Ações
afirmativas e políticas de afirmação do negro
no Brasil
Carlos
Vogt
I
De
um modo geral, os estudos e as atitudes intelectuais e políticas
voltados positivamente à questão do negro no Brasil
só se desenvolvem, efetivamente, no século XX, embora
tenha havido, no século XIX, toda uma literatura abolicionista,
de Castro Alves a Joaquim Nabuco que, no entanto, tratou o negro
como um problema homogeneizado pela escravidão, enquanto
mácula.
É
verdade que Nina Rodrigues, apontado como pioneiro dos estudos africanos
no Brasil, vinha trabalhando sobre o tema desde o final do século
XIX e que já em 1900 havia publicado no Jornal do Comércio
o que viria a ser depois capítulo do livro póstumo
Os africanos no Brasil, de 1933. Dois outros capítulos
desse livro foram também publicados antes da morte do autor
em Paris, em 1906: "As sublevações de negros
no Brasil anteriores ao século XIX. Palmares", no Diário
da Bahia e "Sobrevivências totêmicas: festas populares
e folclore", novamente no Jornal do Comércio.
A advertência
que Silvio Romero fizera no mesmo ano da Abolição
da Escravatura, em 1888, sobre a urgência de se voltarem os
estudos no Brasil para a questão do negro aparece como epígrafe
no livro de Nina Rodrigues:
[...]
temos a África em nossas cozinhas, como a América
em nossas selvas, e a Europa em nossos salões [...]
Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiques,
benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçangas... vão
morrendo..."
A adoção
da advertência de Silvio Romero por Nina Rodrigues, como epígrafe,
resume bem as contradições de atitudes em relação
ao negro que marcaram a obra do médico e intelectual maranhense
na Bahia: Defensor dos valores culturais dos africanos no Brasil
e dos seus direitos à liberdade de suas práticas religiosas,
mesmo contra as autoridades policiais que as perseguiam, Nina Rodrigues
irmanava-se também com Silvio Romero na visão "científica"
da inferioridade racial do negro:
"O
critério científico da inferioridade da Raça
Negra nada tem de comum com a revoltante exploração
que dele fizeram os interesses escravistas dos norte-americanos.
Para a ciência não é esta inferioridade mais
do que um fenômeno de ordem perfeitamente natural, produto
da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade
nas suas diversas divisões ou secções (...)
A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os
seus incontestáveis serviços à nossa civilização,
por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o
revoltante abuso da escravidão, por maiores que se revelem
os generosos exageros dos seus turiferários, há
de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como
povo (...)."
II
Em
1941, M. Herskovits, autor, na mesma década e na seguinte,
de vários trabalhos sobre a cultura afro-brasileira, publica
o livro The myth of the negro past. Nele, logo no início
declara a intenção de, realizando pesquisas sobre
a cultura de origem africana no EUA, contribuir para "melhorar
a situação inter-racial" nesse país.
Constrói,
assim, livro para ajudar a compreender a história do negro,
história até então ignorada, por zelo e por
descuido, contrapondo-se a cinco "mitos" então
vigentes. Primeiro, que os negros, como crianças, reagem
pacificamente a "situações sociais não
satisfatórias"; segundo, que apenas os africanos mais
fracos foram capturados, tendo os mais inteligentes fugido com êxito;
terceiro, como os escravos provinham de todas as regiões
da África, falavam diversas línguas, vinham de culturas
bastante variadas e tendo sido dispersos por todo o país,
não conseguiram estabelecer um "denominador cultural"
comum; quarto, que, embora negros da mesma origem tribal conseguissem,
às vezes, manter-se juntos nos EUA, não conseguiam
manter a sua cultura porque esta era patentemente inferior à
dos seus senhores; quinto, que "o negro é assim um homem
sem um passado".
Ao
escrever o prefácio da 2ª edição de seu
livro, em 1958, Herskovits reconheceria que muitas coisas haviam
mudado, desde a primeira edição, em 1941 e que o número
de negros que rejeitavam seu passado estava diminuindo paulatinamente,
o mesmo acontecendo com as atitudes dos brancos em relação
aos pontos de vista anteriores, para, então, arrematar:
"E
o negro americano, ao descobrir que tem um passado, adquire uma
segurança maior de que terá um futuro."
