Reivindicação
por reparação caracteriza movimento negro contemporâneo
Um
movimento social que retomou sua expressividade no cenário
político contemporâneo foi o movimento negro. Mas definir
a sua configuração na atualidade não é
tarefa fácil. Dois processos políticos vêm sendo
destacados pelos ativistas do movimento como marcos de sua história
recente: a preparação para a participação
brasileira na Conferência de Durban, realizada na África
do Sul, em 2001, e o projeto de lei do senador Paulo Paim (PT-RS),
o Estatuto
da Igualdade Racial.
A partir
desses dois eventos significativos seria possível definir
alguns contornos do movimento negro nos anos mais recentes. E o
que se destaca é a luta pela reparação. Se
tal noção se constitui numa demanda internacionalizada
do movimento negro (presente em vários países africanos
e nos Estados Unidos), no Brasil, a reparação é
pensada como combate às desigualdades entre brancos e negros
(desigualdades raciais). E a responsabilidade histórica por
este combate caberia ao Estado brasileiro. Sendo assim, a modalidade
de política eleita como reivindicação principal
do movimento negro, na atualidade, são as políticas
públicas de ação afirmativa. E, por causa delas,
o diálogo entre o movimento negro e o Estado é cada
vez mais intenso.
Para
Maria Palmira da Silva, docente da Faculdade de Psicologia da Universidade
Metodista de Piracicaba e da Escola de Sociologia e Política
de São Paulo, a luta pela superação das desigualdades
sociais entre negros e brancos na sociedade brasileira é
um elemento constitutivo do movimento negro desde os tempos da escravidão.
Entretanto, com a reorganização nacional dos movimentos
sociais de combate à discriminação racial a
partir do final da década de 1970, através do MNU
(Movimento Negro Unificado), a agenda que vinha orientando os ativistas
- baseada na luta pelo reconhecimento social de uma identidade negra
- incorpora em sua pauta a questão das desigualdades resultantes,
especificamente, do racismo.
Segundo
Maria Palmira, que já escreveu artigos sobre o movimento
anti-racista brasileiro, é neste contexto de mudança
de percepção quanto à questão da desigualdade
que "desde os primórdios da década de noventa,
a questão das ações afirmativas, entendida
como uma modalidade de políticas públicas, vai ser
introduzida na agenda do anti-racismo brasileiro".
O
Estatuto da Igualdade Racial
O Estatuto da Igualdade Racial, de autoria do senador Paulo Paim
(PT-RS), está em tramitação no Congresso Nacional
desde 1998. Existe grande expectativa de que ele seja aprovado ainda
neste novembro, mês da consciência racial. O presidente
da Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, em encontro
recente com representantes de várias entidades do movimento
negro, teria se comprometido a colocar o projeto na pauta do plenário
da Câmara antes do dia 20 de novembro. A aprovação
do Estatuto vem concentrando os esforços de boa parte da
militância negra que o considera um marco político
por condensar muitas reivindicações históricas
do movimento.
Segundo
Edson Lopes Cardoso, assessor para relações raciais
do senador Paulo Paim e ativista histórico fundador do MNU
(Movimento Negro Unificado): "Se você considerar o movimento
negro nos últimos trinta anos, é muito difícil
que alguma coisa levantada pelo movimento não esteja presente
no projeto. Houve uma discussão com o movimento social. Os
pareceristas que avaliaram o projeto durante todos esses anos de
tramitação eram todos do movimento negro. Há
no projeto uma média razoável de atendimento de reivindicações
do movimento negro".
O projeto
de lei é amplo e prevê, em seus capítulos, questões
como pesquisa, formas de prevenção e combate de doenças
prevalecentes na população negra (tais como a anemia
falciforme); direito à liberdade religiosa e de culto, especialmente
no que diz respeito às chamadas religiões afro-brasileiras
como o candomblé; reconhecimento e titulação
das terras remanescentes de quilombos; inclusão no mercado
de trabalho, através da contratação preferencial
de profissionais negros, tanto na administração pública
quanto nas empresas privadas. O sistema que prevê cotas para
negros compreende os concursos públicos e instituições
de ensino superior (públicas e privadas), a apresentação
de candidaturas pelos partidos políticos e a participação
de artistas e profissionais negros na televisão, publicidade
e cinema.
Cardoso
faz questão de enfatizar que o Estatuto da Igualdade Racial,
não se resume, assim, ao sistema de cotas: "O projeto
tem duas diretrizes políticas fundamentais que são
uma conquista e sinalizam a maturidade do movimento negro. Primeiro,
muitas pessoas pensam que o projeto só tem cotas. O sistema
de cotas, na verdade, é parte do Estatuto. O Estatuto tem
uma orientação no sentido de que todas as políticas
de desenvolvimento econômico e social devem conter a dimensão
de superação das desigualdades raciais. É uma
orientação para se redefinir as políticas universalistas.
Ele também tem como diretriz, portanto, as ações
afirmativas e, dentro delas, uma medida especial que é o
sistema de cotas. Esta distinção é importante
para não reduzir a amplitude do Estatuto".
Pode-se
observar que o Estatuto da Igualdade Racial dispõe sobre
questões algumas das quais já previstas em outras
legislações tais como a própria Constituição
de 1988. A novidade deste projeto de lei, portanto, não residiria
naquilo que nele se reivindica como direito mas na possibilidade
da garantia desses direitos serem postos em prática.
