Catarina
e seus afilhados: anotações sobre o parentesco escravo
João
Fragoso e Roberto Guedes
Durante
muito tempo a existência de família e parentesco escravos
foi relegada por estudiosos da escravidão brasileira, ou
ao menos a questão não recebeu a devida atenção.
Se desde os idos do século XIX até os anos 70 do século
XX era esta a regra, a partir principalmente dos anos 80 se alteraram
os rumos do assunto. Hoje, já não mais se trata de
apenas aferir sua existência. As mudanças de abordagem
se devem à intensificação de pesquisas, a uma
nova interpretação sobre as formas de atuação
histórica das populações cativas e à
aproximação entre história e antropologia.
No primeiro caso, muito contribuiu a revisão de fontes, sobretudo
relatos de viajantes europeus e norte-americanos que visitaram o
Brasil de outrora, bem como a exploração de documentos
antes não privilegiados, tais como registros paroquiais de
batismo, casamento e óbito, inventários post-mortem,
listas nominativas de habitantes (uma espécie de censo demográfico,
econômico e social no âmbito municipal), processos-crime
etc. No segundo aspecto, saiu-se da dicotomia escravo-passivo (Pai
João) versus escravo-rebelde (Zumbi), para interpretações
que centram os escravos como sujeitos históricos, priorizando
as negociações entre senhores e cativos, bem como
a relativa autonomia dos segundos na sociedade em que viviam, rompendo-se
assim com a visão de escravo-coisa, objeto. Negociação
e autonomia, bem entendido, que não excluem tensões,
conflitos e violências. Sobre a aproximação
entre história e antropologia, destaca-se, dentre outros
aspectos, o próprio tema do parentesco e família,
revisitado sob novas formas pelos historiadores.
A partir
de tais mudanças, estudos recentes trazem à tona uma
série de questões, algumas controversas. Analisam-se
as possibilidades de formação de famílias legalmente
sancionadas (no âmbito da Igreja Católica), fenômeno
em geral restrito a escravarias (plantéis) com 10 ou mais
cativos, o que significa que quase não havia casamentos entre
escravos de diferentes senhores, demonstrando, por um lado, os limites
da autonomia escrava e, por outro, a virtualidade de uniões
livres, consensuais. Enfoques demográficos, por sua vez,
destacam a idade de casar, o número de filhos por mulher,
a duração da amamentação, a idade limite
da última gestação. Sobre a organização
da vida familiar, há controvérsias acerca do papel
do homem e da mulher. Uma abordagem ressalta que as mulheres cativas,
por serem minoria entre a população escrava, teriam
mais chances de escolher parceiros, cabendo a elas, portanto, maiores
facilidades para aparentar-se. Noutra, enfatiza-se a primazia dos
homens idosos em organizar o mercado matrimonial. Outra vertente
prioriza os significados culturais e ganhos materiais relacionados
à família escrava, inclusive a arquitetura das casas,
o que beneficiava os cativos casados e seus filhos em relação
aos que viviam em senzalas coletivas, por exemplo permitindo a escolha
de com quem comer etc. Todas, enfim, características que
indicam reminiscências culturais de matrizes africanas.
Pari
passu, interpretações sobre o papel do parentesco
e da família escravos em sociedades escravistas apresentam
divergências. Num enfoque, eram experiências de liberdade,
pois, não sendo comuns a todos os cativos, os hierarquizavam
no interior do cativeiro. Noutro, as clivagens entre crioulos (escravos
nascidos no Brasil) e africanos, entre africanos de procedências
diversas (angolas, minas etc.), são entendidos como traços
desestabilizadores da comunidade escrava, constantemente alimentada
por estrangeiros através do tráfico atlântico.
Daí o papel estrutural do parentesco e da família,
uma vez que, de um lado, regram a comunidade cativa e, de outro,
propiciam a estabilidade política entre senhores e escravos
ao atenuar tensões no interior das escravarias. Por fim,
há o realce à dimensão política e cultural
do parentesco e da família escravos no confronto com a classe
senhorial, tendo em vista que, apesar dos conflitos, uma experiência
em cativeiro comum, acrescida de uma relativa homogeneidade cultural,
propicia mecanismos cruciais que congregam os escravos nos embates
com as camadas senhoriais.