A
oposição entre o otimismo culturalista de Herskovits
e o pessimismo cientifista de Nina Rodrigues explica-se, entre outras
coisas, pela própria mudança dos paradigmas teóricos
no tratamento dos africanismos na América e pelo descrédito
científico em que acabara caindo a frenologia lombrosiana
e que tanto marcava a postura intelectual de Nina Rodrigues e de
tantos outros no Brasil, inclusive Euclides da Cunha em Os sertões.
Mas,
como se viu, o racismo cientificista de Nina Rodrigues não
era a única vertente analítica de seus estudos sobre
o tema. A simpatia pela cultura dos povos africanos para cá
trazidos como escravos, os processos de suas adequações,
transformações e influências pela interação
com os outros elementos constitutivos dessa nova realidade - o branco
europeu e o indígena americano, em particular, como lembrava,
veemente e dramático, Silvio Romero - , essa simpatia, pois,
resultando em atitudes intelectuais positivas em relação
ao negro, foi o que sobreviveu ao modismo positivista do médico
Nina Rodrigues, fazendo do etnólogo, que nele também
convivia, a influência mais importante para o desenvolvimento
dos estudos do negro no Brasil no início do século
XX.
Nessa
linha, muitos foram os seus seguidores ou, ao menos, seus admiradores
nas décadas seguintes, caso, em particular, de Artur Ramos
e de Edison Carneiro, mesmo quando se contrapunham em diferenças
teóricas e metodológicas, ou quando se alinhavam nas
disputas regionais, Gilberto Freyre puxando, é claro, para
Pernambuco, pela primazia do autêntico das manifestações
culturais africanas no Brasil.
E o
que acontece, por exemplo, na avaliação que Edison
Carneiro faz no artigo "O Congresso Afro-Brasileiro da Bahia",
descrito em 1940, no qual ao tecer elogios a esse encontro realizado
em 1937, o contrapõe, ao mesmo tempo, ao Congresso do Recife,
de 1934, pelo critério da maior ou menor pureza das apresentações
dos ritos e cerimônias apresentados, num e noutro caso, aos
congressistas:
"Esta
ligação imediata como o povo negro, que foi a glória
maior do Congresso da Bahia, deu ao certame um colorido único",
como já previra Gilberto Freyre. Artur Ramos, em carta que
me escreveu sobre a entrevista ao Diário de Pernambuco,
dizia:
"O
material daí que [Gilberto Freyre] julga apenas pitoresco
constituirá justamente a parte de maior interesse científico.
O Congresso do Recife, levando os babalorixás, com sua
música, para o palco do Santa Isabel, pôs em xeque
a pureza dos ritos africanos. O Congresso da Bahia não
caiu nesse erro. Todas as ocasiões em que os congressistas
tomaram contato com as coisas do negro foi no seu próprio
meio de origem, nos candomblés, nas rodas de samba e de
capoeira."
III
Edison
Carneiro, no artigo "Nina Rodrigues", escrito em 1956
reconhece, apesar das críticas, os méritos do autor
de Africanos no Brasil, em especial, o de ter proposto um
método comparativo para o estudo dos comportamentos do negro
no Brasil e na África. Edison Carneiro e Artur Ramos são
herdeiros desse método, o que é explicitamente reconhecido
pelo primeiro quando escreve no mesmo artigo acima citado:
"Línguas,
religiões e folclore eram elementos dessa comparação
a que a história dava a perspectiva final. Deste modo ganhou
o negro a sua verdadeira importância em face da sociedade
brasileira."
Compare-se,
agora, o que vai dito nesse último período da citação
de Edison Carneiro com a observação de Herskovits,
transcrita mais atrás ("E o negro americano, ao descobrir
que tem um passado, adquire uma segurança maior de que terá
um futuro."), e ter-se-á uma medida objetiva de quanto
os propósitos político-intelectuais desses autores
eram coincidentes, levando-se em conta, é claro, as diferenças
entre a sociedade americana e a sociedade brasileira.
