Ações
afirmativas: a síndrome do colapso da democracia social
José
N. Heck
Há
mais de trinta anos, as melhores universidades e colégios
americanos praticam políticas de admissão estudantil
race-sensitive, buscando incrementar o percentual de negros,
hispânicos, americanos nativos e outras minorias no preenchimento
das vagas de seus corpos discentes. Desde o início, as ações
afirmativas são combatidas pelos conservadores e, a partir
dos meados dos anos noventa do século passado, sustadas politicamente,
depois de haverem amargurado uma série de revezes jurídicos.
Assim, numa decisão de impacto, os diretores da Universidade
da Califórnia, um dos estabelecimentos de ensino superior
mais engajados na promoção de políticas afirmativas
via reserva de vagas na costa Oeste, interditam medidas que levem
em conta preferências raciais por ocasião dos exames
seletivos de ingresso na instituição. Um ano mais
tarde, os eleitores da Califórnia aprovam a resolução
209, que veda a instituições estatais toda conduta
que possa discriminar ou favorecer algum indivíduo ou qualquer
grupo devido ao sexo, à cor, etnia ou origem em operações
de emprego, educação e contratos públicos.
Confrontado
com a experiência americana, o futuro brasileiro das cotas
universitárias já passou. A alternativa concebe o
sistema das ações afirmativas como alavanca de uma
nova convivência multiétnica no país. Ambas
as hipóteses merecem uma análise prévia.
Concessão
de cotas e igualdade jurídica
A
reserva de vagas universitárias para cidadãos negros
anacroniza aparentemente clássicas conquistas políticas
do passado. Sob visor socioeconômico, as cotas beneficiam
negros em detrimento de brancos, índios, mulatos ou mestiços
igualmente desamparados, o que equivale a tratar desigualmente os
iguais.
Sob
um ponto de vista formal, os direitos da população
negra estão assegurados quando os negros são tratados
de forma igual aos membros da população não-negra.
Como não há seres iguais no universo, a alegada igualdade
entre homens só é possível à luz de
um critério comum. Assim, o cristianismo toma os homens por
iguais porque todos têm o mesmo Pai; Hobbes ajuíza
os homens iguais pela capacidade recíproca de um poder ferir
de morte o outro; para Rousseau, somos iguais pelo fato de cada
um ser único em relação aos demais no universo;
e o direito positivo considera todos iguais perante a lei. Como
a promoção da integração racial com
base em ações afirmativas é feita por meio
de mecanismos legais, o critério de igualdade que incide
sobre políticas de acesso a estabelecimentos de ensino superior
por setores étnico-raciais socialmente discriminados é,
única e exclusivamente, a igualdade jurídica.
À
revelia do respectivo conteúdo, toda política afirmativa
ou invoca a igualdade que lhe assiste por direito ou tenta fazer
justiça com as próprias mãos. Mesmo se estivéssemos
convencidos de que a igualdade veiculada pela religião cristã,
por Hobbes, Rousseau ou qualquer outra doutrina igualitária
seria melhor, mais justa ou menos arbitrária do que a igualdade
legal, falta saber quem é competente para zelar pela mais
perfeita das isonomias, reservando vagas para estas e não
àquelas pessoas e ou dando uma vaga a X, ao invés
de preenchê-la com Y, e assim por diante.
Por
mais gritante que seja a injustiça no mundo, não se
depreende deste fato quem é competente para agir, a qual
instância ou poder compete reverter o presente estado de coisas.
A alternativa proposta por Marx na Questão judaica, ao criticar
acremente a noção rousseauniana de homem, implica
dar exclusivamente ao desfavorecido, ao vilipendiado, ao desigual
e explorado a competência de atuar corretamente, colocando
de pé um mundo que está de cabeça para baixo.
Marx está com razão quando, e somente quando, os injustiçados
assumem a competência revolucionária que lhes cabe
pelo materialismo histórico, mas continua não tendo
o que dizer a quem se considera igual ao semelhante, ou reivindica
igualdade dos que estão melhor de vida em relação
a ele. Assim como a dialética marxiana tem no proletariado
industrial os atores competentes da revolução, o Estado
Democrático de Direito indica a quem compete estabelecer
cotas de acesso ao ensino superior, independentemente da pergunta
se tais medidas têm ou não consistência.
