A
formação de pesquisadores negros
Henrique
Cunha Jr.
Uma
necessidade democrática
A história da formação social brasileira é
a história do escravismo criminoso que produziu ao longo
de quase 300 anos a imigração massiva de africanos.
Como os processos de invasões européias no continente
africano encontraram fortes resistências, as regiões
de exploração e lutas variaram e se alternaram no
tempo, fazendo com que os cativos africanos para aqui trazidos viessem
de diversas regiões e culturas. Dado o imenso desenvolvimento
técnico e social, para época, vivido pelos diversos
países africanos, o Brasil absorveu e se beneficiou de mão-de-obra
portadora de todas as técnicas e conhecimentos utilizados
nos diversos campos da produção no país. O
conhecimento produtivo do Brasil Colônia é fundamentalmente
africano, nas áreas de mineração, produção
de ferro, agricultura, produção de açúcar,
manufaturas, tecelagem, construção. O mesmo se dá
no campo da política, se considerarmos que os quilombos foram
a forma mais sistemática da produção de contestação
do estado escravista. Não paradoxalmente, as artes e a cultura
se fundam também sobre as mesmas heranças africanas.
Até as literaturas e as músicas ditas eruditas são
realizadas por africanos e descendentes de africanos. Basta nomearmos
os marcos das nossas artes e da nossa literatura para constatarmos
tal evidência.
A produção
da pesquisa científica no Brasil é iniciada nos finais
do século XIX e início do XX, aí também,
vamos encontrar a participação ativa de afrodescendentes.
Há casos extremos como o do engenheiro Teodoro Sampaio, que
filho de escrava, depois de formado na Escola Politécnica
do Rio de Janeiro, volta à Bahia para comprar a liberdade
de sua mãe. Tornou-se geógrafo, sanitarista, pesquisador,
está entre os fundadores da Escola Politécnica da
Universidade de São Paulo.
A contradição
que nos preocupa é a de que, mesmo em face de inúmeras
evidências históricas, ainda ser necessária
a discussão sobre a pesquisa que trata da população
negra e sobre a formação de pesquisadores negros.
Os argumentos da história não são suficientes
para a consciência de que existe um erro se perpetrando na
composição dos corpus de pesquisadores brasileiros,
nas temáticas eleitas pela ciência brasileira e sobretudo
nas políticas científicas e de formação
de pesquisadores no país. Surpreendente não é
apenas a ausência de políticas nesta área, como
também a falta de preocupações democráticas
com a implantação destas. Num país que forma
6000 doutores por ano, temos que menos de 1% são negros e
menos das teses 1% tratam temas de interesse das populações
afrodescendentes.
"Ninguém
discrimina ninguém, a razão disso é que o negro
é pobre", dizem. Errado, a razão é que
os métodos de discriminação estão tão
institucionalizados que não incomodam às consciências
críticas. É tido natural o negro não entrar
nos programas de pós-graduação. Examinando
o histórico de cerca de dois mil mestres e doutores negros
existentes no país, vemos que a faixa etária das candidaturas
e os regimes de trabalhos estão fora dos perfis privilegiados
pelas políticas e pelos programas de pós-graduação.
A média dos pesquisadores negros ingressa no mestrado aos
35 anos, trabalha e precisa participar do sustento da família,
o que é incompatível com o número e valores
das bolsas. Os programas favorecem quem, em iniciação
cientifica e artigos? Os pesquisadores negros vêm de ensino
universitário noturno, que não dá oportunidades
para a iniciação científica. As disciplinas
de base dos temas pretendidos pelos pesquisadores negros não
existem nas graduações. A única fonte de formação
tem sido o próprio movimento negro. Os programas rejeitam
pesquisadores militantes dos movimentos negros. Bancas de entrevista
não conseguem superar a relação patroa-empregada
existente nas nossas relações sociais cotidianas,
tornando as entrevistas tensas e as pesquisadoras negras antipáticas.
Fato mais notado entre as mulheres: "quem é antipático
não entra, as negras 'muito da exibida' não entram".
Mas,
para os que entram, não há orientadores conheçam
os temas, o que alimenta a dificuldade em se ter sucesso na pesquisa
no tempo determinado. A universidade brasileira não confessa
a sua ignorância nos temas de interesse dos afrodescendentes,
sendo que única responsabilidade do insucesso fica por conta
dos pesquisadores negros. O problema é grave, mais grave
ainda é que nada disso tem sido questionado pela sociedade
democrática acadêmica.