Mas,
num caso e noutro, tratava-se de reencontrar a história do
negro pela via da valorização de sua cultura, na África
e no país de destino, comparando-a nas duas situações,
fazendo-o, dessa vez chegar aos EUA ou no Brasil, onde quer que
fosse, pela porta da dignidade e da distinção que
o passaporte dos ritos, das línguas, da complexidade cultural
de suas origens lhe conferia.
É
a fase heróica dos estudos do negro no Brasil. Por volta
de 1950 encerra-se, segundo Edison Carneiro essa fase e tem início
a chamada fase sociológica desses estudos, conforme se pode
ler no seu artigo programático "Os estudos brasileiros
do negro", de 1953:
"Se
o negro com sua presença alterou certos traços do
branco e do indígena, sabemos que estes, por sua vez, transformaram
toda a vida material e espiritual do negro, que hoje representa
apenas 11% da população (1950), utiliza a língua
portuguesa e na prática esquecem as suas antigas vinculações
tribais para interessar-se pelos problemas nacionais como um brasileiro
de quatro costados. Tudo isso significa que devemos analisar o
particular sem perder de vista o geral, sem prescindir do geral,
tendo sempre presente a velha constatação científica
de que a modificação na parte implica em modificação
no todo, como qualquer modificação no todo importa
em modificações em suas partes."
Estava
encerrada a fase afro-brasileira dos estudos do negro no Brasil
e firmava-se, particularmente, com os trabalhos de Florestan Fernandes,
Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, na chamada Escola Sociológica
de São Paulo, uma nova tendência desses estudos agora
voltados para a análise da estrutura de classes no país
e, nela, para a história particular do negro, primeiro como
escravo, depois como trabalhador livre marcado pelo estigma do preconceito
de cor.
Como
escrevemos no livro Cafundó - A África no Brasil,
que publicamos em co-autoria com Peter Fry e com a colaboração
de Robert Slenes, ao romantismo da fase teórica substitui-se
um realismo de inspiração sociológica, de fundo
social e de aspiração socialista.
Resumindo,
o movimento desses estudos poderia ser caracterizado, em um primeiro
passo, por sua ênfase cientificista ou médico-legalista,
embora já com as sementes do culturalismo que dominaria o
panorama da segunda fase, havendo em um terceiro momento, a predominância
de uma visão sociológica da questão, como acabamos
de dizer.
IV
Essas
três fases dos estudos do negro no Brasil contribuem também,
de certa forma, para a compreensão das diferentes fases por
que passou o movimento negro no século XX, do ponto de vista
de suas lutas, de suas reivindicações, de suas bandeiras
e das explicações científicas, culturais e
sociológicas que fundamentam as ênfases de suas ações
políticas.
Assim,
nos anos 1920, as próprias organizações negras
refletiam a visão de que o principal problema da população
negra no Brasil estava nela mesma, dadas as condições
precárias de sua educação formal, a fraqueza
das organizações em si mesmas e a conseqüente
falta de habilidade para concorrer às disputas no mercado
de trabalho, tudo isso acrescido, é claro, do "preconceito
de cor" que dificultava e obstruía a integração
social e discriminava o negro, pela cor, na sociedade.
A democracia
racial, como ideal político e social programático,
concomitante à redemocratização do país
em 1945, coincidente também com o fim da Segunda Guerra Mundial
e com a vitória dos países aliados sobre o nazi-fascismo,
propicia o desenvolvimento de ações no campo educacional,
cultural e mesmo psicanalítico, como é o caso do Teatro
Experimental do Negro, no Rio de Janeiro, que, através de
diferentes organizações, visam à reforçar,
quando não despertar, o sentimento de orgulho e de distinção
por ser negro, desse modo, contribuir para capacitá-lo a
enfrentar o seu pior inimigo na sociedade, o preconceito racial,
agente também perturbador do progresso integrado do país
na comunhão das raças, dos credos, das diferenças.
Vê-se
por aí o quanto esse movimento reflete características
próprias da segunda fase dos estudos do negro no país,
e o quanto os seus objetivos lembram os propósitos enunciados
por Herskovits, no EUA e por Artur Ramos ou Edison Carneiro, entre
nós.
