Nanociência
e Nanotecnologia
Alaor Chaves
Há muito sabemos que a matéria é feita de átomos,
que se ligam formando moléculas. Muito já se conhece
sobre a forma como átomos ou moléculas se agregam
- na linguagem técnica, se condensam - para formar sólidos
ou líquidos. Com base nesse conhecimento, foram obtidos importantes
avanços na ciência e tecnologia dos materiais. Tal
tecnologia permite a produção de cristais sintéticos
diversos, desde diamantes até os cristais de silício
com os quais fabricamos os chips dos computadores, de materiais
magnéticos para gravação e armazenamento de
dados, de ligas diversas para a indústria mecânica,
de materiais plásticos e vítreos, e mais uma grande
variedade de materiais com propriedades específicas e otimizadas
para aplicações industriais diversas.
Esses
materiais já desenvolvidos pelo homem são relativamente
simples. Um material cristalino é uma composição
de unidades básicas, denominadas células cristalinas,
cada uma contendo um pequeno número de átomos, justapostas
em um arranjo periódico como tijolos empilhados. Em contraste,
em um material amorfo, como são os vidros e também
os líquidos, átomos ou moléculas estão
dispostos de forma desordenada, aleatória, mas dessa extrema
desorganização também resultam propriedades
simples, facilmente entendidas. Entretanto, nem tudo na natureza
é tão simples. Freqüentemente, a matéria
se auto-organiza em estruturas muito mais complexas que as produzidas
pela engenharia dos materiais já dominada pelo homem. No
ápice dessa complexidade estão os seres vivos. Neles,
átomos se combinam em estruturas com uma forma hierárquica
de complexidade: aminoácidos se combinam para formar proteínas
de enorme diversidade, essas e outras estruturas moleculares formam
células e tecidos também muito diversos, culminando
em uma unidade capaz de crescer, auto-reproduzir, fazer reparos
de danos em si mesmos, e finalmente perder tal capacidade de auto-reparo,
com a conseqüente interrupção das funções
e a decomposição do organismo.
Recentemente,
surgiram a nanociência e a nanotecnologia (N & N), que
têm por meta dominar parte, pequena que seja, do virtuosismo
da natureza na organização da matéria átomo
por átomo, molécula por molécula. Esses dois
neologismos derivam de nano, prefixo usado na ciência
para designar um bilionésimo. Assim, um nanômetro (símbolo
nm) é um bilionésimo de metro. Para termos de comparação,
um átomo mede cerca de 2 décimos de um nanômetro
e o diâmetro de um fio de cabelo humano mede cerca de 30.000
nanômetros. Assim, a nanociência e a nanotecnologia
visam, respectivamente, a compreensão e o controle da matéria
na escala nanométrica ou, de forma mais abrangente, desde
a escala do átomo até cerca de 100 nanômetros,
que coincidentemente é a escala típica de um vírus.
Apesar desses desenvolvimentos ainda estarem no seu início,
em uma fase exploratória, as possibilidades já parecem
quase sem limites e a nanotecnologia promete ser uma grande revolução
tecnológica.
Um
dos feitos mais importantes para o desenvolvimento da N & N
foi a invenção em 1981 do microscópio de varredura
por tunelamento eletrônico (scanning tunneling microscope
- STM) por Gerd Binning e Heinrich Roher, do laboratório
da IBM em Zurique. A concepção do STM é bastante
simples. Uma agulha extremamente fina, cuja ponta é constituída
de alguns poucos átomos ou até mesmo de um único
átomo, "tateia" uma superfície sem nela
tocar, dela afastada de menos de um nanômetro. Durante a varredura
da agulha, elétrons tunelam (tunelamento é uma forma
de movimento de origem quântica que ocorre na escala atômica)
da agulha para a superfície e com base nessa corrente de
tunelamento um computador constrói uma imagem extremamente
ampliada da superfície, na qual ficam visíveis os
seus átomos. Dessa forma, pela primeira vez o relevo atômico
da superfície de um corpo pôde ser visto e investigado.
O STM
deu origem a uma família de instrumentos de visualização
e manipulação na escala atômica, coletivamente
denominados microssondas eletrônicas de varredura (scanning
probe microscopes - SPM). Além da visualização
nanométrica de uma superfície, os SPM permitem manipular
átomos e moléculas, que podem se arrastados de um
ponto e depositados em outro ponto previamente selecionado. Em um
sentido figurado, os SPM podem operar como pinças capazes
de manipular átomos e moléculas. Isso foi demonstrado
de forma espetacular em 1990, quando Donald Eigler e Erhard Schweizer,
do laboratório da IBM em Almaden, Califórnia, escreveram
o logotipo IBM precisamente posicionando 35 átomos de xenônio
sobre uma superfície de níquel, como se vê na
Figura 1.