De
acordo com a legislação em vigor, os estados e municípios
da Federação não estão autorizados a
regulamentar reserva de vagas para o ensino superior, sendo competência
exclusiva da União legislar a matéria para todo o
território nacional. Como as universidades públicas
ou privadas são instituições investidas de
autoridade por delegação de órgãos federais,
o princípio da autonomia lhes confere, na ausência
de lei federal, a competência para criar seus próprios
sistemas de cotas que beneficiem o acesso de minorias ao estudo
universitário.
Prima
facie, o mérito de políticas afirmativas ou da
reserva de vagas encontra-se tão bem regulamentado quanto
o método de convertê-las em lei. De acordo com o previsto
nos artigos 206 e 208 da Lei Fundamental, ofendem o princípio
democrático e republicano da isonomia e do mérito
pessoal ações que não se atêm à
igualdade de condições para o acesso e permanência
na escola (Art. 206, inciso I) e/ou não levam em conta o
acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e
da criação artística segundo a capacidade de
cada um (Art. 208, inciso V).
Os
artigos em tela, aparentemente contrários a qualquer política
de cotas, extravasam sua literalidade semântica tão
logo são lidos e entendidos sob a luz de normas-princípios
constitucionais que fixam padrões de observância cogente
para todos os operadores jurídicos no âmbito da interpretação
das leis. Dentre tais normas, responsáveis pela unidade,
completude e harmonia da Lei Maior, destaca-se o sobreprincípio
da dignidade humana, com o contraditório lógico da
não-discriminação, materializada na proscrição
de toda e qualquer discriminação do indivíduo
levada a efeito em razão de sua cor, origem, religião
ou com vistas a qualquer outro elemento que o coloque fora da proteção
das leis vigentes e o exclua de facto do ordenamento jurídico
brasileiro. Tais ofensas à dignidade humana configuram atentados
contra a República.
No
momento em que a lenda do homem cordial e da miscigenação
amorosa cede lugar à convicção de que o país
é racista, quando a questão racial entra na pauta
política e quatro ministros de Estado juntos de um juiz na
mais alta corte do país são negros, a adoção
de ações afirmativas adquire feição
constitucional. Critério inovador dessa cadeia de gestos
positivos em favor do resgate da dignidade nacional é a igualdade
jurídica dos portadores da raça humana, materializada
em sexo, cor e idade diferentes. Sob este aspecto, políticas
baseadas na raça cumprem preceitos constitucionais melhor
do que plataformas públicas neutras, incolores e defensivas
do ponto de vista racial. Em suma, ações afirmativas,
como a institucionalização de sistemas de cotas, levam
a sério o direito como fator decisivo de integração
nacional, prosperidade material e sobrevivência humana, o
que para o falacioso mito da democracia racial não passa,
erroneamente, de mais um blefe da república dos bacharéis.
Políticas
afirmativas e o Estado democrático de direito
Diferentemente
das sociedades norte-americana e sul-africana, que conhecem o que
são práticas racistas declaradas, ofensivas e excludentes,
a maioria dos 45% de brasileiros classificados como negros só
tem conhecimento das benesses e deficiências da democracia
racial.
O ancestral
mais ilustre do integrante da democracia racial é o zoôn
physei politikón clássico. Órfão
da pólis, o animal político aristotélico foi
vertido por Tomás de Aquino em homo naturaliter est animal
sociale e, graças à tradição filosófica
do catolicismo, seus pósteros acabaram membros natos da democracia
racial verde-amarela. Desvirtuada socialmente, a noção
política da cidade cede lugar à reunião das
famílias, chamada de Grande Família e, nos momentos
cívicos, apostrofada em verso e prosa como Pátria
amada e idolatrada.
O advento
da sociedade civil favorece, por certo, a igualização
da população negra com os demais grupos raciais formadores
do povo brasileiro, mas não lhe dá per se a
fisionomia política que, por razões históricas,
os negros merecem adquirir. Afora imperativos econômicos,
a sociedade civil não dispõe de padrões normativos
que distingam os negros da lei da permuta que rege a qualidade de
vida desta sociedade.
Como
complexo social de indivíduos carentes de bens materiais,
valores comuns e conhecimentos apropriados acerca do funcionamento
do sistema em que operam, a sociedade civil não conhece cidadãos,
mas reconhece um no outro o que Rousseau, Hegel e Marx chamam de
bourgeois, o burguês. Ser cidadão é um
dado jurídico-constitucional; ser burguês assinala
uma realidade socioeconômica. Característica do cidadão
são direitos, a marca registrada do burguês são
necessidades. Embora ambos atuem como indivíduos, o primeiro
recorre ao direito objetivo fazendo uso do subjetivo que tem, enquanto
o segundo orienta-se no mercado movido por interesses, ou seja,
o cidadão reivindica o que lhe cabe por direito e o burguês
corre atrás do que lhe falta - dinheiro. O burguês
está convencido de que ao money deve ele a capacidade de
ter prazer, a dignidade de ser feliz e, acima de tudo, a chance
de ser levado a sério pelos demais. Daí a idéia
de Hegel e Marx, respeitadas as diferenças, de que a sociedade
civil-burguesa é um sistema de carências, em busca
constante de algo que não lhe está à mão.