A transformação
da democracia social de ideário político em mito e
em ideologia e, portanto, em expediente de ilusionismo social vai
se dar, de maneira consistente, a partir dos anos 1970 e, talvez,
um dos fatos mais importantes dessa nova tendência e postura
seja a fundação em 1978, em São Paulo, do Movimento
Negro Unificado.
Não
será difícil identificar nesse momento aspectos coincidentes
com os que se encontram na linha sociológica dos estudos
do negro e caracterizam, de um modo geral, a terceira fase desses
trabalhos, porquanto a grande responsável pela situação
de exclusão do negro está na verdade, na estrutura
de dominação da sociedade pelo establishement
branco, consolidado no governo e difundido na sociedade civil. Passa-se,
pois, da democracia racial, integradora e geradora de plenos direitos
para a denúncia de uma dominação real assentada
sobre a base de um racismo difuso e poderoso.
V
O
que se segue, até hoje, na história dos estudos e
dos movimentos negros no Brasil, tem, grosso modo, a ver
com as características acima apontadas para as diferentes
fases de sua evolução e transformação
nos campos teórico e prático das ações
que lhes são próprias.
Em
1988, no ano do centenário da Abolição da Escravatura,
foi promulgada a nova Constituição da República
Federativa do Brasil. Nela, em decorrência da lutas pelos
direitos civis dos negros, ficou consagrado, no Título II
- Dos direitos e garantias fundamentais -, Capítulo
I - Dos direitos e deveres individuais e coletivos -, Artigo
5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes:
Artigo
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável
e imprescritível, sujeito à pena de reclusão,
nos termos da lei.
A
regulamentação desse parágrafo veio em seguida
pela Lei nº 7716, de 5 de janeiro de 1989, modificada pela
Lei 008882 de 3 de junho de 1994 e novamente modificada em 13 de
maio de 1997, pela Lei nº 9459, que acrescentou também
ao Artigo 140 do Código Penal relativo ao crime de injúria
por utilização de "elementos referentes a raça,
cor, etnia, religião ou origem", estabelecendo pena
de "reclusão de um a três anos e multa".
O passo
seguinte seria o das ações afirmativas, cujo modelo
podia ser buscado nos EUA dos anos 1960, e, mais recentemente, no
governo de Nelson Mandela, na África do Sul.
Aqui,
sim, numa quarta fase, opera-se uma mudança importante no
paradigma clássico dos estudos e dos movimentos negros no
Brasil, embora ela própria seja decorrente também
das grandes transformações que na economia, na política,
e na cultura o mundo contemporâneo passa a conhecer, sobretudo
a partir de 1989, com a queda do muro de Berlim e a consolidação
do fenômeno da globalização em todos os setores
da vida social. Deixa-se de lado o ideal do Brasil mestiço
para proceder às ações pelo reconhecimento
étnico-racial dos negros.
Leia-se,
nesse sentido, o que escreve Antonio Sérgio Alfredo Guimarães
no artigo "Acesso de negros às universidades públicas",
de 2002:
Nos
primeiros tempos, de 1995 até bem recentemente, a reação
da sociedade civil, representada pelos seus intelectuais e meios
de comunicação de massa, foi largamente contrária
à adoção de políticas de cunho racialista.
O movimento negro, assim como os poucos intelectuais brancos que
defendiam tais políticas, viram-se politicamente isolados,
por mais de uma vez sob a acusação de vocalizar
e deixar-se colonizar culturalmente pelos valores norte-americanos.
De fato, nada mais contrário à identidade nacional
brasileira, tal como foi formada historicamente - como identidade
autocolonial, culturalmente híbrida e racialmente mestiça
-, que o reconhecimento étnico-racial dos negros. Assim,
os que por ventura tinham sólidos interesses na manutenção
das desigualdades encontraram aliados cujos motivos eram puramente
ideológicos, pessoas que viam nas políticas dirigidas
preferencialmente aos negros a penetração no Brasil
do 'multiculturalismo' e do 'multirracionalismo' de extração
anglo-saxônica".
VI
Do
ponto de vista das ações afirmativas, o país
caminhou bastante nesses últimos anos no que diz respeito
aos cenários mais positivos para a mobilidade social, o desenvolvimento
pessoal, a formação profissional e as chances de concorrência
e competição do homem e da mulher negra no mercado
de trabalho.
