploração do Novo Mundo e outros continentes,
onde os naturalistas encontraram muitas formas de vida desconhecidas
e estranhas, que desafiavam continuamente seus esquemas de classificação.
Em segundo, a invenção do microscópio no século 17, cujas lentes
revelaram um novo universo de organismos invisíveis a olho nu -
os microorganismos.
Descrição
e mapeamento de espécies
O estudo, descrição e classificação de novas espécies - conhecido
como Taxonomia - ocupou muitos naturalistas e biólogos nos
séculos 19 e 20. Este trabalho tornou-se uma profissão durante o
século 19, mas sempre houve muitos naturalistas amadores que se
especializaram em algum grupo de plantas ou animais e participaram
do esforço de classificar e descrever novas espécies.
Em
1758, o Systema Naturae de Lineu incluía 5.897 espécies de
plantas e animais, os dois reinos em que ele dividia os organismos
vivos. Este número cresceu explosivamente e mais rapidamente nos
animais vertebrados e nas plantas terrestres. Em 1850 já haviam
sido descritas cerca de 4.500 espécies de aves, a metade do que
conhecemos atualmente. Estima-se hoje em cerca de 1,7 milhões o
total de espécies conhecidas, incluindo microorganismos, mas este
número é bastante aproximado porque não há um catálogo geral. Cerca
de 13.000 espécies novas são descritas a cada ano.
Ao
mesmo tempo em que se estendia o conhecimento e a classificação
de espécies, os naturalistas reconheciam que em cada região do mundo
havia espécies diferentes, muitas delas existindo em um só continente
ou até numa pequena região. Também notaram que muitas espécies ocorriam
em certos tipos de ambientes ou locais característicos. A Biogeografia,
ciência que se desenvolveu no século 19, buscava descrever a distribuição
geográfica das espécies; ao mesmo tempo, buscava caracterizar
quais as espécies que existiam em cada tipo de ambiente natural
e em cada região geográfica do planeta.
Da reunião destas duas ciências, a Taxonomia e a Biogeografia, surgiu
a idéia de diversidade de espécies.
Diversidade
de espécies e o conceito de espécie
A maneira mais simples de caracterizar a diversidade de espécies
é listar, ou contar, as espécies que existem num lugar ou numa região
de interesse. A contagem das espécies é uma medida simples de sua
diversidade, sendo chamada de riqueza de espécies.
Há
várias dificuldades para reconhecer a diversidade de espécies, na
prática. Ela depende, em primeiro lugar, do que se entende por espécie.
Na época de Lineu, acreditava-se que as espécies não mudavam nunca
e, além disto, que cada espécie seguia um tipo fixo. No século
19, Darwin e outros cientistas comprovaram que espécies não eram
imutáveis e que, além disto, cada indivíduo podia ser bastante diferente
de outros, embora pertencessem à mesma espécie.
O conceito atual de espécie biológica é muito
influenciado pelo conhecimento da genética e evolução dos organismos.
Segundo este conceito, a capacidade de intercruzamento, ou de combinação
genética livre entre indivíduos, em condições naturais, é a característica
que melhor separa cada espécie das demais.
Este
conceito tem muitas vantagens. Ele reconhece que indivíduos ou populações
variam de aparência e podem mesmo ser de raças distintas
(basta lembrar das raças de cães), mas pertencerem à mesma espécie,
contanto que possam se cruzar livremente, produzindo filhotes normais.
Sabemos que existe também variação genética entre indivíduos e entre
populações da mesma espécie, mas suas diferenças genéticas não impedem
que se reproduzam em conjunto.
O conceito de espécie biológica serve muito bem para a maioria dos
animais, e também para grande parte das plantas superiores. Porém,
muitas plantas e vários grupos animais têm sistemas de reprodução
especiais ou diferentes. Isto, aliás, é a regra entre os microorganismos.
Assim, em todos estes casos, especialmente nos microorganismos,
o conceito de espécie baseado na capacidade de intercruzamento não
funciona bem.
A noção de "espécie" é diferente para os microorganismos e muitas
plantas, e hoje em dia é mais baseada em diferenças genéticas, ou
de aparência, que consideramos suficientemente grandes para tratá-las
como espécies diferentes, do que na sua separação reprodutiva.
