O
valor da biodiversidade
Paulo Coutinho
Qual o valor da biodiversidade? Se imediatamente pensamos que uma
quantidade de dinheiro, mesmo extremamente elevada, é a resposta,
fizemos uma equivalência; haveria assim uma possibilidade de compararmos
dinheiro a algo tão complexo. Se igualamos a biodiversidade - e
há quem fale em "capital natural" - a um estoque qualquer de um
produto ou matéria-prima, haveria uma comparabilidade que nos permitiria
expressá-la em unidades monetárias. Esse raciocínio está baseado
no pressuposto da indiferença na perspectiva de um consumidor individual:
dado um montante de dinheiro disponível, um consumidor, supostamente
bem informado e, portanto, racional, escolheria entre os bens e
serviços necessários para sua satisfação.
A
biodiversidade, quando apresentada como apenas um estoque não diferenciado
de outros recursos econômicos, estaria sujeita a racionalizações
como a apresentada. Se trocamos o dinheiro do consumidor individual
por um certo patamar de desenvolvimento econômico chegamos mais
perto de questões discutidas internacionalmente desde o início dos
anos 70. O objetivo, para muitos, seria alcançarmos uma "escolha
ótima" entre determinado nível de desenvolvimento econômico, expresso
em expansão da produção (PIB) e a preservação ambiental. A idéia,
nem sempre explícita, de que a Amazônia deveria apresentar um desenvolvimento
"com o máximo de preservação possível" esclarece o mecanismo que
opõe crescimento econômico e manutenção da biodiversidade como escolhas
a serem de alguma forma equilibradas em uma "decisão ótima".
Com o estabelecimento da comparabilidade entre dinheiro ou desenvolvimento
econômico - que pode ser expresso em unidades monetárias - e a preservação
ambiental, abre-se a possibilidade de medir em dinheiro a manutenção
total ou parcial de ecossistemas e, por fim, mesmo da biodiversidade.
A que tipo de conclusão pode levar esse raciocínio explicita-se
com as discussões sobre o efeito estufa e a análise de alguns economistas:
não faltaram aqueles que apontaram para o fato de que a economia
americana depende muito pouco de sua produção agrícola e que, portanto,
o impacto causado por eventuais mudanças climáticas seriam também
pouco importantes, pois acarretariam uma pequena queda na produção
total dos Estados Unidos. Mesmo que a produção agrícola nesse país
fosse reduzida à metade, o impacto seria relativamente pequeno;
só faltou a esses economistas a percepção de que sem alimentos todo
o resto da produção estaria comprometida, pois os americanos ainda
comem.
Se os mesmos economistas fizessem um cálculo de quanto seria necessário
de manutenção da atual biodiversidade para manter a atual produção
agrícola mundial poderíamos chegar, por inferência, a um valor monetário
da manutenção de todos os ecossistemas da Terra. Se a Amazônia,
por exemplo, responde parcialmente pela manutenção do equilíbrio
climático planetário, então gera um benefício para fora de suas
fronteiras; alguns economistas chamam a isso de uma externalidade
positiva. O valor financeiro dessa externalidade poderia ser assim
calculado porque estaria expresso na manutenção das condições de
produção de riqueza fora da Amazônia. Uma conclusão a que já se
chegou com esse raciocínio é de que os habitantes da região deveriam
ser pagos para a manutenção desse "serviço" prestado pela floresta.
Esses procedimentos seriam válidos se tomássemos a riqueza gerada
na produção de bens e serviços como algo comparável e substituível
pela biodiversidade. E aí entramos no meio de um intenso debate
que mobiliza há décadas governos, ONGs e instituições internacionais.
Determinadas perdas em "quantidades" de biodiversidade podem nos
levar ao fim de ecosssistemas inteiros, o que seria uma perda irreparável.
A biodiversidade não é um estoque qualquer; não tem substituto perfeito
nem aproximado. Ainda inúmeras espécies não foram nem mesmo catalogadas,
quanto menos avaliados seus eventuais usos. Não temos, assim, a
possibilidade de uma "escolha racional", já que tratamos de algo
desconhecido. Escolher entre desenvolvimento econômico e preservação
ambiental não guarda nenhuma semelhança com a escolha entre sapatos
e camisas. O princípio que deve prevalecer aqui é o da precaução,
dado nosso desconhecimento.
A biodiversidade não é homogênea como um estoque de trigo ou de
televisores. Em todo o planeta, os ecossistemas são únicos e apenas
parcialmente comparáveis. A complexidade da biodiversidade não nos
permite pensá-la em quantidades ou partes e, ainda mais, como não
há nenhuma segurança quanto ao funcionamento de sistemas extremamente
complexos como a Amazônia - se podemos dizer que a Amazônia "funciona"
- não se sabe qual seria o ponto de devastação a partir do qual
o desequilíbrio poderia levar à completa degradação ou colapso desse
ecossistema: não conhecemos o ponto de "não retorno". Supormos que
há escolha entre produção de riqueza econômica e a manutenção da
biodiversidade pode nos levar a equívocos extremamente graves.
Mas, enfim, a biodiversidade não tem um valor? Se pedimos às pessoas
para dizerem quais são seus valores podemos eventualmente ouvir
que é ser muito rico; mesmo para essas pessoas (e para aquelas que
pensariam mas não ousariam dizer) o dinheiro estaria relacionado
como um meio para possuir bens e serviços relacionados ao bem-estar
material, associados a uma vida feliz ou, pelo menos, mais feliz.
Ainda assim, um milionário trocaria todo seu patrimônio por água
potável se estivesse perdido em um deserto.
Trata-se, quando falamos de biodiversidade, da manutenção da vida,
não de uma espécie ou de uma proteína que a indústria farmacêutica
eventualmente possa retirar de vegetais utilizados há milênios por
uma população tradicional. Se a indústria, neste caso, patenteia
o conhecimento de uma tribo da Amazônia e consegue medir o lucro
apurado, o valor dessa planta para um pajé, no entanto, continuaria
sendo outro: a preservação da cultura de seu povo. A biodiversidade,
muitas vezes mantida e conhecida em seus segredos por povos em todo
o planeta por milênios, pode ser fonte para um valor financeiro
apurado em balancetes. Mas a manutenção da vida na Terra, tem um
valor que não pode ser apurado por um raciocínio contábil ou financeiro
qualquer, por melhores que sejam seus computadores e seus modelos
de análise.
A biodiversidade tem um valor intrínseco: trata-se de mantermos
as condições de permanência da vida; é, portanto, incomensurável.
Senão, que medida usaríamos para medi-la? Número de espécies, fluxos
de energia, unidades monetárias ou qualquer outra medida pode nos
dar algumas referências parciais. Não conseguimos atribuir um valor
financeiro à nossa própria vida, ainda que as companhias de seguro
façam lá suas contas. Essas mesmas empresas, no entanto, não se
arriscariam a fazer seus cálculos para a vida no planeta - assim
esperamos - pelo absurdo de que com o fim da biodiversidade não
teríamos ninguém para receber ou pagar o prêmio do seguro.
Paulo
Coutinho é economista, mestre em Ciências Ambientais
e doutorando em Ciências Sociais (Unicamp)
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