Medidas
provisórias são fonte de biopolêmica
Ulisses
Capozoli
Não é só em relação à energia elétrica que a legislação divide opiniões.
Na área da biodiversidade, o uso repetitivo de medidas provisórias
também gera tensões e, desde a promulgação da Constituição de 1988,
vem estimulando o que cientistas, empresários e ambientalistas conhecem
como biopolêmica.
Na verdade tanto o reconhecimento da biodiversidade como a biopirataria,
a exploração não autorizada desses recursos, não são debates recentes
no Brasil. O que não significa que tenhamos conseguido disciplinar
satisfatoriamente o uso de riquezas naturais, fazendo com que uma
exploração sustentável assegure, não só a manutenção dos recursos,
mas também o retorno dos benefícios às populações das regiões onde
estão disponíveis.
Talvez o primeiro suspeito do que hoje seria um biopirata tenha
sido o naturalista e explorador alemão Alexander Humboldt (1769-1859)
o maior nome do período clássico da geografia física e da biogeografia.
Em 1800, informações desencontradas obtidas pela Coroa portuguesa
foram transmitidas para Belém e as capitanias de Pernambuco e Ceará,
proibindo a entrada no Brasil, "seja qual fosse o local, de um certo
Barão de Humboldt, que sob a capa de fazer observações científicas
vinha, isto sim, subverter com idéias falsas, o ânimo do povo nas
terras do Brasil", segundo registra Osvaldo Rodrigues da Cunha em
O Naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira.
Em 1808, com a corte já instalada no Rio, D. João VI revogou as
proibições à entrada de Humboldt e chegou a convidá-lo a conhecer
o Brasil. O naturalista não pode atender ao convite, mas seus biógrafos
dizem que ele divertiu-se ao saber que tinha sido considerado suspeito
aos olhos da Coroa. Em 1854, Humboldt ajudou o Brasil na resolução
das fronteiras com a antiga Guiana Inglesa, Venezuela e Colômbia
e por isso recebeu, em 1855, a maior distinção do Império, a Grã-Cruz
da Imperial Ordem da Rosa.
Outro suspeito potencial teria sido Alfred Wallace que, entre 1848
e 1852, esteve explorando o Rio Amazonas e, na confluência das águas
do Solimões com o Rio Negro, preferiu investigar o segundo rio até
seu curso superior. Wallace foi co-descobridor da seleção natural
e uma carta que enviou a Charles Darwin, consultando-o sobre este
assunto, foi o que levou Darwin, após mais de duas décadas de indecisão,
a finalmente publicar seu Origem das Espécies, em 1859.
O mais eficiente do que hoje seria considerado um biopirata foi
Richard Spruce, um dos maiores botânicos e exploradores da Amazônia.
Nascido na Inglaterra, em 1817, de família muito pobre, Spruce se
ressentiu de dificuldades financeiras por toda a vida. Foi um naturalista
profissional, ainda que de formação auto-didata.
Spruce desembarcou em Belém em julho de 1849, onde encontrou-se
com Wallace e Henry Bates, também naturalista. Estava a serviço
de pelo menos onze herbários europeus para coletar amostras e enviá-las
aos interessados.. Em 1864, quando viajou de volta para a Inglaterra,
levou pelo menos 30 mil plantas, além de mapas, sem considerar uma
infinidade de sementes que já havia enviado por outros meios. Entre
essas sementes estavam espécies de seringueiras, produtoras de látex,
além de plantas para uso medicinal.
Após 17 anos de trabalho na Amazônia, Spruce, como que antecipando-se
aos interesses do futuro, teria lamentado, como registra Cunha,
"que todo o norte da América do Sul, com a Amazônia brasileira,
não estivesse em mãos dos ingleses". Cunha identifica Spruce como
"um imperialista, autêntico representante da era vitoriana e contra
os latino-americanos". De qualquer maneira, Spruce morreu pobre
e esquecido, em 1893, e suas notas de longas viagens foram publicadas,
graças à intervenção de Alfred Wallace, em dois volumes que saíram
em 1913.
Mas mesmo um naturalista brasileiro, Alexandre Rodrigues Ferreira
(1756- 1815), acabou vítima de biopirataria, por uma ação combinada
de negligência portuguesa e astúcia francesa. Por dez anos, entre
1783 e 1793, Ferreira, nascido em Salvador, percorreu o Brasil Central,
o Amazonas, o Negro e uma infinidade de outros rios na sua Viagem
Filosófica pela Amazônia e Mato Grosso.
Ferreira, que estudou em Coimbra, iniciou sua viagem sob patrocínio
português ainda submetido à política do sigilo que vinha desde as
viagens de descobrimentos, do século 16. Daí a dificuldade que encontrou,
em Lisboa, para publicar os resultados de seu trabalho. A razão
disso, ainda na avaliação de Cunha, é que "não havia na época intuito
algum de se divulgar estudos científicos fundamentais de um mundo
desconhecido aos europeus, ávidos de informações e novidades".
Há alguma discordância entre os historiadores se o material reunido
por Alexandre Rodrigues Ferreira foi saqueado pelos invasores franceses
ou transferido, com concordância portuguesa, para a França. O certo
é que todo seu trabalho foi roubado, no melhor estilo pirata, por
parte de Geoffroy St. Hailaire.
