"O
sol da liberdade": movimento negro e a crítica das representações
raciais
Osmundo
de Araujo Pinho
"...Is arising. The sun is arising [1]" . A mensagem
otimista e radiante de Bob Marley expressa bem a transfiguração
típica das formas culturais do Atlântico Negro que
transcendem a dor e o sofrimento do "terror racial" em
formas de representação de uma identidade em trânsito
fundada na luta por libertação e dignidade (Gilroy,
2001). Estas formas são parte integrante da luta e do ambiente
político simbólico e material que ao ser representado
se inscreve. Ora, não existindo saber político fora
de sua representação o momento da ação
política "deve ser pensado como parte da história
de sua forma de escrita" (Bhabha, 2000: 15). Não
existe um campo exterior à representação para
pensar o conjunto dos problemas da emancipação e da
dominação destacados de sua contingência e de
sua materialidade, nesse sentido, este texto faz parte da história
de escritura dedicada à reinvenção de posições
de sujeito afrodescendentes no Brasil do começo do século
XXI.
Neste
artigo, procuro descrever a luta pela emancipação
racial como atravessada pela emergência de uma consciência
insurgente afrodescendente que se materializa sob duas formas gerais:
primeiro, na "atividade consciente" dispersa e complexa,
agenciada sob a égide do movimento negro, conjunto de agentes
sociais negros ou afrocentrados que elegeram definir sua identidade
como essencialmente política ou voltada para produzir um
efeito estrutural sobre a sociedade brasileira que fosse uma realocação
de poder e benefícios públicos. Em segundo lugar,
esta consciência insurgente ensaia manifestar-se como a coagulação
de uma perspectiva crítica que em alto grau de reflexividade
faz a crítica radical das políticas de representação
racial como instrumentos de consolidação hegemônica
nas artes e nos discursos eruditos ou competentes. Posta em ação
nos movimentos sociais negros ou em peças de intervenção
discursiva estratégica, essa emergência talvez concorra
para a aurora de um novo dia no qual o "sol da liberdade"
brilhe para todos.
A gênese
dos modernos movimentos sociais negros pode ser descrita como pertencendo
a duas frentes históricas. De um lado, podemos descrever
uma tradição de organização social do
meio negro que remonta ao período colonial como uma trajetória
ocasionalmente vista como mais ou menos independente e com identidade
própria. De outro lado, podemos ver que o movimento negro
moderno, ou seja, aquele surgido no contexto do declínio
do regime militar a partir dos anos 70, associa-se a um movimento
mais amplo de reorganização dos movimentos sociais
e de politização da sociedade e do cotidiano (Figueiredo&Cheibub,
1986-87; Fontaine, 1985; Gonzales, 1985). Estas narrativas sobre
a organização política no "meio negro"
se alimentam de fontes tanto êmicas quanto éticas.
Pesquisadores acadêmicos, ativistas negros e pesquisadores
acadêmicos que são ativistas negros têm inscrito
e proposto interpretações sobre a história
de organização e resistência dos afrodescendentes
no Brasil. A narrativa vista com mais simpatia e na verdade quase
entronizada como a oficial do ponto de vista mais próximo
de uma versão "ativista" é aquela que enfatiza
a continuidade da "resistência" negra, nesta narrativa
o quilombo de Palmares e o seu último líder militar
Zumbi, derrotado e morto pelo sangüinário bandeirante
Domingos Jorge Velho em 1695, é o marco histórico
fundamental [2]. Na verdade, o quilombo de Palmares, e a forma genérica
"quilombo", tem sido ressignificado fortemente a partir
da reorganização do movimento negro nos anos 70. O
quilombo passa a representar um modelo alternativo de organização
da sociedade que desafiou os poderes coloniais e reinventou um mundo
africano - no caso de Palmares, banto - baseado no trabalho livre,
na propriedade comum da terra, em valores tradicionais holísticos
etc. A utopia afrodescendente passa, assim, a incorporar um modelo
histórico como referência no passado para a possibilidade
de futuro. Parece claro como a estratégia de se contar a
história da organização autônoma negra
faz parte de uma estratégia mais ampla de refundação
das bases interpretativas do presente que dê lugar a uma perspectiva
sobre o passado nacional e sobre o lugar do negro nesse passado
que fundamente uma capacidade insurgente de crítica e de
superação da opressão e da desigualdade.
Quando,
no contexto de redemocratização da sociedade e de
reorganização dos movimentos negros, o poeta Oliveira
Silveira do Grupo Palmares do Rio Grande do Sul propôs o 20
de novembro - aniversário da morte de Zumbi - como Dia Nacional
da Consciência Negra, o 13 de maio passou a ser crescentemente
anatemizado como a celebração de uma falsa abolição
e o 20 de novembro tornou-se a data principal do reinvestimento
simbólico/histórico da política afrodescendente
no Brasil (Nascimento &Nascimento, 2000; Mendonça, 1996;
Pinto, 1993; 1990). Hamilton Cardoso, um dos mais notáveis
intelectuais negros do período, procurou explorar todas as
conseqüências políticas do reconhecimento de Zumbi
[3] como herói nacional em novembro de 1985, principalmente
aquelas que sinalizam para o aspecto trans-étnico da luta
de libertação quilombola, nesse sentido "resgatar"
Zumbi:
"É
um fato cultural porque é um fato político; é
um fato político porque rompe com a política cultural
dominante. Reflete, na verdade, outra forma, de engajamento político
do militante negro nos processo sociais. Revela um ponto de vista
humano, capaz de romper as fronteiras da raça. Arrebentando
a geografia da pele e da cor"(Cardoso, 1986: 66).
