"Dia
da Consciência Negra" retrata disputa pela memória
histórica
Preservar
a memória é uma das formas de construir a história.
É pela disputa dessa memória, dessa história,
que nos últimos 32 anos se comemora no dia 20 de novembro,
o "Dia Nacional da Consciência Negra". Nessa data,
em 1695, foi assassinado Zumbi, um dos últimos líderes
do Quilombo dos Palmares, que se transformou em um grande ícone
da resistência negra ao escravismo e da luta pela liberdade.
Para o historiador Flávio Gomes, do Departamento de História
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a escolha do 20 de novembro
foi muito mais do que uma simples oposição ao 13 de
maio: "os movimentos sociais escolheram essa data para mostrar
o quanto o país está marcado por diferenças
e discriminações raciais. Foi também uma luta
pela visibilidade do problema. Isso não é pouca coisa,
pois o tema do racismo sempre foi negado, dentro e fora do Brasil.
Como se não existisse".
Construindo
o "Dia da Consciência Negra"
O
20 de novembro trata da data do assassinato de Zumbi,
em 1665, o mais importante líder dos quilombos
de Palmares, que representou a maior e mais importante
comunidade de escravos fugidos nas Américas, com
uma população estimada de mais 30 mil. Em
várias sociedades escravistas nas Américas
existiram fugas de escravos e formação de
comunidades como os quilombos. Na Venezuela, foram chamados
de cumbes, na Colômbia de palanques e de marrons
nos EUA e Caribe. Palmares durou cerca de 140 anos: as
primeiras evidências de Palmares são de 1585
e há informações de escravos fugidos
na Serra da Barriga até 1740, ou seja bem depois
do assassinato de Zumbi. Embora tenham existido tentativas
de tratados de paz os acordos fracassaram e prevaleceu
o furor destruidor do poder colonial contra Palmares. |
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Há
32 anos, o poeta gaúcho Oliveira Silveira sugeria ao seu
grupo que o 20 de novembro fosse comemorado como o "Dia Nacional
da Consciência Negra", pois era mais significativo para
a comunidade negra brasileira do que o 13 de maio. "Treze de
maio traição, liberdade sem asas e fome sem pão",
assim definia Silveira o "Dia da Abolição da
Escravatura" em um de seus poemas. Em 1971 o 20 de novembro
foi celebrado pela primeira vez. A idéia se espalhou por
outros movimentos sociais de luta contra a discriminação
racial e, no final dos anos 1970, já aparecia como proposta
nacional do Movimento Negro Unificado.
A diversidade
de formas de celebração do 20 de novembro permite
ter uma dimensão de como essa data tem propiciado congregar
os mais diferentes grupos sociais. "Os adeptos das diferentes
religiões manifestam-se segundo a leitura de sua cultura,
para dali tirar elementos de rejeição à situação
em que se encontra grande parte da população afro-descendente.
Os acadêmicos e os militantes celebram através dos
instrumentos clássicos de divulgação de idéias:
simpósios, palestras, congressos e encontros; ou ainda a
partir de feiras de artesanatos, livros, ou outras modalidades de
expressão cultural. Grande parte da população
envolvida celebra com sambão, churrasco e muita cerveja",
conta o historiador Andrelino Campos, da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro.
Capoeira-
trabalho desenvolvido pela Associação dos Moradores
de Plataforma AMPLA. Créditos:
Antonia dos Santos Garcia
Para a socióloga Antonia Garcia, doutoranda do Instituto
de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, é importante que se conquiste o "Dia
Nacional da Consciência Negra" "como o dia nacional
de todos os brasileiros e brasileiras que lutam por uma sociedade
de fato democrática, igualitária, unindo toda a classe
trabalhadora num projeto de nação que contemple a
diversidade engendrada no nosso processo histórico".
