Os
riscos ecológicos das plantas transgênicas: o que se
diz e o que se entende.
Flávia
Natercia
Os riscos potenciais que as plantas geneticamente modificadas oferecem
ao ambiente têm sido apontados por cientistas, ambientalistas
e entidades de defesa do consumidor, no Brasil e no mundo, como
obstáculo ao cultivo em larga escala de plantas transgênicas.
No debate travado na grande imprensa brasileira, esses riscos, não
raro, são citados como possíveis fontes de efeitos,
mais que indesejáveis, imprevisíveis para a saúde
humana, a agricultura e a biodiversidade do planeta. E a imprevisibilidade
serve de suporte para que se reivindique a suspensão da liberação
do cultivo em larga escala, da comercialização e até
mesmo do cultivo experimental de transgênicos.
Em um extremo do debate, encontram-se os "tecnófobos",
para alguns "os novos Luditas" (Lewontin, 2001), que são
contrários a qualquer aplicação da engenharia
genética como técnica e proclamam a volta a uma alimentação
"natural". Esta, porém, já não é
mais possível. Como diria Bruno Latour, os alimentos constituem
híbridos de natureza e cultura, embora a modernidade tenha
em grande medida se fundado sobre uma falsa distinção
entre essas duas esferas (Latour, 1994). No outro extremo, estão
os "tecnófilos", que afirmam não haver nada
a temer, uma vez que os organismos transgênicos são
fruto de técnicas mais precisas e seguras de modificação
genética do que os métodos convencionais. Como ocorre
em diversas outras situações, a razão parece
não estar em nenhuma dos dois extremos, e a diferença
entre o que se diz e o que se entende talvez se encontre nas entrelinhas.
Em minha tese de doutorado, analiso as notícias publicadas
sobre os organismos transgênicos, em dois períodos
(1994/1995 e 1999/2000), nos cinco maiores jornais do país:
Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Gazeta Mercantil, O Globo
e Jornal do Brasil. Até o presente momento, foram analisadas
2284 matérias (entre notas, reportagens, artigos e entrevistas).
Grande parte delas trata predominantemente de questões políticas,
normativas ou econômicas, e não das questões
científicas subjacentes, ainda que publicadas em seções
dedicadas à ciência. Por isso, neste artigo, tratarei
de um tópico que, acredito, não foi suficientemente
explorado: não existe mais alimento natural, e uma das implicações
disso é que certos riscos ecológicos dos transgênicos
são previsíveis. Vejamos por quê.
Com razão, os biólogos moleculares afirmam que a engenharia
genética aplicada à agricultura nada é senão
uma nova forma de introduzir variabilidade no processo de melhoramento
genético. E que o melhoramento, iniciado há cerca
de 10 mil anos, já constituía uma forma de manipulação
genética, mesmo não recebendo esse rótulo.
Conseqüentemente, não é correto sinonimizar as
expressões modificação genética e engenharia
genética, como ocorre na mídia. De acordo com Cordeiro
(2000), as plantas e animais domésticos atuais foram tão
modificados geneticamente, que dificilmente sobrevivem sem intervenção
humana.
Durante milênios, basicamente, o que se fazia era cruzar indivíduos
diferentes da mesma espécie para obter híbridos com
características desejadas. A redescoberta, no início
do século, das leis de Mendel por Hugo de Vries, Karl Correns
e Erich Tschermak von Seysenegg proporcionou ao melhoramento uma
sistematização. A hibridização entre
espécies diferentes pode ocorrer, sem intervenção
humana, sendo maior a probabilidade de acontecer entre espécies
"próximas", sobretudo entre as que pertencem ao
mesmo gênero (o que indica uma separação mais
recente de "caminhos evolutivos"). Mas grande parte dos
cruzamentos entre espécies requer a intervenção
humana para dar certo.
Além dos cruzamentos, entre os "métodos clássicos"
de modificação de plantas está a mutagênese
não-direcionada. Mutações, isto é, alterações
nas instruções genéticas podem ser induzidas
nas células vegetais por meio de substâncias químicas
ou radiação ionizante. As alterações
induzidas geram tanto características desejáveis quanto
indesejáveis. Essas técnicas foram responsáveis
pela introdução de diversas características
importantes na agricultura. A gama de variações úteis
era limitada, mesmo assim mais de 150 variedades de planta com características
induzidas por mutagênese foram liberadas. Outros métodos
clássicos são a cultura de anteras e óvulos
e o resgate de embriões. Existem também "técnicas
celulares" de modificação de plantas: a variação
somaclonal e a fusão de protoplastos.
Finalmente, com o surgimento das chamadas técnicas moleculares,
tem início o que se convencionou chamar de engenharia genética.
