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             Desconhecimento 
              cria a idéia de uma "só África" 
             
             Iorubás, 
              haussás, bornos, baribas. Para quem ouve pela primeira vez, 
              essas palavras podem soar estranhas e sem importância mas, 
              desde o século XVII, elas estão estritamente ligadas 
              à história do Brasil e, de algum modo, contribuíram 
              fortemente para moldar o país como o conhecemos atualmente. 
              Se, para a maioria dos brasileiros, essas palavras não fazem 
              parte do vocabulário, na África elas são sinônimos 
              de diferenças: cada uma delas designa um povo com língua 
              e costumes diferentes. Povos que, durante o período de escravidão, 
              deixaram forçosamente o continente africano para fincar raízes 
              em solo brasileiro. "Povos diversos que foram se formando ao 
              longo de milhares de anos. Múltiplos povos com culturas diferentes", 
              explica o pesquisador Valdemir Zamparoni, do Centro de Estudos Afro-Orientais 
              (CEAO) e professor da Universidade Federal da Bahia.  
            Com 
              a escravização, milhares de negros das mais variadas 
              culturas acabaram se misturando e tiveram de passar a conviver juntos, 
              criando laços de comunicação e de socialização. 
              A historiadora Marina de Mello e Souza, em seu artigo "Destino 
              impresso na cor da pele", relata que "ao serem arrancados 
              de suas aldeias e transportados pelo continente africano rumo às 
              feiras regionais e aos portos costeiros, os escravos de diferentes 
              etnias misturaram-se, aprenderam a se comunicar, criaram novos laços 
              de sociabilidade que se consolidaram durante os horrores da travessia 
              atlântica, e se institucionalizaram no seio da sociedade escravista 
              colonial, à qual foram inseridos à força, acabando 
              por encontrar formas de integração".  
            Mas, 
              para o pesquisador Henrique Cunha Júnior, 
              que faz parte do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre 
              o Negro Brasileiro (NEINB - USP), esses povos já mantinham 
              contato intenso antes do comércio e do escravismo no Brasil. 
              "Os africanos tinham e têm imenso trânsito no interior 
              do continente e externo a ele. Antes da vinda para o Brasil, eles 
              já haviam navegado no Atlântico e no Pacífico. 
              Tinham comércio com o Caribe e a China", diz.  
            Se 
              já tinham contatos antes ou se intensificaram esses laços 
              durante a viagem nos navios negreiros e aqui, não é 
              o mais relevante. O fato é que milhares de negros vindos 
              de várias partes da África aportaram em terras brasileiras 
              - principalmente na Bahia e, como explica o historiador João 
              José Reis, da Universidade Federal da Bahia, o maior número 
              desses escravos pertencia a grupos do tronco lingüístico 
              banto da África Centro-Ocidental, que inclui as regiões 
              do Congo, Angola e Moçambique. "No interior de cada 
              uma dessas grandes regiões contam-se dezenas de grupos étnicos 
              que vieram para o Brasil no período colonial e imperial, 
              até o fim do tráfico, em 1850", diz.  
            Segundo 
              Reis, como esses escravos estavam concentrados na Bahia, identidades 
              específicas foram reconstituídas ou construídas 
              novamente. "Os falantes do iorubá viraram nagôs 
              os do grupo gbe (fon, mahi e ewe, por exemplo) viraram jejes", 
              compara. Na opinião do pesquisador, o reagrupamento dos negros 
              no Brasil seguiu, sobretudo, a lógica do parentesco lingüístico. 
               