O que faz os naturalistas estrangeiros serem enaltecidos, enquanto
pesquisadores brasileiros permanecem desconhecidos no Brasil? Guilherme
de La Penha, ex-diretor do Museu
Emílio Goeldi, atribuiu esta condição ao "confronto cultural
entre o desenvolvimento e o permanente estado de letargia dos países
em eterno estado de pré-desenvolvimento".
Talvez por isso, na memória da maioria das pessoas, especialmente
na Amazônia, certamente o transplante de seringueiras para a Malásia,
no começo do século passado, foi o maior saque contra os recursos
naturais no Brasil. A retração da borracha, que havia urbanizado
Manaus e Belém, quando Rio de Janeiro e São Paulo ainda tinham ares
de colônia, trouxe a maior crise já vivida pela Amazônia em termos
de exploração de seus vastos recursos naturais.
A retomada das preocupações envolvendo a biodiversidade no Brasil,
depois de serem incluídas na Constituição de 1988, deu-se com a
assinatura da Convenção
Sobre Diversidade Biológica, durante a Rio-92. O acordo reafirma
a soberania dos países sobre seu patrimônio genético, ao mesmo tempo
em que os países signatários se comprometem a facilitar o acesso
a esses recursos com a condição de consentimento prévio e de comum
acordo com as partes interessadas.
O acordo sobre biodiversidade prevê também que os países que usarem
recursos genéticos originários de outra nações devem garantir a
repartição eqüitativa de seus benefícios econômicos. Em 1994, pelo
Decreto Legislativo 2/94, o Congresso Nacional ratificou a convenção.
No ano seguinte, em 1995, a senadora Marina Silva (PT-Acre), enviou
ao Congresso projeto de lei (306/95) regulando o acesso e o uso
da biodiversidade. Em 1996, no entanto, o governo federal preferiu
criar o Grupo Interministerial de Acesso aos Recursos Genéticos
(Giarg), submetido à Casa Civil, além de ter a participação de vários
ministérios e órgãos afins.
Em 1998, o Giarg encaminhou novo projeto de lei ao Congresso com
a preocupação de deixar sob responsabilidade do Executivo a definição
de competência de órgãos. A biodiversidade acabou vinculada ao Projeto
de Emendas Constitucionais que declara bem da União o patrimônio
genético brasileiro. Sem legislação específica, a biodiversidade
está regulada por medidas provisórias já reeditadas por nove vezes
sem possibilitar um consenso entre as partes envolvidas: Estado,
empresas e comunidade científica, além de grupos ambientalistas.
Além disso, a exploração da biodiversidade e sua vigilância, ao
menos na Amazônia, ainda se ressentem de infraestrutura, como ficou
evidenciado no encontro especial que a Sociedade Brasileira para
o Progresso da Ciência (SBPC)
fez em Manaus, em fins de abril passado.
A Amazônia tem uma carência crônica de pesquisadores científicos,
laboratórios, bolsas de estudos para desenvolvimento de recursos
humanos e mesmo pessoal bem equipado para vigilância ambiental.
Um único fiscal do Ibama, sem equipamentos específicos, como barcos
a motor, deve cuidar, em média, de uma área de 7 milhões de hectares.
Como é uma tarefa impossível de se cumprir, o espaço fica aberto
para as mais diferentes formas de biopirataria.
Biodiversidade, como define a pesquisadora Marlúcia Martins, do
Museu Emílio Goeldi, em Belém, "é a propriedade de grupos ou classes
de entidades vivas de serem variadas, isto é, comportar mais de
um tipo, possuir diferenças. A biodiversidade, como a complexidade,
é atributo dos sistemas biológicos e se manifesta em todos os seus
níveis hierárquicos, como moléculas, genes, indivíduos, populações
e espécies".
Assim, ainda que a biopirataria apareça na mídia como uma das ameaças
mais temíveis, o desmatamento, na Amazônia induzido especialmente
pela abertura de estradas, e sem a vigilância necessária, é uma
das maiores ameaças à biodiversidade. Mesmo a introdução de culturas
agrícolas com mercado internacional, caso da soja, milho, ou laranja
podem, em regiões como a Amazônia, afetar culturas que passaram
por melhorias genéticas ao longo de dez mil anos de história de
ocupação humana, como é o caso da pupunha.
Charles Clement, pesquisador do Instituto de Pesquisas da Amazônia
(Inpa) assegura que há 10
mil anos, quando a Amazônia começou a ser ocupada, a pupunha pesava
um grama, contra os 200 gramas atuais. A pupunha, como outras frutas
da Amazônia, dependeram do homem para se desenvolver aos níveis
atuais. Se forem abandonadas, no entanto, devem recuar ao estágio
natural e, neste sentido, representariam uma alteração no patrimônio
da biodiversidade.
Por tudo isso, assegurar a manutenção e exploração do patrimônio
genético, passando pelo conhecimento tradicional de caboclos e populações
ribeirinhas demandam não apenas um aprimoramento da legislação,
mas uma visão do Brasil como um todo. Um conjunto que deve ser preservado
para que suas partes possam expressar, cada uma delas, as suas mais
diversas potencialidades. No exato momento em que o leitor acompanha
estas linhas, pelo menos 60 línguas indígenas morrem lentamente
na região. Assegurar a biodiversidade é, também, uma corrida contra
o tempo, contra a inércia e a falta de perspectivas. E este é um
desafio ainda longe de estar vencido.
Ulisses Capozoli, jornalista especializado em divulgação científica
é historiador da ciência e presidente da Associação Brasileira de
Jornalismo Científico (ABJC)
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