Essas técnicas envolvem o emprego de vetores (vírus,
plasmídios bacterianos) ou a inserção de genes
por métodos como eletroporação, microinjeção
ou canhões de partículas (Commission of Life Sciences,
1989). Elas se tornaram exeqüíveis, principalmente,
devido à universalidade do código genético.
Essa universalidade faz da evolução dos organismos
um tipo de bricolagem: conjuntos de instruções semelhantes,
com ligeiras variações, são combinados de diferentes
maneiras formando diferentes espécies. Em relação
aos procedimentos anteriores de introdução de variabilidade,
as técnicas moleculares são, de fato, mais sutis e
precisas, embora ainda comportem imprecisões como a incerteza
sobre o número de cópias do gene inserido e o local
de inserção. Nos últimos anos, têm-se
acumulado muitos avanços no sentido de aumentar o grau de
controle sobre a inserção, a contenção
e a expressão dos genes (Carrer, 1998; Zuo, 2001; De Cosa,
2001; Al-Kaff, 2000).
Portanto, tendo em vista as técnicas anteriormente empregadas,
os transgênicos não parecem mais "artificiais"
que os outros vegetais cultivados em larga escala pelo mundo. As
variedades empregadas no cultivo convencional, ecológico
ou orgânico também são frutos de um longo processo
de modificação. Mas, como pondera Norman Ellstrand,
professor de Genética da Universidade da Califórnia
em Riverside, isso não significa uma "boa notícia"
? essa constatação não é sinônimo
de "risco zero"?. É preciso compreender o que fica
insinuado nas entrelinhas: em termos de riscos oferecidos ao ambiente,
é possível buscar lições no passado,
no histórico da introdução de variedades convencionais,
por exemplo, na avaliação do potencial para o surgimento
de "superervas daninhas".
A dispersão de genes de espécies cultivadas para espécies
silvestres e ervas daninhas é potencialmente um problema
ecológico de grande importância. No início da
década de 1990, a visão mais difundida era a de que
a hibridização entre as plantas cultivadas e seus
parentes silvestres ocorria numa freqüência baixa. "Essa
visão era sustentada pela crença de que os caminhos
evolutivos discretos das plantas domesticadas e seus parentes silvestres
levariam a um crescente isolamento reprodutivo e era sustentada
pelos desafios enfrentados às vezes por cultivadores na obtenção
de híbridos entre variedades cultivadas e silvestres"
(Ellstrand, 2001).
De acordo com Hails (2000), a resposta para a questão "Transgênicos
vão formar híbridos com seus parentes silvestres?"
é 'quase certamente sim'. No entanto, a freqüência
com que os cruzamentos vão ocorrer, bem como as conseqüências
desses episódios, é variável. Entre os primeiros
a reconhecer o problema, estão dois cientistas da Calgene,
uma das mais importantes empresas de biotecnologia dos Estados Unidos
responsável pelo lançamento no mercado do tomate de
longa vida Flavr Savr (Ellstrand, 2001).
Mas as espécies cultivadas variam enormemente quanto ao seu
potencial de cruzamento com as espécies silvestres. Em um
extremo, encontram-se aquelas propagadas exclusivamente por partes
vegetativas como a bananeira; no outro, existem as que se reproduzem
obrigatoriamente por cruzamento entre indivíduos diferentes.
Isso depende, entre outros fatores, de características do
pólen e da forma como ele é levado de uma planta a
outra. O pólen de milho, por exemplo, pode percorrer distâncias
superiores a 100 m pela ação do vento. No caso da
soja, o grão de pólen tem maior densidade: a única
maneira de dispersá-lo sem ajuda do homem é por meio
de insetos. Mesmo desse modo, a dispersão do pólen
da soja é extremamente limitada (Borém, 1999). A probabilidade
de escape gênico é também maior no caso de introdução
de uma variedade no centro de irradiação de sua espécie,
ou seja, o local de onde ela surgiu.
Quando, porém, o grupo de Ellstrand se lançou à
tarefa de medir o grau de hibridização espontânea
(sem intervenção humana) entre Raphanus sativus (wild
raddish), uma erva daninha importante na Califórnia, e a
cultivar (variedade domesticada) da mesma espécie, descobriu
que pelo menos um dos alelos (versões de um mesmo gene) presentes
somente na cultivada tinha passado para a erva silvestre. Além
disso, num experimento posterior, o grupo verificou que os híbridos
produziam cerca de 15% mais sementes que as plantas silvestres.
Conclusão? Nesse sistema, o vigor do híbrido favoreceria
a disseminação de alelos característicos da
planta cultivada na população natural (Ellstrand,
2001).