O
que está ocorrendo
Está
ocorrendo que as populações negras vivem em espaços
geográficos que não recebem políticas públicas.
São áreas sobre as quais o conhecimento científico
é praticamente inexistente. Forma-se um círculo vicioso,
nada se sabe; e nada se faz de coerente porque nada se sabe. As
políticas universalistas do Estado se mostraram inócuas.
No governo passado, através de pesquisa do IPEA concluiu-se
o que os movimentos negros vinham dizendo há quase 30 anos:
há a necessidade de políticas específicas.
No entanto, quase nada se sabe sobre essas especificidades pois
os pesquisadores e os atuais temas das pesquisas têm a ver
com interesses que não são os das populações
de descendência africana. Negro e afrodescendentes aqui são
sinônimos, definições que vão além
das denominações de raça e raça social.
Estão ligados ao trânsito da história e a enfoques
nos processos de dominação e na produção
étnica da submissão neste país. Nós
temos falado da necessidade de pesquisas e de produção
de conhecimentos sobre os territórios de maioria afrodescendente.
Mas não há pesquisa, não há política
pública, não há solução objetiva
dos problemas.
A democracia
prevê a representação de todos os grupos sociais
em todas as instâncias de decisão. No estágio
atual do capitalismo, a pesquisa científica e os grupos de
pesquisadores constituem um grupo privilegiado de exercício
do poder, quer pela ação direta na participação
nos órgãos de decisão do Estado, quer pela
ação indireta através da difusão dos
conhecimentos que justificam as ações dos poderes
públicos. Os grupos sociais cujos membros não fazem
pesquisa ficam alijados dessas instâncias de poder. A ausência
de pesquisadores negros tem reflexo nas decisões dos círculos
de poder. Vide que temas como a educação e a saúde
dos afrodescendentes só passam para a pauta do Estado brasileiro
depois que os movimentos negros, com esforços próprios,
formaram uma centena de especialistas e pesquisadores nessas áreas
e produziram um número relevante de trabalhos científicos.
Por
que não existe mais pesquisa e mais pesquisadores? Por que
não se quer ter. Não existe vontade política
das instituições universitárias e muito menos
dos órgãos de política científica do
Estado. Os movimentos negros têm sido muito ativos nas propostas
de políticas públicas de ações afirmativas
para formação de pesquisadores negros. Estas propostas
só têm recebido a atenção de setores
isolados da sociedade e das fundações internacionais.
Finalizando
sem terminar
São
infindáveis as posições e contraposições
que o tema encerra. Ainda temos uma mentalidade nacional avessa
à existência de negros ou, pelo menos, insensível
a qualquer manifestação de afirmação
da existência de identidades negras. A aversão não
é contra a existência material desses seres ditos negros,
mas contra a existência política dos mesmos. Tal qual
durante o período do escravismo criminoso, persiste a ótica
dominante do medo branco com relação a onda negra.
As idéias convenciam a sociedade que o perigo era negro,
enquanto a criminalidade oficial branca do Estado e todos os processos
de dominação impostos pela matriz européia
não eram vistas como perigosos, danosos e dolosos para a
sociedade. Tal mentalidade continua se processando, sob novas formas
de inculcação, com os mesmos resultados de um certo
pânico e pelo menos indisfarçável desconforto
frente à visão da organização política,
cultural e identitária de negros.
O país
funciona bem, é democrático, a Constituição
veda qualquer discriminação de raça, sexo ou
religião. Essa é a visão conformista e utilitária
da nossa situação: a harmonia. Quando algum pesquisador
de pele clara se auto-denomina negro, correm os pares, as vezes
até mais escuros que ele, a dissuadi-lo com uma enxurrada
de argumentos e este passa a ser visto como o produtor da discórdia.
"Quem é negro nesta sociedade? Somos todos mestiços.
Temos todos um pouco de escravizado e escravizador no nosso passado."
Quem se denomina negro passa a ser o importador de temas estanhos
à comunidade harmônica brasileira. As falácias
desses argumentos não são analisadas com o rigor da
comunidade científica, ficam no pseudo senso científico.
