Reavaliando
Gilberto Freyre
Gustavo
Henrique Tuna
Sempre
quando a questão racial no Brasil é discutida, o nome
de Gilberto Freyre é lembrado. É bem verdade que a
discussão em torno de suas idéias foi obscurecida
nos anos 1960 no Brasil em virtude de dois aspectos: a sua proximidade
inicial com figuras históricas atuantes no golpe de 1964
e a mitificação criada por Freyre a respeito do poder
democratizador da miscigenação racial no Brasil. Já
nos anos 1980, os textos de Freyre começaram a ser reavaliados
e sua obra ganhou um status novo dentro do pensamento social brasileiro.
Há
que se observar que os limites entre raça e cultura são
bastantes tênues na obra de Freyre, como se pode notar em
Casa-Grande & Senzala, seu livro mais famoso, publicado
em 1933. Uma leitura atenta do texto mostra que o sociólogo
pernambucano usa uma linguagem racializada ao analisar a formação
da sociedade brasileira. Os indígenas são classificados
como um grupo de determinadas características comportamentais,
como indolência e inconstância. Faz-se necessário
dizer que Freyre também faz uma divisão hierárquica
entre os indígenas da América Portuguesa e os da América
Hispânica. Segundo ele, os incas, astecas e maias constituíram
civilizações de cultura muito superior à dos
indígenas do Brasil. Os negros, por sua vez, seriam superiores
aos indígenas no processo de formação da sociedade
brasileira.
Uma
das contribuições mais interessantes de Freyre em
relação à experiência dos escravos africanos
no Brasil é a respeito da ação do meio sobre
o africano. Freyre afirma em Casa-Grande & Senzala que
é impossível separar a condição do africano
de sua condição de cativo no Brasil. Sendo assim,
deve-se ter em mente que o africano no Brasil deve ser estudado
tendo-se em vista a degradação de sua cultura sob
a condição escrava. Desta maneira, Freyre propõe
que os negros no Brasil não sejam considerados inferiores,
mas sim estudados como indivíduos inferiorizados.
Este
viés da obra de Freyre leva-nos à uma questão
importante: a da caracterização de Freyre a respeito
da leniência da escravidão no Brasil. Como se sabe,
Freyre é conhecido por ter propagado a idéia de uma
benignidade das relações entre senhores e escravos
no Brasil. De fato, em Casa-Grande & Senzala o sociólogo
sugere em vários momentos uma visão edulcorada da
escravidão no Brasil, inclusive antepondo-a a um cenário
de violência que caracterizaria o regime escravista no sul
dos Estados Unidos. Entretanto, cumpre salientar que, assim como
o sociólogo caracteriza como leniente a escravidão
no Brasil, há também passagens em que Freyre denuncia
o sadismo dos senhores e dos padres jesuítas com os escravos,
a crueldade das senhoras em relação às escravas
mais bonitas, a sifilização de indígenas e
negros em virtude do contato sexual com os portugueses, entre outras
imagens que sugerem a violência das "relações
raciais" no Brasil. O fato dessas duas realidades - a benignidade
e a violência - estarem presentes em Casa-Grande & Senzala
é explicada pela habilidade de Freyre em construir a idéia
segundo a qual a formação brasileira seria marcada
por "um processo de equilíbrio de antagonismos".
Nesta linha, os conflitos existentes na sociedade brasileira seriam
amortecidos, isto é, os antagonismos - que poderiam ocasionar
choques violentos - caminhariam, no Brasil, para um processo de
harmonização.
Outra
contribuição dos textos de Freyre sobre a formação
histórica brasileira é o destaque concedido à
miscigenação. Considerada até então
como fato prejudicial ao desenvolvimento da sociedade brasileira,
a miscigenação é vislumbrada de forma positiva
por Freyre. Neste sentido, a tese freyriana do escravo negro como
civilizador, segundo a qual haveria uma incorporação
de usos e costumes africanos pelos brancos, é central na
valorização da miscigenação empreendida
pelo sociólogo.
Os
críticos à exaltação da mestiçagem
apontaram para os exageros do pernambucano ao afirmar que a miscigenação
teria corrigido as distâncias sociais no Brasil e ao considerar
o mestiço um tipo "eugênico" superior. Em
outros termos, o que os críticos desejaram demonstrar é
que o processo de miscigenação no Brasil não
resultou numa amenização das desigualdades sociais
entre as "raças" no Brasil e que Freyre foi imprudente
ao cair numa armadilha, qual seja, a de valorizar a mestiçagem
exaltando o produto dela, colocando-o numa escala superior aos demais.
Desde
a publicação de Casa-Grande & Senzala,
em 1933, a obra de Freyre foi intensamente analisada. A pesquisa
na área das ciências sociais e história institucionalizou-se
no Brasil, ganhou novos contornos e vários pontos da interpretação
da sociedade brasileira elaborada por Freyre foram postos em xeque.
Ainda assim, nos dias atuais, a obra de Freyre permanece como referência
nos estudos de "relações raciais" e de "pensamento
social" no Brasil, devido ao seu caráter interdisciplinar
e à sua ênfase no que hoje chamamos de "multiculturalismo".
Neste
ano em que Casa-Grande & Senzala completa 70 anos, a
editora Global lança uma nova edição do livro
com muitas novidades. A edição traz uma apresentação
feita por Fernando Henrique Cardoso, além de dois cadernos
iconográficos. O primeiro caderno traz imagens referentes
ao conteúdo do livro. O segundo, por sua vez, é dedicado
ao autor e às várias edições da obra.
Há ainda uma biobibliografia do autor, elaborada por Edson
Nery da Fonseca, um dos melhores amigos de Gilberto Freyre e profundo
conhecedor de sua obra. A biobibliografia é minuciosa no
levantamento dos fatos mais marcantes da vida de Freyre, bem como
no levantamento dos artigos e livros publicados pelo sociólogo
nos seus 87 anos de vida.
Nessa
nova edição, os índices remissivos e onomástico
foram integralmente refeitos. No índice remissivo anterior,
existiam lacunas importantes, como a falta de uma entrada maior
sobre patriarcalismo (aspecto central da obra) e sobre outros assuntos
importantes abordados em Casa-Grande & Senzala. Em relação
ao índice onomástico, foram adicionados nomes que
estavam ausentes no índice anterior. As notas bibliográficas
foram revisadas no sentido de corrigir a grafia de nomes de autores
e de títulos de obras.
Nos
próximo meses, a Global publicará Sobrados e Mucambos
(1936) e Ordem e Progresso (1959), - completando assim a
série "Introdução à História
da Sociedade Patriarcal no Brasil" iniciada por Casa-Grande
& Senzala. Além da "trilogia" a Global
publicará também Nordeste (1937), onde Freyre
analisa os efeitos da cana-de-açúcar sobre a paisagem
e sobre a vida social do Nordeste do Brasil.
Gustavo
Henrique Tuna é historiador e bolsista do Programa de Formação
de Quadros Profissionais do Cebrap. Foi responsável pela
atualização dos índices remissivo e onomástico
e pela revisão das notas bibliográficas da nova edição
de Casa-Grande & Senzala, (São Paulo, Global, 2003).
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