E, para surpresa de muitos, o caso do Raphanus sativus não
representa uma exceção. O grupo realizou experimentos
similares com o sorgo. E constatou que, também nesse caso,
havia uma taxa de hibridização natural entre duas
espécies: Sorghum bicolor (cultivada) e Sorghum halepense
(silvestre). Nesse caso, não foram encontradas diferenças
significativas de aptidão, ou seja, o grau de sucesso relativo
na sobrevivência e reprodução. Outros grupos
de pesquisa fizeram medições e experimentos com outras
plantas cultivadas como o girassol, o arroz e a canola, e encontraram
resultados semelhantes. De exceção, a hibridização
passou a ser encarada como regra entre pelo menos as 13 espécies
mais importantes em termos de cultivo comercial no mundo (Ellstrand
et al.,1999).
O fluxo de genes das plantas cultivadas para seus parentes silvestres
cria ao menos dois problemas a serem administrados: o surgimento
de novas ervas daninhas ou de ervas mais difíceis de combater;
a hibridização de uma cultivar com uma espécie
rara pode levar a segunda à extinção em questão
de poucas gerações. A contribuição potencial
de uma planta transgênica para a formação de
uma supererva daninha depende, em parte, do tipo de característica
inserida. No caso da primeira onda ou transgênicos da primeira
geração, entre os genes de interesse preferencialmente
inseridos nas plantas estavam "instruções"
para resistência a insetos ou herbicidas. Os dois tipos, em
tese, são capazes de favorecer a reprodução
de ervas daninhas. Mesmo que um aumento da capacidade de produzir
sementes não se traduza necessariamente num maior potencial
invasivo, os biólogos moleculares que lidam com essas características
deveriam se preocupar com possíveis efeitos indesejáveis
em populações naturais.
Existe, ainda, a possibilidade de fluxo gênico entre plantas
cultivadas, que parece representar um risco ainda maior de integração
do gene no genoma do híbrido e nas gerações
seguintes. Já foi relatado um incidente de aquisição
de tripla resistência na canola em Alberta, no Canadá.
As plantas se tornaram resistentes a três herbicidas: Roundup,
Liberty e Pursuit, sendo que no caso do último não
se tratava de um "transgene", e sim de uma característica
obtida por técnicas "clássicas" (indução
de mutação).
O autor conclui, acertadamente, que os produtos do melhoramento
genético não são absolutamente seguros, e não
se deve esperar que as plantas transgênicas igualmente o sejam.
Entretanto, o escape de genes das variedades cultivadas para o ambiente
representaria, em termos de manejo, um desafio maior que o de substâncias
químicas indesejáveis. Uma molécula de DDT
"permanece uma única molécula ou se degrada,
mas um único alelo tem a oportunidade de multiplicar-se repetidamente
pela reprodução, que pode frustrar tentativas de contenção"
(Ellstrand, 2001).
Outros riscos ecológicos têm sido avaliados em estudos
científicos, a serem aprofundados em outra ocasião,
como a emergência de resistência entre os insetos-alvo,
efeitos nocivos sobre populações não-alvo de
insetos e o surgimento de novas linhagens virais. (Re)Conhecer tais
riscos, porém, não é o mesmo que levantar barreiras
definitivas ao cultivo comercial de plantas transgênicas.
Muito pelo contrário: reduz a margem de imprevisibilidade
e representa um primeiro passo para que eles sejam corretamente
estudados, avaliados, monitorados e administrados.
A quantidade de perguntas carentes de resposta ainda é bem
grande (Wolfenbarger e Phifer, 2000), o que deve motivar o prosseguimento
das pesquisas, e não sua interrupção. Não
se deve ignorar os benefícios potenciais dos transgênicos
de segunda e terceira geração, enriquecidos nutricionalmente
ou transformados para produzir remédios, hormônios
e vacinas. Por último, cabe lembrar que a esfera técnica
não esgota o assunto; a discussão científica
nunca deve ser dissociada do debate mais amplo sobre as conseqüências
econômicas, políticas, sociais e culturais.
Flavia Natércia é bióloga, mestre em Ecologia
pela Universidade Estadual de Campinas e doutoranda em Comunicação
Social na Universidade Metodista de São Paulo, na área
de Divulgação Científica e Políticas
de C&T.
Referências
bibliográficas:
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Borém, Aluízio. Escape gênico ¾ os
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ano II, no 10, setembro/outubro 1999: 101-107, disponível
na URL: http://www.biotecnologia.com.br
- Carrer,
Helaine. Transformação de cloroplastos ? quais as
vantagens em se modificar esta organela? Revista Biotecnologia,
ano I, no 5, março/abril 1998: 52-54, disponível
na URL: http://www.biotecnologia.com.br
- Commission
of Life Sciences. Field testing genetically modified organisms:
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em http://www.nap.edu
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