Quando
contamos espécies, nos vertebrados e em muitos outros animais e
plantas, estamos contando o que pensamos ser espécies biológicas.
Em outras plantas e nos microorganismos, contamos formas distintas,
mas que não são exatamente espécies biológicas. Portanto, a diversidade
de espécies tem significado diferente para animais, plantas
e microorganismos.
Surge
a biodiversidade
A palavra biodiversidade apareceu há não muito tempo. Certamente,
tornou-se conhecida a partir de uma reunião realizada nos Estados
Unidos, cujos trabalhos foram publicados em 1988, num livro organizado
pelo ecólogo Edward O. Wilson, da Universidade de Harvard, nos Estados
Unidos. O conceito de biodiversidade procura referir e integrar
toda a variedade que encontramos em organismos vivos, nos mais diferentes
níveis. É difícil expressar este conceito com precisão, e existem
várias enunciados diferentes, por exemplo:
"A
soma de todos os diferentes tipos de organismos que habitam uma
região tal como o planeta inteiro, o continente africano, a Bacia
Amazônica, ou nossos quintais" (Andy Dobson).
"A
totalidade de gens, espécies e ecossistemas de uma região e do mundo"
(Estratégia Global de Biodiversidade)
"A
variedade total de vida na Terra. Inclui todos os genes, espécies,
e ecossistemas, e os processos ecológicos de que são parte" (ICBP
- Conselho Internacional para a Proteção das Aves)
Todas
as definições - estas, e muitas outras - enfatizam que a biodiversidade
abrange diferentes níveis de organização da vida. Tais níveis formam
uma certa hierarquia, embora geralmente só sejam mencionadas
algumas partes de toda a seqüência (as que são destacadas abaixo):
genes
> que pertencem a organismos > que compõem populações
> que pertencem a espécies > cujos conjuntos formam
comunidades > que fazem parte dos ecossistemas.
|
Além
disto, várias definições ressaltam que a biodiversidade não é apenas
uma coleção de componentes, em vários níveis. Tão importante quanto
estes componentes é a maneira como eles estão organizados e como
interagem: quer dizer, as interações e processos que
fazem os organismos, as populações e os ecossistemas preservarem
sua estrutura e funcionarem em conjunto.
A
Convenção da Diversidade Biológica, apresentada na reunião das Nações
Unidas do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente (Eco-92), é o principal
instrumento do compromisso firmado pela maioria das nações do mundo
desde então, para buscar
"...a
conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável
de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos
benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos"
(CDB,
Artigo 1)
|
Por
se tratar de um documento de acordo formal entre nações, é necessário
definir cuidadosamente cada um dos termos. Biodiversidade é definida
assim:
"
Diversidade biológica significa a variabilidade de organismos
vivos de todas as origens, compreendendo, dentre outros, os
ecossistemas terrestres, marinhos e outros ecossistemas aquáticos
e os complexos ecológicos de que fazem parte; compreendendo
ainda a diversidade dentro de espécies, entre espécies e de
ecossistemas." (CDB, Artigo 2)
|
Como
se vê, esta definição chama atenção sobre os diversos níveis e a
variedade de ambientes da vida, referindo-se também aos processos
("complexos ecológicos") que os mantêm organizados. Infelizmente,
a redação que foi adotada é difícil de entender e até confusa. Esta
definição tem valor legal, pois foi incorporada no Decreto 2.519
de 1998, que promulgou em definitivo a plena execução da Convenção
no Brasil. Apesar disto, preferimos usar outras, mais simples e
mais claras, como as que citamos acima.
Importância
e variedade das espécies
Apesar da necessidade de abranger a diversidade da vida em todos
seus níveis, a diversidade de espécies é certamente o seu
componente mais estudado e usado.
Normalmente,
para expressar a diversidade de espécies empregamos a riqueza de
espécies ou outras medidas de diversidade.
