Patentes
em biotecnologia no Brasil
Maria Isabel de Oliveira Penteado
Nos
últimos anos, tornou-se freqüente ouvir expressões
como: "o caminho da pesquisa é a patente"; "patentear
é condição sine qua non de sobrevivência
das universidades brasileiras" (Knapp, L., Gazeta Mercantil,
23/3/2000); "patentear primeiro e publicar depois deveria ser
a lógica vigente entre os pesquisadores brasileiros"(Castelo,
R. Pesquisa Fapesp, maio, 2001, p.11) e assim por diante.
Isso mostra o quanto o Brasil mudou sua mentalidade na maneira de
lidar com suas inovações e tecnologias.
Essa
preocupação pode ser atribuída, em grande parte,
ao reconhecimento, cada vez maior, de que as patentes e suas conseqüências
fazem parte do nosso dia a dia, seja no controle de preços,
seja na redução de postos de trabalho pela não
produção local, seja pela dificuldade de acesso a
tecnologias monopolizadas. Tudo isso é resultado de vários
acordos internacionais que favorecem alguns países em detrimento
de outros, cabendo a estes últimos submeterem-se às
regras impostas pela necessidade de manter relações
comerciais. Em outras palavras, uma vez partícipe, temos
que cumprir nossa parte. Ou seja, o Brasil vem se adequando à
realidade das patentes, que é recente para nós, sobretudo
em algumas áreas, como a biotecnologia, porém já
é muito estabelecida em outros países.
A proteção
patentária representa apenas uma parte da propriedade intelectual,
que também contempla proteções sobre variedades
de plantas, programas de computador, direitos autorais e circuitos
integrados. A proteção por patentes é parte
da Propriedade Industrial, que trata dos direitos sobre Invenções,
Modelos de Utilidade, Marcas e Desenhos Industriais.
O grande
interesse nas patentes é conseqüência do fato
de esta proteção ser concedida na forma de direitos
exclusivos de exploração, ou seja, permite excluir
terceiros da produção ou do uso do processo de produtos
patenteados. Do ponto de vista científico, as patentes são
consideradas um incentivo à inovação, não
só pelos rendimentos advindos da comercialização
das mesmas, mas pela revelação segura do conhecimento
de forma a permitir o avanço das pesquisas.
Se
formos considerar apenas uma área da ciência, a biotecnologia,
esta pode ser definida como a aplicação de conhecimentos
de biologia e bioquímica para satisfazer ou solucionar necessidades
práticas. Segundo essa definição, a biotecnologia
é tão antiga quanto plantar ou fabricar queijos e
vinhos. Entretanto, atualmente, a biotecnologia é amplamente
identificada com aplicações em medicina e agricultura
com base nos conhecimentos dos códigos genéticos da
vida. Vários termos têm sido utilizados para definir
esta forma de biotecnologia, incluindo-se "engenharia genética",
"transformação genética", "tecnologia
de DNA recombinante" e "modificação genética".
A tecnologia de modificação genética começou
a ser desenvolvida na década de 1970 e um dos resultados
mais notáveis, além das aplicações médicas,
tem sido o desenvolvimento de novas variedades de plantas transgênicas.
Além
das polêmicas sócio-ambientais e econômicas que
estes produtos têm gerado no mundo, muitas questões
também têm sido levantadas quanto à proteção
legal sobre invenções biotecnológicas. E, a
justificativa que se tem para proteger uma invenção
biotecnológica é a mesma usada para proteger qualquer
outro tipo de inovação: a patente ainda é
a melhor forma de incentivar a pesquisa e desenvolvimento de novos
produtos e processos e também de garantir a disponibilização
das inovações no mercado, principalmente quando se
leva em consideração os custos e riscos envolvidos
em áreas como a biotecnologia.
Cada
país tem sua própria legislação relativa
à propriedade industrial, a qual é aplicável
somente aos atos ocorridos dentro dos seus limites territoriais.
Assim, se o proprietário de uma patente quiser obter direitos
legais de monopólio sobre seu invento em diferentes países,
deverá solicitar proteção separadamente em
cada país de interesse. Isso também representa a possibilidade
de obter proteções distintas em cada país,
dependendo das diferenças previstas nas leis.