O máximo
de igualdade que os negros podem ter na sociedade civil-burguesa
é serem igualados a outros indivíduos e grupos sociais
que, iguais a eles, sofrem de toda sorte de misérias. Fiel
à lei da permuta, a sociedade civil-burguesa iguala todas
as desigualdades, humilhações e problemas à
carência material, vale dizer, ser negro equivale a ser pobre.
E, como tal, vira massa de manobra.
A caracterização
do estar-em-falta, por parte dos membros da sociedade civil-burguesa,
torna-se ainda mais relevante no plano do saber, portanto,
em relação àquilo que distingue a raça
humana dos animais. O indivíduo burguês está
convicto, por um lado, de que precisa ater-se a cada momento às
leis do mercado, mas, por outro, nunca sabe com que cotação
a bolsa de valores irá abrir no dia seguinte, qual aplicação
financeira lhe trará o maior lucro e como serão na
semana que entra os preços no verdureiro da esquina. A racionalidade
burguesa gostaria de persuadir os cidadãos negros de que
a aritmética não lhes dá nenhuma certeza de
que as contas que fazem estão certas ou erradas e convencê-los
de que uma ponte bem construída corre o mesmo risco de cair
como aquela montada de qualquer jeito. Desde Aristóteles,
ser escravo é suar a camisa para quem sabe que não
vai dar certo.
A propriedade
dialética do ser-carente da sociedade civil ressalta à
vista quando se constata no cenário histórico europeu
que o cidadão segue o burguês, isto é, as burguesias
nacionais bem-sucedidas constituíram-se em Estados Nacionais.
Enquanto burgueses, os indivíduos não são sujeitos
do saber, são antes sujeitos que têm sorte ou então
que quebram a cara. Mesmo quando em minoria, ao cidadão assiste
a proteção legal, ao passo que o burguês, a
não ser que esteja bem no topo, sente-se continuamente desfavorecido,
à cata de favores e induzindo milagres. Em suma, não
obstante ambos sejam individualistas, o cidadão não
constitui figura privada, diferentemente do burguês. Por mais
que brilhe em público, o burguês continua um ser privado,
carente daquilo que só a cidadania é capaz de gerar
- direitos.
As
políticas de ações afirmativas para o acesso
dos negros às universidades e aos centros tecnológicos
de excelência não são movidas por razões
de natureza econômica e não se deixam reduzir à
questão social. Elas não atendem aos anseios típicos
e tampouco satisfazem às reivindicações corriqueiras
da sociedade civil-burguesa, mas incidem direta e precipuamente
sobre o ordenamento jurídico vigente. O estabelecimento dos
sistemas de cotas para negros é um mecanismo adequado do
Estado Democrático de Direito para compensar injustiças
de longa duração contra a população
negra em todo o território brasileiro e fazer frente às
maldades consolidadas que obstruem há tempo os vasos capilares
da vida nacional. Democracia é um preceito constitucional
e não um boné social.
Isso
altera a clássica relação das esquerdas com
o Estado.
Para
Marx, a figura estatal tinha os dias contados como ferramenta de
exploração, razão por que não imagina
o proletário como agente de direitos e deveres. Como pólo
negativo do capital, o proletário constitui, em Marx, o contraditório
da noção humanista de homem (no caso, Marx polemiza
contra Rousseau). Na condição de agente revolucionário
responsável pela superação do capitalismo,
o proletariado é ator de resolução filosófica
das contradições que constituem a razão de
ser da sociedade civil-burguesa. Para o jovem Marx, o ser proletário
e o ser filosófico são homólogos dialéticos,
quer dizer, ambos têm a mesma virtualidade: transformar, suprimir,
superar o contraditório socioeconômico das relações
capital/trabalho. Como Marx não protagoniza nenhuma revolução,
o resultado histórico da teoria marxiana só pode ser
avaliado em seus seguidores.