Quando contamos simplesmente as espécies, todas elas têm o mesmo
valor e peso. Muitos cientistas pensam, porém, que a diversidade
não deve apenas contar espécies, mas levar em conta sua variedade
ou mesmo seu valor. A seguir, vejamos três diferentes maneiras de
fazer isto:
diversidade
taxonômica: é uma medida da variedade dos táxons
superiores (ou grupos taxonômicos) a que pertencem as espécies da
área estudada . Uma espécie de mosca, uma mariposa e um gafanhoto
têm maior diversidade taxonômica do que três espécies de gafanhoto.
Pode-se, além disto, dar peso às espécies que pertencem a um grupo
pequeno, ou que seja considerado especial por outras razões.
diversidade filogenética: é parecida com a diversidade taxonômica.
Se tivermos conhecimento do parentesco evolutivo entre diferentes
espécies da região que estudamos - ou seja, se existe um esboço
da árvore evolutiva do táxon superior a que as espécies pertencem
- podemos medir a variedade evolutiva de um grupo de espécies. Quanto
mais distantes evolutivamente as espécies, maior a diversidade filogenética
do conjunto. Pode-se, ainda, atribuir valor maior a espécies que
são evolutivamente isoladas, ou seja, "especiais". Por exemplo,
o Peripatus acacioi é uma espécie de artrópode
que tem alto valor filogenético, por pertencer a um táxon muito
pequeno - os Onicóforos - e que, do ponto de vista evolutivo, é
bastante especial. Como ele está na lista brasileira das espécies
ameaçadas de extinção, sua presença em certas áreas de Minas Gerais
é considerada mais importante do que a de outros artrópodes, pertencentes
a táxons maiores e mais comuns.
diversidade funcional: pesquisadores preocupados com o funcionamento
de ecossistemas têm questionado se, deste ponto de vista, todas
as espécies têm a mesma importância. Para manter a integridade e
o funcionamento dos ecossistemas, é necessário que haja organismos
que cubram todos os processos envolvidos neste funcionamento. A
diversidade funcional pretende avaliar se, em um dado ecossistema,
há espécies cujo conjunto de atividades e interações garante os
processos essenciais para a existência continuada do ecossistema.
Esta preocupação é importante para o conceito de sustentabilidade,
mas ainda é bastante controversa e necessita muita pesquisa adicional.
Diversidade
genética
A diversidade genética geralmente tem sido estudada dentro de espécies,
medindo tanto as diferenças entre indivíduos, quanto as diferenças
entre populações naturais, que hoje muitas vezes estão separadas
entre si pela perda e fragmentação dos hábitats naturais.
A
diversidade genética é cada vez mais avaliada por métodos moleculares,
em que se examina diferenças na constituição do DNA, RNA ou de determinadas
proteínas entre os organismos ou populações. Este estudo é essencial
para a conservação biológica, porque a perda de diversidade genética
de uma espécie aumenta muito o risco de que ela venha a se extinguir,
sendo perdida para sempre. Perder diversidade genética também significa
desperdiçar as possibilidades de novos aproveitamentos de espécies,
especialmente aquelas em que foram selecionadas e melhoradas algumas
poucas variedades para aproveitamento econômico, sem a preocupação
equivalente com as variedades mais antigas ou "selvagens".
Em microorganismos, a diversidade genética vem sendo pesquisada
e avaliada diretamente em amostras de ambientes naturais, mesmo
não podendo atribuí-la a espécies já conhecidas.
Diversidade
de ecossistemas
Embora mencionada na maioria das definições atuais, a diversidade
de ecossistemas é a mais difícil de caracterizar. Isto porque ecossistemas
são definidos pelo seu modo de funcionamento e seu tamanho pode
variar desde uma pequena poça de poucos metros de tamanho, até um
tipo de floresta que se estende por muitos quilômetros, sem limites
claros. Embora toda região geográfica contenha uma mistura de ecossistemas,
é difícil, na prática, medir a sua diversidade.
A diversidade de ecossistemas tem sido entendida, geralmente, como
a diversidade de tipos de ambiente, ou hábitats, que existem numa
região. Os hábitats aquáticos são frequentemente caracterizados
por características físicas (por exemplo, água corrente ou parada;
leito ou substrato de pedra, areia ou argila). Nos hábitats terrestres,
costuma-se dar maior importância à vegetação e sua fisionomia para
caracterizá-los. Assim, é possível avaliar e comparar a estrutura
de hábitats e sua diversidade em uma região.