Uma
série de desenvolvimentos referentes à construção
de estruturas na escala nanométrica contribuíram decisivamente
para o advento da N & N. O primeiro deles foi a invenção
da epitaxia por feixes moleculares (molecular beam epitaxy
- MBE ) nos anos 1970s. Tal técnica consiste na produção
de filmes cristalinos pela exposição de um substrato
cristalino, aquecido e sob condições de ultra-alto
vácuo, a feixes atômicos ou moleculares. Hetero-estruturas
de filmes alternados com composições distintas (por
exemplo, GaAs e AlGaAs) e espessuras nanométricas podem ser
produzidas com controle de suas espessuras na escala atômica;
ou seja, a espessura de cada camada pode ser predefinida e controlada
com a precisão do tamanho do átomo. Na direção
do crescimento tais hetero-estruturas são sistemas nanométricos,
mas no plano ortogonal a essa direção são filmes
macroscópicos, na escala de centímetros. Técnicas
de litografia utilizando feixe eletrônico permitem recortar
os filmes superpostos e dessa forma fabricar estruturas nanométricas
nas três dimensões. O resultado são as chamadas
caixas quânticas, ou pontos quânticos. Essas caixas
quânticas apresentam fenômenos de natureza intrinsecamente
quântica com enorme potencial de aplicação em
nanotecnologia. Caixas quânticas podem também ser produzidas
por processos de segregação de materiais distintos
durante o crescimento epitaxial, por outras formas de crescimento
ou até mesmo por métodos de síntese de materiais,
em decorrência de auto-organização espontânea.
A Figura 2 mostra uma caixa quântica de germânio, em
forma de pirâmide, produzida por auto-organização
espontânea durante crescimento por MBE. A auto-organização
espontânea é uma classe muito ampla de fenômenos
que tem exploração crescente em N & N.
Parte
muito significativa da N & N concentra-se na criação
de novas moléculas com arquiteturas muito especiais, do que
resultam propriedades também muito especiais. Esse é
um campo muito amplo e interdisciplinar envolvendo a química,
a física, a bioquímica, a biofísica, a engenharia
de materiais, a ciência da computação e a medicina.
Grande esforço está sendo concentrado na invenção
e produção de moléculas cuja arquitetura faça
com que elas se auto-organizem em estruturas maiores, similarmente
ao que ocorre com as moléculas biológicas. As possibilidades
vislumbradas são de tirar o fôlego: computadores moleculares
muito mais poderosos, catalisadores nanométricos mais diversificados
e eficientes, materiais avançados para próteses, e
até anticorpos sintéticos capazes de encontrar e destruir
vírus ou células cancerígenas onde eles se
encontrem no corpo. Na verdade, toda a farmacologia pode obter avanços
revolucionários advindos da N & N: os princípios
ativos das drogas podem ser agregados à superfície
ou encapsulados no interior de macromoléculas projetadas
para serem absorvidas por órgãos específicos
do corpo, ou por órgãos afetados por determinadas
doenças, onde finalmente liberarão a droga. Dessa
forma, doses muito menores de drogas podem se tornar efetivas, com
a conseqüente drástica redução dos efeitos
colaterais.
Uma
das vedetes das novas moléculas são os nanotubos de
carbono (Figura 3), criados em 1991 por Sumio Ijima, da NEC. Esses
nanotubos são formados por folhas de átomos de carbono,
em um arranjo hexagonal, que se enrolam para formar um espaguete
com diâmetro tipicamente entre um e dois nanômetros.
Os espaguetes podem ser muito longos e se fecham por átomos
de carbono em arranjo pentagonal. A parede do espaguete pode conter
mais de uma folha de átomos, mas desde 1993 já se
controla a técnica de síntese de espaguetes de uma
única folha, ou seja, espaguetes cujas paredes têm
apenas uma camada atômica. Propriedades importantes dos nanotubos
são determinadas pelo seu diâmetro e pela sua quiralidade,
ou seja, pela forma como os hexágonos de átomos de
carbono se orientam em relação ao eixo do tubo. Esforços
são empreendidos no sentido de se controlar tais propriedades
no processo de síntese ou por seleção posterior
à síntese.