Diferente do 20 de novembro o 13 de maio perdeu força em
nossa sociedade devido a memória histórica vencedora:
a que atribuiu a abolição à atitude exclusiva
da princesa Isabel, aparentemente paternalista e generosa Isabel,
analisa o historiador Flávio Gomes. Pesquisas recentes têm
recuperado a atuação de escravos, libertos, intelectuais
e jornalistas negros e mestiços para o 13 de maio, mostrando
como este não se resumiu a um decreto, uma lei ou uma dádiva.
Esses estudos também têm resgatado o significado da
data para milhares de escravos e descendentes, que festejaram na
ocasião.
São poucos os locais onde se mantêm comemorações
no 13 de maio. No Vale do Paraíba, no estado de São
Paulo, o 13 de maio é dia de festa. "Não porque
a princesa foi uma santa ou porque os abolicionistas simpáticos
foram fundamentais, mas porque a população negra reconhece
que a Abolição veio em decorrência de muita
luta", diz Gomes. Albertina Vasconcelos, professora do Departamento
de História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia,
também lembra que a data é celebrada em vários
centros de umbanda na Bahia como o dia do preto-velho e que moradores
antigos do Quilombo do Bananal, em Rio de Contas, Bahia, contam
que seus pais e avós festejaram o 13 de maio de 1888 com
muitos fogos e festas.
Na opinião de Vasconcelos "é importante comemorar,
não para contrapor uma data a outra, os heróis brancos
aos heróis negros, mas porque é necessário
tomarmos consciência da história que está nessas
datas, que traz elementos da nossa identidade". Para a pesquisadora,
assim seria possível contribuir para desmistificar toda a
construção ideológica produzida sobre o povo
negro.
Nas escolas: muita proposta, pouca mudança
No início de seu mandato o presidente Lula aprovou a inclusão
do Dia Nacional da Consciência Negra no calendário
escolar e tornou obrigatório o ensino de história
da África nas escolas públicas e particulares do país.
Embora a decisão tenha sido comemorada, alguns pesquisadores
ressaltam que existem obstáculos a serem ultrapassados para
que a proposta se transforme em realidade. "Em geral, a história
dada segue o livro didático e ele é insuficiente para
dar conta de uma forma mais ampla e crítica de toda a história",
ressalta Vasconcelos. Essa avaliação da historiadora
é confirmada pela professora de história Ivanir Maia,
da rede estadual paulista. "A maioria dos professores se orienta
pelo livro didático para trabalhar os conteúdos em
sala de aula. Nos livros de história, por exemplo, o negro
aparece basicamente em dois momentos: ao falar de abolição
da escravatura e do apartheid".
Campos
destaca que alguns livros didáticos de história têm
sido mais generosos ao retratar a "história dos vencidos",
mas ressalta que a maioria, inclusive os livros ligados a sua área
- a geografia -, continua a veicular os fatos sociais de forma depreciativa,
seja referente ao Brasil ou a África. "Encontramos com
fartura os elementos de modo civilizatório ocidental como
a única verdade que merece maiores considerações",
exemplifica. Uma iniciativa importante que ocorreu nesse período
foi o controle dos livros didáticos distribuídos pelo
Ministério da Educação e Cultura (MEC), visando
evitar a distribuição de livros contendo erros conceituais
e representações negativas sobre determinados indivíduos
e grupos. Mas, na opinião de Garcia, seria necessário
exigir uma maior revisão nessas obras: "os livros didáticos
precisariam abordar a participação do povo negro na
construção do país, na construção
da riqueza nacional, na acumulação do capital e também
as suas batalhas, rebeliões, quilombos e suas lutas mais
contemporâneas".