            Para 
              Zamparoni - que trabalhou no Centro de Estudos Africanos, em Moçambique, 
              durante três anos -, a primeira geração de negros 
              vindos para cá guardou elementos de sua origem, mas as outras 
              gerações já eram a síntese das várias 
              culturas. "O candomblé praticado no Brasil é 
              diferente dos cultos aos orixás que acontecem na Nigéria. 
              Ele é fruto das criações culturais daqui", 
              explica.  
            Mas, 
              não foi somente no Brasil que diferentes povos tiveram de 
              conviver. Por causa do processo de colonização do 
              continente africano, que teve início no século XIX, 
              grupos étnicos diferentes tiveram de viver no mesmo país, 
              contribuindo para uma enorme diversidade cultural em cada Estado 
              africano. "O desenho político dos países africanos 
              foi feito seguindo a geografia do colonialismo, daí que grupos 
              étnicos historicamente rivais foram colocados no interior 
              de fronteiras culturalmente artificiais, assim como grupos mais 
              ou menos homogêneos foram divididos por essas fronteiras", 
              afirma Reis. "Populações que, muitas vezes, não 
              eram amigas no passado, acabaram obrigadas a conviver dentro do 
              mesmo Estado. O resultado disso é a instabilidade política 
              de muitos países", acrescenta Zamparoni.  
            Falta 
              de conhecimento 
              Se tanto no Brasil como em cada Estado africano há tamanha 
              diferença cultural, porque muitos vêem a cultura africana 
              como homogênea e têm a visão de uma só 
              África? Parte dessa visão equivocada é decorrente 
              do próprio sistema educacional brasileiro, que não 
              inclui estudos sobre a África e os escravos que vieram para 
              o Brasil. "Esse processo de exclusão da história 
              africana da cultura nacional faz parte das políticas de desigualdades 
              de classes produzidas pelo escravismo e pelo capitalismo racista", 
              explica o pesquisador Cunha, em seu artigo "A inclusão 
              da história africana no tempo dos parâmetros curriculares 
              nacionais".  
            Segundo 
              o pesquisador, "as percepções sobre o passado 
              africano são desinformadas e racistas, e associadas às 
              noções de raça, tanto no cotidiano da sociedade 
              como na educação, produzem um processo de representações 
              desfavoráveis à percepção igualitária 
              e cidadã dos afrodescendentes".  
            Para 
              Zamparoni, esse processo de homogeneização da cultura 
              africana está relacionado a outros mais antigos. Segundo 
              ele, nos primeiros contatos, os europeus já puderam perceber 
              que os africanos pertenciam a povos diferentes, com culturas e hábitos 
              diversos. "Mesmo assim, nada impedia os europeus de falarem 
              sobre os hábitos dos negros, usando julgamentos depreciativos", 
              diz. Quando começa o tráfico de escravos, que se torna 
              mais forte a partir do século XVII, acontece um processo 
              de desumanização, na opinião do pesquisador. 
              "Havia aqueles senhores de escravos e os traficantes que conheciam 
              as características de cada povo. Mas, o negro passou a ser 
              tratado como unidade. Não se falavam mais de pessoas, mas 
              de peças", afirma.  
            No 
              século XIX, com o discurso do racismo científico, 
              esse processo se acelera ainda mais. "A tese de raça 
              abstrai as diferenças culturais e busca denominadores comuns", 
              diz Zamparoni. Os traços culturais são deixados de 
              lado e o que pesa é apenas o fundamento biológico. 
              "Esse é o grande discurso homogeneizador e desumanizador", 
              ressalta ele.  
            Em 
              outras palavras, os escravos eram vistos como "peças" 
              iguais. Com a tese do racismo científico, todos os negros 
              passam também a ser vistos como iguais. "E passa, então, 
              a existir a idéia de que existe uma África só." 
               
            A imagem 
              de um continente africano semelhante a que é mostrada em 
              filmes como Tarzan e a idéia da uniformidade cultural são, 
              na opinião de Zamparoni, fruto do desconhecimento, racismo 
              e de "uma própria ignorância".  
            Parte 
              integrante 
              Para esses pesquisadores, as diferentes culturas africanas não 
              apenas influenciaram, mas foram parte integrante daquilo que hoje 
              definimos como cultura brasileira. "Os escravos foram 'os pés 
              e as mãos' não só dos senhores, mas do Brasil. 
              Do ponto de vista da cultura, deixaram a marca por toda a parte 
              porque a escravidão existia por toda parte. É difícil 
              encontrar um setor da cultura em que a mão e o pensamento 
              africano não tenham tocado", diz Reis.  
            Cunha 
              vai mais além. "Tudo, absolutamente tudo que é 
              cultura brasileira durante o escravismo criminoso foi fruto de africanos 
              afrodescendentes. As tecnologias, todas", diz. Como exemplo, 
              ele cita as agriculturas comerciais tropicais, que eram conhecidas 
              dos africanos, e as fundações de ferro, geridas com 
              o conhecimento africano. "Mesmo a fauna e flora brasileira 
              foram modificadas pelos africanos. Temos animais e plantas trazidos 
              por eles. A bagagem africana é muito rica", completa. 
            "É 
              impossível pensar como influência, mas sim como fundamento 
              da cultura brasileira", explica Zamparoni. "Somos herdeiros 
              das várias culturas africanas", diz. Nesse sentido, 
              ele destaca a importância de estar consciente disso. "O 
              Brasil não vai se conhecer enquanto não estudar as 
              culturas africanas e não as tratar com respeito." 
            (GG) 
            
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