O revolucionário
profissional Lênin faz, em outubro de 1917, uma revolução
política de grande estilo no império czarista. No
day after, todo poder está nas mãos dos sovietes,
mas a sociedade russa continua sendo a de Nicolau II. A revolução
política bem-sucedida necessita com urgência de um
Estado para o take-off da revolução social.
Lênin funda o Estado Soviético com uma matriz programática
de acordo com a qual os Estados existem para desaparecerem, quanto
antes melhor. Em conseqüência, a criatura política
marxista-leninista sobrevive heroicamente à guerra e ao stalinismo,
mas deteriora paulatinamente e acaba entrando em colapso com os
arsenais atômicos repletos. O Estado Soviético morre
de asfixia jurídica. Excetuado o andar de cima, seus cidadãos
tinham muitas necessidades e poucos direitos, eis porque compartilharam
as mamas do socialismo real até à exaustão.
A dialética
hegeliana parte do abstrato para integrar no concreto todas as determinações
racionais; a dialética marxiana assume o valor de troca com
os olhos no valor de uso e o Estado de Direito toma por dogma a
igualdade jurídica para poder honrar as diferenças
do cidadão em relação à identidade alheia
e fazer jus às peculiaridades de grupos, gêneros e
interesses pela legitimação do modo específico
de atuação de cada um no tecido societário.
O antecedente
mais original de uma política voltada à reserva de
vagas é o universo das leis trabalhistas e da justiça
do trabalho. Seu desempenho ímpar consiste na introdução
de um diferencial na base jurídica para recompor a clássica
igualdade do Código Civil em consideração às
desigualdades socioeconômicas dos contraentes no mercado de
trabalho. A operação normativa trazida pelo direito
trabalhista no mundo do trabalho busca lidar com o impasse marxista
de ver na alienação econômica, social e humana
do proletário uma antítese dialética do capital,
com a conseqüência de que as massas exploradas pelo capital
são obrigadas a emigrar da esfera jurídica para aninhar-se
no útero da história universal, à espera do
parto revolucionário mundial sem-data.
Consideração
conclusiva
Elemento
positivo de um sistema de cotas a favor de negros é, primeiramente,
o fator ideológico. No Brasil, a democracia social como logomarca
de convivência entre brancos e negros é uma aliada
do racismo latente, subcutâneo, sugestivo, cujo charme está
em dar o dito por não dito e deixar o malfeito pelo bem-feito.
Políticas de ações afirmativas, ao contrário,
não fazem do status quo uma bandeira, não usam os
negros como material de pressão e não concebem o oprimido
como o pai do opressor. Não, trata-se de pôr à
disposição da população negra um acervo
de bens e deixar que os negros façam desses bens o que querem
e podem fazer, assim como qualquer pessoa se comporta ao ter a oportunidade
de acesso a isto ou àquilo.
O significado
político da regulamentação de reservas de vagas
para negros, providenciada por universidades, é mais prospectivo
do que retrospectivo. A justificação compensatória
olha para trás, parte da necessidade de favorecer minorias
pelos prejuízos sofridos por seus membros no passado. Mas,
quanto melhor a universidade for, tanto mais ela justificará
sua política de admissão forward-looking, isto é,
propõe-se a ter mais membros da população negra
nos corpos discentes de seus cursos e programas não apenas
para repará-los por uma injustiça passada, mas fazer,
sim, o futuro melhor para todos, ao mudar o curso da história
que o passado nos legou.
A segunda
alternativa é a mais relevante. Nela a universidade tem a
obrigação de zelar pela heterogeneidade e diversificação
de seus quadros, tendo em vista o interesse da comunidade maior
numa sociedade menos estratificada em brancos e negros, vale dizer,
constitui imperativo para cada universidade assegurar que nos próximos
anos um número maior de negros ocupe cargos de poder, usufrua
prestígio e tenha sucesso econômico, fazendo jus a
nação pluricultural e pluri-racial que somos.
Aqui,
ponto de referência das ações afirmativas não
é o passado nem o presente, mas o futuro do bem comum que
nos foi legado pelos antepassados negros e brancos - a unidade nacional
de um grande país multiétnico, segundo observa H.
Bloom, detentor do "maior literato negro surgido até
o presente" (Machado de Assis).
José
Nicolau Heck é vice-reitor de pós-graduação
e pesquisa da Universidade Católica de Goiás.
Este
texto foi cedido pela Revista Educação e Filosofia,
editada pela FAFCS e FACED da Universidade Federal de Uberlândia
- MG, e será publicado no vol. 17, nº 34, deste periódico,
em janeiro de 2004.
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