Para comparações mais extensas, que vão além do estudo de uma região
feito por um só pesquisador, é necessário ter um esquema unificado
de classificação de fisionomias que seja fácil de usar por diferentes
pesquisadores e técnicos. Além disto, é da maior importância que
este esquema de classificação de hábitats possa ser aplicado na
interpretação de imagens de satélite, que se tornaram uma ferramenta
essencial para monitorar mudanças ambientais. Várias propostas e
tentativas têm sido feitas, tanto no exterior como no Brasil, de
produzir uma classificação prática de hábitats, fisionomias e eco-regiões
que cumpram estas expectativas. No entanto, este alvo ainda não
foi atingido e, por isto, a diversidade de ecossistemas é o componente
que representa o maior desafio para avançarmos no conhecimento da
biodiversidade.
Thomas
Michael Lewinsohn é professor e doutor em Ecologia no Instituto
de Biologia da Unicamp.
Glossário
artrópodes - ramo de animais que inclui os
insetos, aranhas, crustáceos, centopéias, e alguns grupos menores.
bioprospecção - a procura sistemática de novos
materiais extraídos ou produzidos por seres vivos. Hoje em dia,
a bioprospecção visa principalmente a descoberta de substâncias
com atividade farmacológica, mas também são importantes para produzir
novos alimentos, fibras, combustíveis, lubrificantes e outros.
espécie biológica - o conjunto de populações
cujos indivíduos são capazes de se cruzar com sucesso em condições
naturais, e que são isoladas reprodutivamente de outras espécies
etnoclassificação - o sistema de classificação
de plantas e de animais desenvolvido por um grupo étnico, como parte
de sua cultura. As culturas indígenas brasileiras têm classificações
muito completas e sofisticadas, nas quais os naturalistas europeus
se basearam para classificar as espécies desconhecidas que encontraram
no Novo Mundo. Etnoclassificações e outros temas da etnociência
são estudados principalmente na Antropologia, em combinação com
os diferentes campos das Ciências Naturais.
Lineu - o naturalista sueco Carl von Linné
(ou Linnaeus, forma latina de seu sobrenome), 1707-1778. Sua principal
obra, o Systema Naturae, foi publicado em 1735. A 10a edição,
de 1758, é usada como ponto inicial das classificações modernas.
Nela, Lineu formalizou os nomes científicos que hoje usamos, juntando
o nome do gênero (por exemplo, Caesalpinia) com o da espécie
(por exemplo, echinata) para designar a identidade de um
organismo: Caesalpinia echinata (a árvore do pau-brasil).
medidas de diversidade - há várias maneiras
de medir a diversidade de espécies, também chamada de diversidade
ecológica. A mais simples é a riqueza de espécies: o número de espécies
existentes em um lugar ou em uma amostra biológica. Outras medidas
avaliam, além do número de espécies, também a uniformidade do número
de indivíduos de cada espécie; estas medidas geralmente são chamadas
de Índices de Diversidade. Nestes índices, quanto mais parecidos
os números de indivíduos das várias espécies encontradas, maior
é a diversidade.
microorganismo - nome genérico para todos
os organismos invisíveis a olho nu (os maiores podem ser vistos
apenas como pontinhos, com luz adequada e por quem tem boa visão).
Normalmente, são menores que 0,1 mm. Incluem bactérias, algas cianofíceas,
protozoários, muitos fungos e líquens, e vírus. Muitos vírus e bactérias
aquáticas são menores que um milésimo de milímetro.
Plínio - Gaius Plinius Secundus, ou Plínio
o Velho, 23-79 DC. Militar e historiador romano, sua Historia
Naturalis foi a maior compilação do conhecimento de História
Natural até o início da ciência moderna.
riqueza de espécies - ver medidas
de diversidade.
táxon - (plural: táxons ou taxa) uma unidade
de classificação em que enquadramos indivíduos, ou espécies. Táxons
têm sempre um nome formal, em latim, e um nível dentro de uma hieraquia
de classificação que vai da espécie até o reino. "Táxons superiores"
são aqueles acima do nível de espécie (gênero, família, ordem, classe
etc.).
|