As referências biologizantes do tema superam as referências
políticas e sociais. Pesquisadores da história se
esquecem dos conceitos da história social e se amparam no
argumento biológico. Socialmente, nós não temos
nada do escravizador, visto que este não mestiçou
a sua propriedade com a nossa. Vejam que o escravizador sempre vendeu
os filhos que teve como as escravizadas como mais um escravo. A
nossa dita morenidade não está representada na distribuição
de renda do país. Importada é a maioria ou quase totalidade
das idéias científicas difundidas no país.
Quais seriam os critérios da condenação de
uma importação de idéias em particular? Ou
só no campo das relações étnicas é
que não é cientifico importar idéias? A crítica
da importação também mostra uma ignorância
sobre a nossa história social, já que os movimentos
negros do Brasil, há mais de um século, pautavam essas
temáticas.
É
certo que nos damos bem, no campo informal. Pulamos carnaval juntos
e jogamos futebol. Mas não estudamos juntos e, muito menos,
pesquisamos juntos. "Mas é um problema social".
Não temos dúvida que é um imenso problema social,
mas para o qual não se procura solução. Existem
aqueles que nos dizem que têm em casa uma negra empregada
e dizem que é como se fosse da família, mesmo que
não dividam com ela o capital cultural, a educação
dos filhos ou o seguro saúde da família. No Brasil,
até o cachorro é membro da família.
Desde
que organizamos a Associação de Pesquisadores Negros,
em 2000, com intuito de acelerar o processo de pesquisa das temáticas
de interesse dos afrodescendentes, tenho ouvido pelos corredores,
e às vezes explicitamente, argumentos da ordem: pesquisa
não tem cor; ou que as temáticas abordadas por nós
não são suficientemente universais; ou seja, não
fazem parte da ciência. Concordo que a pesquisa não
tem cor, mas as políticas científicas, que não
têm nada a ver com o cerne do fazer científico, essas
têm os atributos de cor, de grupo social, de grupo histórico,
de marginalizações e de produção das
desigualdades sociais, econômicas e políticas. Quem
detém o poder detém a primazia da ciência e
determina quais temas são parte ou não da ciência.
Veja que o mesmo universalismo científico fez com que todas
as teorias racistas fossem produzidas, divulgadas e aplicadas pelos
corpus científicos. Então, o argumento da universalidade
da ciência não serve como científico, em face
da própria história da sua construção
eurocêntrica. Mesmo ainda por que as ciências físicas
hoje travam um imenso debate sobre as idéias de generalização
e universalização da ciência, visto as discordâncias
sobre a natureza do tempo e do espaço, sobre a lógica
da previsibilidade da ciência destruída pela teoria
do caos. Podemos quase afirmar que não existe uma ciência
universal, pelo menos nos moldes que era concebida há 30
anos atrás.
A formação
dos pesquisadores negros passa por todos esses obstáculos
ideológicos, políticos, preconceituosos, eurocêntricos,
de dominações e até mesmo de inocências
úteis vigentes nas instituições de pesquisa
e nos órgãos de decisão sobre as políticas
científicas. É fundamentalmente um problema político
de concepção da sociedade e das relações
sociais. Problema que a sociedade científica se nega a reconhecer
como um problema, se negando a tratá-lo e colocá-lo
na agenda das preocupações. O mesmo ocorre na esfera
governamental, que de certa forma reflete o pensamento das instituições
de pesquisa.
O capitalismo
segue fabricando seus negros. Utiliza a produção científica
para reatualizar as estratégias de dominação
e subordinação desses negros produzidos. As definições
sobre os negros e sobre nossas condições de vida seguem
se alterando ao longo do último século. Para se ter
uma idéia dessa dinâmica basta acompanhar as modificações
que as Nações Unidas tiveram sobre a temática.
Mas a média dos pesquisadores brasileiros permanece alheia
a essas definições e redefinições. A
maioria ainda pensa o negro no mesmo referencial racista e biológico
do século XIX. Praticam as concepções da existência
de raças humanas e de seus atributos. Vide, como exemplo,
o imenso sucesso que o livro Casa Grande & Senzala ainda faz
entre eles. Participam de um subdesenvolvimento científico
mental nesse setor das relações étnicas, com
graves conseqüências para as populações
afrodescendentes. Sob um discurso de democracia e igualdade, impõe-se
descasos e discriminações sobre a necessidade de pesquisas
em temas de interesse da população negra e da formação
de pesquisadores originários desse grupo social.
Henrique
Cunha Jr. é professor titular do Departamento de Engenharia
Elétrica do Programa de Pós-Graduação
em Educação, da Universidade Federal do Ceará.
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