No
Brasil, a Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9279/96), em
vigor desde 14/05/97, proíbe (Art. 18, alínea III)
a concessão de patentes para "o todo ou parte de seres
vivos, exceto os microrganismos transgênicos que atendam aos
requisitos de patenteabilidade - novidade, atividade inventiva e
aplicação industrial - previstos no art. 8º e
que não sejam mera descoberta". Ainda, no parágrafo
único do Artigo 18, é definido, para fins da Lei que
"microrganismos transgênicos são organismos, exceto
o todo ou parte de plantas ou de animais, que expressem, mediante
intervenção humana direta em sua composição
genética, uma característica normalmente não
alcançável pela espécie em condições
naturais".
Isso
quer dizer que no Brasil não é possível
patentear plantas ou animais, mesmo transgênicos. Essa
proibição se baseia na possibilidade aberta no artigo
27 do acordo TRIPS (Agreement on Trade-Related Aspects of Intelectual
Property Rigths), da OMC (Organização Mundial do Comércio),
que versa sobre matéria patenteável e estabelece que
podem ser excluídos de patenteabilidade "plantas e animais,
exceto microrganismos...". Esta possibilidade, entretanto,
pode ser alterada, uma vez que se prevê no mesmo artigo,
a sua revisão, quatro anos após o acordo ter entrado
em vigor.
Os
Estados Unidos concedem patente para plantas desde 1930 e para animais
desde o início da década de 80, embora mantenham restrições
para patenteamento de invenções na área humana,
onde apenas algumas situações especiais são
consideradas patenteáveis, como por exemplo, o seqüenciamento
de genes para produção de proteínas comercializáveis.
A Comunidade
Européia, que se posicionou muito fortemente contra o patenteamento
de plantas e animais, já reviu sua lei, no sentido de conceder
patente para esse tipo de invenção. Conforme a Diretiva
94/44/EC para a Proteção Legal de Invenções
Biotecnológicas, que entrou em vigor em 30/07/98, passou
a ser permitido o patenteamento de plantas e animais incluindo os
transgênicos, desde que a invenção não
ficasse restrita a uma variedade particular de planta ou animal.
Se
o Brasil vai adotar ou não uma abertura na lei ou um posicionamento
favorável ao patenteamento de seres vivos, é uma
decisão que deveria ser considerada com muita cautela
já que envolve conseqüências seríssimas
para toda a sociedade brasileira. Se, por um lado há um interesse
mundial declarado sobre a biodiversidade brasileira, o que significa
um interesse pelos genes nativos, por outro há um forte
desequilíbrio entre os países desenvolvidos (que
detém o conhecimento e os recursos financeiros) e países
em desenvolvimento (que possuem a maior parte dos recursos genéticos).
Cabe, portanto, fazer uma reflexão sobre alguns aspectos
relativos ao patenteamento em biotecnologia.
As
patentes são necessárias na área de biotecnologia
porque representam forte incentivo à inovação
e ao desenvolvimento da pesquisa tecnológica. Sem a salvaguarda
oferecida pela proteção legal, as indústrias
e outros inventores não se habilitariam a investir tempo
e dinheiro em pesquisa e desenvolvimento, especialmente quando se
tem em mente os altos custos e riscos da pesquisa em biotecnologia.
O raciocínio é que pela prevenção da
competição durante a vigência da patente, o
dono poderá extrair o máximo retorno pelo uso da invenção.
Entretanto, para isso, a companhia deverá revelar os detalhes
do trabalho. Dessa forma, em retorno ao pagamento do monopólio
de preços, o público recebe o conhecimento contido
na invenção, com o qual outros pesquisadores podem
desenvolver novos produtos.
Mesmo
no contexto de invenções biotecnológicas, as
descobertas não são passíveis de proteção,
porque não são consideradas invenções.
Uma invenção pode ser definida como uma idéia
nova que, uma vez concretizada, permite solucionar um problema específico
existente num campo qualquer da tecnologia. Assim, mesmo que o problema
seja antigo, a solução deve ser nova e inventiva.
Portanto, o simples seqüenciamento de genes não pode
ser protegido por patente, a menos que se agreguem conhecimentos,
funções, para tornar essa seqüência tecnicamente
útil e comercialmente aplicável. O seqüenciamento
per si é considerado uma "descoberta", um
"processo tecnológico". Sequenciar total ou parcialmente
um gene pode constituir uma invenção patenteável,
mesmo que a estrutura descrita seja idêntica à forma
como ocorre na natureza.