Mas
há ainda, muito o que avançar e muitas resistências
a serem quebradas entre os intelectuais e a sociedade civil se se
considerar, por exemplo, os dados de 2001 da pesquisa direta do
programa "A cor da Bahia/UFBA" e do I Censo Étnico
Racial da USP e IBGE, também apresentados no artigo acima
referido.
Segundo
esses dados, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o
número de alunos brancos é de 76,8%, o de negros 20,3%
para uma população negra no estado de 44, 63%; na
Universidade Federal do Paraná (UFPR) os brancos são
86,6%, os negros, 8,6%, para uma população negra no
estado de 20,27%; na Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
brancos são 47%, negros 42,8% e a população
negra no estado, 73,36%; na Universidade Federal da Bahia (UFBA),
50,8% são brancos, 42,6% negros e 74,95% a população
negra do estado; na Universidade de Brasília (UnB), são
brancos 63,74%, são negros 32,3%, tendo o Distrito Federal
uma população negra de 47,98%; na Universidade de
São Paulo (USP), os alunos brancos somam 78,2%, os negros,
8,3% e o percentual da população negra no estado é
de 27,4%.
Vê-se,
assim, que o déficit produzido por essas diferenças
é bastante desfavorável ao negro nos estados onde
se encontram essas universidades: 24,33% na UFRJ, 11,67% na UFPR,
30,56% na UFMA, 32,35% na UFBA, 15,68% na UnB e 19,1% na USP.
Como
disse, há, contudo, avanços, sobretudo por parte do
governo quanto à adoção de ações
afirmativas relativamente à população negra
do país, entre elas o abandono oficial da doutrina da "democracia
racial" desde a Conferência Mundial Contra a Discriminação
Racial, realizada em Durban, na África do Sul, acompanhada
de instituição de cotas de emprego em vários
ministérios e serviços, além da criação
de programas voltados para os direitos humanos, para a formação
profissional e para o reconhecimento do direito à titulação
de propriedade de terras remanescentes de quilombos, entre outros.
VII
As
cotas nas universidades, como já tive oportunidade de defender,
tem um papel estratégico nessa luta por igualdade de oportunidades
e são parte de um conjunto maior de ações afirmativas
que tendem, felizmente, a crescer cada vez em nossa sociedade.
No
artigo "O
repto da proteção", a propósito do
tema das políticas públicas de proteção
e de emancipação, visito algumas páginas de
romances e crônicas de Machado de Assis em que se apresentam
situações que desenham, em traços de atenta
observação crítica, as relações
sociais entre brancos senhores e negros escravos, ou libertos, e
mostram, com leveza de estilo e sensibilidade, a natureza complexa
e o peso dos problemas que essa sociedade escravocrata legaria para
as gerações futuras no Brasil.
Retomo
aqui as duas crônicas do livro Bons dias, ambas de
1888, uma do dia 19 de maio e outra do dia 26 de junho, que registraram,
com a fina ironia que é própria do autor e com o cinismo
oportunista característico de muitos de seus personagens,
duas situações reveladoras do ethos dos senhores
no day after do ato legal da abolição.
Na
primeira, do dia 19 de maio, seis depois da promulgação
pela princesa Isabel da Lei Áurea, o cronista nela representado,
apresenta-se como um profeta post factum e vangloria-se,
para efeito de suas aspirações políticas, de
ter-se antecipado ao 13 de maio alforriando "um molecote que
tinha, pessoa de seus dezoito anos mais ou menos."
De
maneira sinceramente hipócrita relata ainda, explicando seu
gesto pela causa final de seus interesses pessoais e estes, pelas
razões eficientes da classe social a que pertence:
"O
meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular
que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes
da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia
da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda
a gente que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido
a ler, escrever e contar, (simples suposição) é
então professor de filosofia no Rio das Cobras; que os
homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não
são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam
a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que os
poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos
e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação
do céu."
Na outra, a do dia 26 de junho transcorridos mais de um mês
da Abolição, o nosso cronista fictício arquiteta
agora maneiras de tirar proveito econômico e não apenas
político da nova situação.