Durante
o regime militar inaugurado com o golpe de 31 de março de
1964 diversos grupos se organizaram em todo o país. No Rio
Grande do Sul, o já citado Grupo Palmares. No segregado interior
de São Paulo assistiu-se uma intensa movimentação
com o grupo Evolução de Campinas fundado por Thereza
Santos e Eduardo Oliveira e Oliveira em 1971 e o Festival Comunitário
Negro Zumbi (FECONEZU) que existe desde 1978 até os dias
de hoje. Na capital paulista o Instituto de Pesquisas e Estudos
Afro-Brasileiros (IPEAFRO) fundando por Abdias do Nascimento em
1980 no seu retorno do exílio. No Rio de Janeiro o Instituto
de Pesquisa de Cultura Negra (IPCN) e a Sociedade de Estudo de Cultura
Negra no Brasil (SECNEB), A Sociedade de Intercâmbio Brasil
África (SINBA), o Grupo de Estudos André Rebouças,
etc. Na Bahia o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, o Grupo
de Teatro Palmares Iñaron e assim por diante. A confluência
de determinados fatores fez com que alguns destes e outros grupos
fundassem em 18 de junho de 1978 o Movimento Unificado contra a
Discriminação Racial (MUCDR), realizando em seguida
um ato público nas escadarias do Teatro Municipal em São
Paulo no dia 7 de julho. O MUCDR foi depois rebatizado em 23 de
julho como Movimento Negro Unificado contra a Discriminação
Racial (MNUCDR), em dezembro de 1979 durante o 1o Congresso realizado
no Rio de Janeiro passa a chamar-se de Movimento Negro Unificado
(MNU) nome que conserva até hoje(Nascimento & Nascimento,
2000; Barcelos, 1996; Cardoso, 2002; Félix, 1996; Hanchard,
1994). O ato do dia 7 de julho foi convocado em protesto contra
a morte do jovem negro Robson Luís. O jornal "Versus"
noticiou com detalhe o caso Robson Luís e o protesto que
marcou a aparição pública do novo movimento
negro brasileiro. No número 22 de junho-julho de 1978 lemos
que por roubar com amigos que vinham bêbados de uma festa
três caixas de frutas, Robson Luís, 21 anos, casado,
morador da Vila Popular, morreu no dia 28 de abril de 1978 no Hospital
de Clínicas, seu rosto estava desfigurado e seu escroto fora
arrancado na 44ª Delegacia de Polícia em SP. Segundo
apurou o jornal, o delegado enquanto batia dizia: " Negro têm
que morrer no pau" (Versus, 1978). O ato público reuniu,
além disso, atletas indignados com o Clube de Regatas Tietê
em São Paulo que impedira quatro adolescentes negros, atletas
de voleibol, de treinarem no clube. O jornal Versus conta como os
meninos foram barrados pelo porteiro e que o técnico ao reclamar
ouviu de um dos diretores: "Se deixar um negro entrar na piscina
cem brancos saem". (Versus, julho-agosto, no 23, 1978: 33).
É
preciso considerar com cuidado o contexto de surgimento destes novos
atores sociais negros como o MNU e demais movimentos e organizações
semelhantes surgidas no período ou depois. Estávamos
assistindo neste momento o declínio do poder dos militares
e a preparação para redemocratização
do país. Diversos outros agentes sociais se constituíam
e colocavam neste momento, alguns se recompondo, como o movimento
sindical, outros fazendo sua aparição inaugural como
sujeitos políticos na cena pública como o Movimento
Homossexual( MacRae, 1982; 1990). É neste ambiente que a
narrativa histórica de longa duração para o
protagonismo negro que descrevi muito resumidamente acima se encontra
com outra narrativa de fundação, esta preferida por
analistas "exteriores" ao campo de ação
propriamente político em questão. Esta narrativa associa
o surgimento do Movimento Negro Moderno aos chamados Novos Movimentos
Sociais. Estes novos atores sociais, surgidos neste período,
se definem principalmente como novos interlocutores que forçam
a entrada no proscênio público, em um processo de redefinição
dos debate pela definição de temas e de pautas comuns
a toda sociedade, assim considerados como questões públicas.
Os movimentos sociais negros - culturais e políticos - parecem
se enquadrar plenamente neste processo. Um processo marcado pelo
redirecionamento de questões da esfera privada - a cor da
pele, o racismo operando no plano da relações interpessoais,
a religião Afro-Brasileira, o cotidiano imediato e periférico
das bairros negros, etc. - para a arena pública, através
da inclusão de discursividades negras, como um novo sujeito,
como um pólo ou eixo de articulação de miríades
de vozes que se encontram e se cristalizam neste processo de enunciação
coletiva (Costa, 1997a; 1997b; Sader, 1995).
Osmundo de Araujo Pinho é pesquisador do Centro
de Estudos Afro-Brasileiros, da Universidade Cândido Mendes
e bolsista do Programa GRAL (Gênero Reprodução
Ação Liderança) da Fundação Carlos
Chagas/John D. and Catherine T. MacArthur Foundation. E-mail: opinho@candidomendes.br
Notas
- Bob
Marley, "Rainbow Country".
-
Sobre quilombos contemporâneos e a politização
do quilombo cf. tb. Arruti, 1997; Vogt & Fry, 1996; Ratts,
2000 e outros.
- Sobre
o "mito de Zumbi" ver também, Anderson, 1996.
Para a reflexão sobre Zumbi no Movimento Negro cf. tb.
Cardoso, 2000 e Fernandes, 1989.
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