A invenção
pode ser caracterizada pelo isolamento de tal gene de seu ambiente
natural por uma determinada técnica e, dependendo do estado
da arte e de apresentar atividade inventiva e aplicação
industrial, pode ser patenteável. Exemplificando, se o objeto
da invenção for um processo compreendendo a etapa
de transformação de células ou tecidos, com
um DNA recombinante e a etapa subseqüente de regeneração
e reprodução de plantas e sementes, esta pode ser
uma tecnologia patenteável. A explicação para
essa possibilidade está no fato de que o processo como um
todo não é essencialmente biológico ou um processo
biológico natural (Art. 10, inciso IX da Lei de Propriedade
Industrial), porque a etapa de transformação é
essencialmente técnica, com impacto decisivo na obtenção
do resultado final e não poderia ocorrer sem a intervenção
humana.
Segundo
a interpretação do Conselho Europeu, da Diretiva 98/44/EC
e do Parlamento Europeu, a proteção à propriedade
intelectual para invenções baseadas em genes deverá
representar um papel importante no estímulo ao investimento
em tecnologia usando as informações do genoma humano
para desenvolver novos produtos de interesse, por exemplo, na área
de saúde. O mesmo raciocínio é válido
para plantas, animais ou microrganismos.
No
caso de pesquisas biotecnológicas em vegetais, especialmente
no desenvolvimento de plantas transgênicas, mesmo que se disponha
de genes de grande interesse agronômico, para que seja produzida
uma variedade comercialmente interessante, será imprescindível
a inserção de tal gene em variedades adaptadas aos
diferentes locais. Sob este aspecto, lembrando mais uma vez que
o Brasil possui uma biodiversidade significativa e, portanto a real
possibilidade de fornecer materiais adaptados a diferentes condições
de estresses bióticos ou abióticos, a proteção
intelectual poderá ser interessante desde que se alcance
um ponto de equilíbrio entre países em desenvolvimento,
detentores de recursos genéticos e de conhecimento tradicional
e países desenvolvidos detentores de recursos financeiros
e conhecimentos de alta tecnologia.
Nessa
linha, podemos lançar mão de licença cruzada
de patentes biotecnológicas - caso em que a exploração
de uma patente necessariamente exige o uso de uma outra patente
anterior - ou do aumento do valor agregado de uma planta transgênica,
através da adaptação às condições
(climáticas e de solo) brasileiras. Para exemplificar, consideremos
uma empresa de grande porte, possuidora da patente de um gene cuja
inserção em variedades brasileiras seja vantajosa
para ambas partes. O licenciamento do uso dessa tecnologia pode
ser vantajosa para ambas as partes, licenciador e licenciado, na
medida em que um necessita do germoplasma brasileiro e outro precisa
da técnica patenteada. Evidentemente que neste caso, é
muito importante uma boa negociação e um contrato
entre as partes, com cláusulas justas, que reconheçam
o devido valor do germoplasma brasileiro. É isso que vai
determinar o sucesso e o valor da tecnologia e do produto. Esta
seria uma forma de aproximar os países desenvolvidos dos
em desenvolvimento e o Brasil não pode deixar de aproveitar
essa oportunidade de crescimento, desde que se posicione de forma
competente em relação ao assunto.
Convém
salientar que o Brasil foi pioneiro em legalizar a biodiversidade
e que vem se destacando na área genômica, gozando hoje
de reconhecida contribuição na análise de genoma
ou seqüenciamento de gêneros importantes como arroz,
cana de açúcar, eucalipto, a Xylella, entre outros.
Portanto,
mesmo o Brasil não sendo no momento, um país com número
expressivo de patentes internacionais na área de biotecnologia,
pode tirar bom proveito do sistema patentário desde que se
capacite no entendimento das regras que regem a propriedade intelectual,
capacite seus recursos humanos e utilize os direitos previstos por
lei, para tirar proveito dos seus recursos genéticos e da
tecnologia gerada no país.
Maria
Isabel de Oliveira Penteado é engenheira agrônoma,
doutora em Biotecnologia de Plantas, pesquisadora de genética
molecular, atualmente trabalhando na elaboração de
patentes para Embrapa.
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