Como
um Tchitchikof dos trópicos trata de comprar, tal qual no
romance de Gogol, Almas mortas, no caso, escravos libertos,
com documentos datados de antes do 13 de maio e, assim, poder "vendê-los"
ao poder público para recuperação das "perdas"
sofridas com a abolição.
"Suponha
o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio,
e que os perdeu com a lei de 13 de maio. Chegava eu ao seu estabelecimento,
e perguntava-lhe:
- Os seus libertos ficaram todos?
- Metade só; ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se;
consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua.
- Quer o senhor vender-mos?
Espanto do leitor; eu, explicando:
- Vender-mos todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram.
O leitor assombrado:
- Mas, senhor, que interesse pode ter o senhor...
- Não lhe importe isso. Vende-mos?
- Libertos não se vendem.
- É verdade, mas a escritura de venda terá a data
de 29 de abril; nesse caso, não foi o senhor que perdeu
os escravos, fui eu. Os preços marcados na escritura serão
os da tabela da lei de 1885; mas eu realmente não dou mais
de dez mil-réis por cada um."
VIII
Machado
de Assis, que o crítico americano Harold Bloom considera
o "maior literato negro surgido até o presente"
deixou-nos um legado artístico ímpar no Brasil e na
literatura universal de todos os tempos. Por ele pudemos conhecer
melhor a sociedade imperial brasileira e com ele, entrarmos no átrio
dos conflitos da sociedade republicana que se anunciava, sem historicismo,
sem sociologismo, sem programatismo panfletário. Falando
de homens e mulheres de seu tempo na provinciana capital federal,
o Rio de Janeiro que os navios estrangeiros procuravam evitar com
medo das contaminações epidêmicas da região,
o autor fixou, como nenhum outro, em imagens de poética sobriedade,
não apenas as cores locais de quadros sociais inesquecíveis,
mas também as finas incertezas e ásperas decisões
da alma humana, suas silenciosas perversidades, seus levianos conflitos
morais, a profundeza das dores reparáveis, a exlusividade
substituível dos amores, a densidade dos vazios feita de
presenças impositivas e de imposições de ausências
plenas, a religiosidade desconfiada de um narrador que desconfia,
como num meta-Eclesiastes de seu ceticismo e de sua própria
desconfiança.
Não
há em Machado de Assis a tentação do fácil
nem tampouco a tipificação do difícil. Por
isso, falando de seu tempo e de seu espaço local como não
poderia deixar de fazer, fala-nos de uma atemporalidade, contudo
histórica, do homem prisioneiro de sua eterna finitude. É
como pensar Shakespeare e não ser levado à sociedade
elizabetana, contexto necessário do texto que se lê
ou da peça a que se assiste. Impossível fazê-lo,
como impossível é também não desgarrar-se,
pela leitura, das circunstâncias históricas e que dão
vida às suas personagens e mergulhar na universalidade cômica
e trágica de seus dramas, de nossos conflitos.
O legado
literáro de Machado de Assis também é assim.
Põe-nos na sala senhorial da casa do Engenho Novo e atira-nos,
casmurros, à frustração anunciada da impossibilidade
ontológica de nos reencontrarmos conosco mesmo, no tempo,
em Mata Cavalos, ou vice-versa.
Com
o legado estético, o legado ético. E é parte
dele, com a mesma discreta perspicácia, o registro de situações
de puro exercício de dominação senhorial de
brancos em relação aos negros, ou de debochada esperteza
negocial dos que se habituram a procurar tirar vantagem em tudo,
como acontece nas duas crônicas aqui referidas.
É
uma situação historicamente datada. Não deixa,
contudo, de remeter-nos, pela própria historicidade, que
lhe dá concretude, à força explicativa do paradigma
social que apresenta.
É
contra a permanência desse modelo de relações
sociais constituído na tradição patriarcal
branca da sociedade brasileira que se fez o esforço intelectual
e político, caracterizado nas diferentes fases de sua evolução
e transformação, tal como as apresentamos, para com
ele romper e para definitivamente superá-lo.
As
ações afirmativas do movimento negro e as políticas
públicas de sua afirmação no Brasil são
uma etapa contemporânea desse longo processo histórico.
As cotas nas universidades públicas, uma parte estratégica
desse movimento.
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