Contudo,
apesar dos avanços das pesquisas, os estudos priorizam o
século XIX e áreas do Sudeste, carecendo análises
para épocas pretéritas e alhures. Ademais, salvo poucas
exceções, pesquisas sobre compadrio continuam a margem
das preocupações dos estudiosos. Assim, necessita-se
ainda de abordagens que não se restrinjam, no que tange a
razão de ser política da família e do parentesco
escravos, ao âmbito circunscrito das escravarias, no que estudos
sobre compadrio podem contribuir, como pesquisas em andamento sobre
a colônia brasileira vêm indicando.
Nesse
sentido, pesquisas atuais apresentam uma nova maneira de abordar
as relações escravistas. Contribui para isto o fato
de, progressivamente, a América lusa deixar de ser vista
como imenso canavial sujeito aos humores da Europa para ser encarada
como uma sociedade. Enquanto tal viveu tensões e negociações,
seja frente à metrópole ou em suas relações
sociais, como as entre senhores e escravos. Em outras palavras,
para que existisse um cotidiano colonial não bastava a violência
contra as senzalas. Em realidade, as negociações com
as escravarias eram urgentes, pois somente elas garantiam a produção
material e a existência de uma hierarquia social zelosa de
suas rígidas diferenças. Neste último caso,
basta lembrar a presença dos homens bons - também
conhecidos como senhores da governança - pessoas que
arrogavam o privilégio de dirigirem, juntamente com os ministros
metropolitanos, a sociedade. Em geral, os homens bons provinham
dos senhores de engenho, mas possuir grandes fábricas de
açúcar não bastava. Era necessário ter
legitimidade social entre os ministros régios, donos de moendas,
lavradores e, principalmente, junto aos escravos. Afinal, a luta
pelo poder podia facilmente se transformar em confrontos armados
entre os chefes políticos com seus respectivos escravos
armados. Daí ser crucial a participação
dos cativos. Não se deve esquecer, evidentemente, que estes
últimos não eram simples massa de manobra. Prova-se
que tinham interesses e vontades próprios à própria
presença de múltiplas famílias escravas nas
plantations, famílias que podiam ter acesso a terra e
moendas para beneficiar seu açúcar.
Portanto,
uma das contribuições das pesquisas sobre parentesco
escravo na colônia é a percepção do cativo
como agente político. Com certeza há ainda muito para
ser estudado, porém já se sabe que os cativos, em
meio às rígidas hierarquias sociais e tensões
coloniais, estabeleciam estratégias para melhorar suas vidas.
Assim, nas relações entre senhores e escravos havia
complicadas manobras políticas, nas quais os escravos podiam
se valer de sua própria situação de dependência.
Por exemplo, Francisco Barreto de Faria, senhor de engenho no Rio
de Janeiro do século XVII, pretendendo manter-se como senhor
da governança "facilitava" o contato de seus
cativos com os de outros senhores e com lavradores pobres. Esta
circulação, não raro, se traduzia em uniões
conjugais (sancionadas ou não pela Igreja). Obviamente estas
facilidades tinham seus limites: tanto os donos de cativos
como os lavradores eram clientes ou aliados de Barreto e somente
suas escravas participavam daquelas uniões, ou seja, as crianças
nascidas lhe pertenciam, mesmo se os pais fossem livres, já
que era a filiação materna que determinava o ser escravo.
Desse modo, Barreto conseguia estender seu poder sobre diferentes
grupos sociais, poder que ia além de seu engenho.
De
outra parte, em meio a esta prática senhorial, os cativos
montaram redes de compadrio formadas por famílias de diversas
senzalas e mesmo por pessoas livres, como exemplifica o caso de
Domingos Pedroso, também partidário daquela política
senhorial. Sua escrava Catarina fora madrinha de 11 crianças
(o que significava estabelecer relações de compadrio
com 22 pais) distribuídas em 10 escravarias diferentes. Entre
seus compadres havia dois lavradores livres. Com certeza, através
de Catarina, Domingos Pedroso ampliou sua legitimidade social, porém
a escrava era a referência de uma malha de alianças
parentais, leia-se, de proteção mútua. Isto
sugere que prejudicar um dos compadres ou afilhados de Catarina
talvez não fosse a melhor idéia para Pedroso, já
que seu poder e legitimidade social também se assentavam
sobre esta rede parental.
João
Fragoso é professor do Departamento de História da
UFRJ e Roberto Guedes é doutorando em História da
UFRJ
|