Os
nanotubos de carbono podem vir a ser uma verdadeira maravilha de
1001 utilidades. Uma aplicação que seguramente será
implementada no curto prazo é a aglomeração
texturizada de nanotubos para a composição de materiais
cinco vezes mais leves e vinte vezes mais resistentes que o aço,
além de capazes de operar sob temperaturas três vezes
mais elevadas. Materiais com tais propriedades revolucionarão
a indústria mecânica, especialmente a de veículos
terrestres, aéreos e espaciais, que se tornarão muito
mais duráveis, leves e eficientes no uso da energia de seu
combustível.
Outras
aplicações mais avançadas dos nanotubos envolvem
o conceito de funcionalização: moléculas já
existentes ou especialmente projetadas são afixadas em pontos
predeterminados dos nanotubos com o objetivo de realizar funções
ou operações muito especiais. Alguns feitos muito
importantes e promissores já foram realizados com nanotubos
funcionalizados. Por exemplo, com tais nano-objetos já se
conseguiu realizar operações características
de dispositivos fundamentais da microeletrônica, tais como
transistores e diodos. Isso aponta para uma microeletrônica
de nanotubos, com a qual poderão eventualmente ser construídos
computadores muito mais possantes. Nanotubos já estão
também sendo usados como agulhas em microssondas eletrônicas
de varredura e em sistemas de de-ionização da água.
Essa última aplicação tem concepção
muito simples. Nanotubos são afixados por uma das extremidades
a uma placa metálica, como cabelos de diâmetro nanoscópico.
Uma fração, ainda não controlada, desses nanotubos
são condutores de eletricidade. Tem-se assim uma terminação
elétrica com enorme área específica, de metros
quadrados por miligrama. Se duas placas paralelas, orientadas de
forma que os "cabelos" fiquem voltados para o espaço
interior a elas, são eletrificadas com polaridades opostas,
como em um capacitor, e imersas em água, os íons livres
na água irão aderir-se aos nanotubos com carga oposta
aos seus. A grande área específica dos nanotubos permite
a coleta de enorme quantidade de íons e somente é
despendida a energia elétrica necessária para vencer
a resistência elétrica dos tubos. Com tal aparato já
se consegue dessalinizar água do mar com custo energético
pelo menos dez vezes menor do que o processo convencional mais econômico,
o da osmose inversa.
Na
área de materiais, o potencial da N & N é imenso.
Novas cerâmicas, polímeros e borrachas serão
desenvolvidos, com propriedades superiores aos já existentes.
Além do mais, a própria forma de produção
dos materiais sofrerá transformações profundas.
Resumindo,
a nanotecnologia será uma revolução tecnológica
de grande abrangência e de impacto talvez sem precedentes
na história. Ela é o passo final, ou quase, na busca
pelo homem do controle sobre a matéria, o controle átomo
por átomo, molécula por molécula. Enfim, a
engenharia na escala atômica, a escala última da matéria
ordinária. Suas conseqüências serão enormes
avanços no bem estar material das pessoas e na sua saúde,
e redução do impacto da atividade industrial sobre
o planeta, tanto pela produção de bens mais duráveis
quanto pela maior eficiência na utilização da
energia.
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Figura
1 - Engenharia na escala atômica - Em 1990, 35
átomos de xenônio foram arranjados sobre uma superfície
de níquel para compor o logotipo da IBM. Com manipulação
nessa escala, moléculas podem ser fabricadas, ou modificadas,
átomo por átomo. |
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Figura
2 - Uma pirâmide nada faraônica - Em crescimento
por epitaxia por feixes moleculares, átomos de germânio
auto-organizaram espontaneamente sobre uma base de silício
para formar essa nanopirâmide. A auto-organização
espontânea, que acabou gerando o fenômeno da vida,
é mais comum na Natureza do que se pensava. Isso tem
enorme importância e abre muitas possibilidades na N &
N. |
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Figura
3 - Nanotubo de carbono - Folhas de arranjos hexagonais
de átomos de carbono se enrolam para formar tubos longos,
mas com diâmetro tipicamente entre 1 e 2 nanômetros.
As extremidades, não mostradas na figura, são
compostas de átomos em arranjo pentagonal. Essa surpreendente
"macromolécula" é uma das vedetes da
N & N. |
Alaor
Chaves é professor da UFMG e Coordenador do Instituto do
Milênio de Nanociências - Ministério da Ciência
e Tecnologia
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