Paula Cristina da Silva Barreto, professora da Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, destaca
que, além dos livros didáticos, outro foco importante
são as propostas de mudança na formação
dos professores. "Foi tímido o trabalho feito pelo MEC
nessa direção até o momento", critica
a pesquisadora. Na avaliação dela, sem professores
bem preparados para abordar temas complexos, como os abordados nos
PCNs, "é muito difícil obter sucesso com a alteração
curricular e existe uma grande probabilidade de que as escolas não
coloquem em prática o que foi proposto". Os baixos salários
pagos e as condições de trabalho desanimadoras nas
escolas são fatores também destacados pelos pesquisadores
como possíveis responsáveis pelo pequeno envolvimento
dos professores com propostas que visam abordar a diversidade étnica
e problematizar a questão do negro no Brasil no interior
das escolas.
Puxada de rede - AMPLA - Associação dos Moradores
de Plataforma
Experiências educativas alternativas
Existem diversos programas educativos espalhados pelo país
que são propostos e organizados por entidades ligadas aos
movimentos negros brasileiros. Para Campos, a diferença fundamental
entre essas propostas e o ensino escolar "é o comprometimento
daqueles que montam os programas. Em geral são frutos de
experiências de grupos ligados aos problemas dos afro-descendentes;
buscam, sobretudo, a eliminação da desigualdade através
de um instrumento poderoso: a consciência cada vez maior da
coletividade". Como exemplos, o pesquisador cita o Projeto
da Mangueira, voltado para os esportes, que já existe há
muito tempo, além de experiências que têm levado
meninos e meninas às escolas de sambas-mirins no Rio de Janeiro.
Barreto, que tem acompanhado de perto alguns projetos na área
de educação implementados por organizações
anti-racistas e/ou culturais de Salvador, destaca como exemplos
bem sucedidos a Escola Criativa do Olodum, o projeto de extensão
pedagógica do Ilê Aiyê e o Ceafro. "Essas
experiências têm sido importantes por fomentarem o debate
e gerarem demandas por mais qualidade do ensino público,
por um currículo menos eurocêntrico e mais multicultural
e multirracial, por melhores livros didáticos e por um ambiente
racialmente mais democrático nas escolas", diz Barreto.
O mais interessante é que esses projetos se transformaram
em referência para as políticas adotadas por órgãos
oficiais como o Ministério Educação (MEC) e
as Secretarias de Educação. Combinando educação
formal e não-formal esses projetos tratam, por exemplo, de
conteúdos presentes no currículo oficial em espaços
como os barracões dos terreiros de candomblé ou as
quadras dos blocos afro; outros utilizam parte da produção
cultural das organizações - letras de música,
mitos africanos etc. - no currículo das escolas regulares.
O ensino de História da África, na escola do Ilê
Aiyê, já acontece há vários anos.
Para Barreto "é de fundamental importância o fato
de que as crianças e jovens negros e mestiços são
positivamente valorizados nesses projetos, elas são consideradas
como portadores de direitos, o que tem um efeito direto sobre a
auto-imagem e a construção da identidade pessoal e
coletiva". Atualmente, a socióloga trabalha com projetos
educativos voltados para a democratização do acesso
e a permanência de estudantes negros e mestiços no
ensino superior e coordena o programa A cor da Bahia, que há
dez anos realiza pesquisas, publicações e atividades
de formação na área de relações
raciais, cultura e identidade negra na Bahia. Desde 2002, o programa
desenvolve o projeto tutoria, que cria estratégias diversas
para estimular, apoiar e promover a formação de estudantes
negros que ingressaram na Universidade Federal da Bahia. Com o apoio
do programa Políticas da cor fornecem bolsas de ajuda de
custo aos alunos e orientação acadêmica, visando
o ingresso destes no mercado de trabalho e em cursos de pós-graduação
em condições mais competitivas. Na opinião
de Barreto, ainda há muito para ser feito com no sentido
de assegurar uma maior democratização - em termos
raciais e econômicos - do sistema de ensino superior público.
"É preciso entender que a desigualdade no Brasil tem
cor, nome e história. Esse não é um problema
dos negros no Brasil, mas sim um problema do Brasil, que é
de negros, brancos e outros mais", avalia Gomes.
(SD)
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