"A
mobilização em torno do Estatuto é importante
não apenas para aprová-lo mas para fazer com que os
direitos nele previstos, caso venham a ser formalmente assegurados,
possam ser efetivamente usufruídos pela população
negra. Às vezes, um movimento se mobiliza para conquistar
uma legislação mas não tem força para
levar àquela legislação à prática.
Isso é muito comum no movimento social, e mais comum ainda
conosco do movimento negro, por razões do racismo estrutural
que compõe a história do Brasil", afirmou Cardoso
ao definir as expectativas que rondam a aprovação
do projeto de lei.
A
participação brasileira na Conferência de Durban
Em julho de 2001, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ),
foi realizada a Conferência Nacional contra o Racismo e a
Intolerância. Tal evento encerrou o processo de preparação
da participação brasileira na Conferência Mundial
contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia
e Intolerâncias Correlatas, organizada pelas Nações
Unidas, em Durban, África do Sul, em setembro de 2001.
Embora
as políticas de ação afirmativa já estivessem
sendo discutidas por várias entidades do movimento negro
e mesmo pelo governo federal (que criou, em 1995, um Grupo de Trabalho
Interministerial para debater esta modalidade de política
pública), a Conferência de Durban vem sendo descrita
pelos ativistas como o momento no qual o movimento negro se aglutinou
em torno desta reivindicação: "Durban sinaliza
um consenso sobre a necessidade de se implantar ações
afirmativas no Brasil", afirma Deise Benedito, coordenadora
de articulação política e de direitos humanos
da organização não-governamental Fala Preta!.
A Conferência
Nacional contra o Racismo e a Intolerância, segundo os dados
fornecidos pelos organizadores, contabilizou a participação
de 1500 delegados e de 500 ouvintes cadastrados. Os membros das
vinte e sete delegações (cada uma delas eleita em
um estado brasileiro) se subdividiram em grupos temáticos
e se reuniram para apresentar as propostas elaboradas nas pré-conferências
estaduais. O que se pretendia era que essas propostas fossem votadas
e sistematizadas para serem encaminhadas para o Comitê Nacional
- que as incorporaria ao documento a ser levado para a Conferência
Mundial da ONU.
"A
mobilização para a Conferência no Rio de Janeiro
foi nacional. Não existiu estado em que não houvesse
algum evento de preparação para a Conferência.
Eu me dediquei à mobilização, viajando por
quase todo o Brasil. Defendi que o mais importante da participação
brasileira na Conferência Mundial de Durban seria o processo
de mobilização nacional sobre a temática do
racismo", afirmou Ivair Augusto Alves dos Santos, assessor
da secretaria de direitos humanos do Ministério da Justiça
e, na época, membro do Comitê Executivo responsável
pela organização da Conferência Nacional.
Segundo
Ivair dos Santos, o processo de eleição das delegações
que iriam participar da Conferência Nacional refletiu a situação
do movimento negro em cada estado brasileiro. Na região norte,
por exemplo, os militantes tiveram até mesmo dificuldades
de transporte e locomoção para comparecer às
reuniões. Foi preciso, então, mobilizar o apoio dos
governos estaduais e municipais, nestes casos, embora Ivair dos
Santos faça questão de ressaltar que
"o objetivo sempre foi o de 'empoderar'[sic] a militância
e respeitar sua autonomia para se organizar. Em muitos lugares era
a primeira vez que as autoridades locais reconheciam a existência
do movimento negro".
Ao
longo dessas reuniões que constituíram a preparação
brasileira para a Conferência de Durban, lideranças
foram sedimentadas e quem se destacou nesse processo, segundo Ivair
dos Santos, foram as mulheres negras. "Elas tinham experiência
de participação em eventos internacionais e estavam
bastante mobilizadas a partir de suas organizações
não-governamentais". Simbolizando esta proeminência
política do movimento de mulheres negras havia Benedita da
Silva, então vice-governadora do estado do Rio de Janeiro,
eleita presidenta da Conferência Nacional contra o Racismo
e a Intolerância.
Pode-se afirmar, então, tomando-se como amostra a Conferência
Nacional, que os sujeitos políticos que mais se destacam
no movimento negro contemporâneo são as mulheres negras
e suas organizações não-governamentais? Para
Maria Palmira da Silva é preciso ter cautela na tentativa
de se definir quem se destaca, hoje, no movimento negro: "É
difícil fazer esta distinção. Atualmente os
movimentos sociais funcionam como redes que se conectam e desconectam,
dependendo do cenário político. Isto significa dizer
que eles são complementares. Do meu ponto de vista, não
é possível fazer esta classificação".
A reparação como responsabilidade histórica
do Estado brasileiro
Tanto na Conferência Nacional preparatória para Durban
quanto nas audiências públicas realizadas para instruir
o Estatuto da Igualdade Racial, subjaz um discurso baseado na idéia
de reparação. Esse discurso seleciona no passado a
escravidão e a abolição para afirmar a responsabilidade
histórica do Estado brasileiro no combate às desigualdades
entre brancos e negros.
"Você
tem um Estado que se constituiu em 1824 com um desafio: vai ter
escravo ou não vai ter escravo? E ele opta por ter. Porque
houve quem sugerisse, nessa primeira Constituinte, que se instituísse
um Estado brasileiro sem escravos. A elite brasileira faz a opção
de assentar o Estado sobre as desigualdades raciais" afirma
Edson Cardoso ao caracterizar aquilo que seria o racismo estrutural
da sociedade brasileira.
Para
ele, a escravidão era algo tão arraigado na mentalidade
da elite brasileira que os fazendeiros escravocratas derrubaram
a monarquia (que assinou a abolição da escravatura)
e aderiram a um conceito de república que excluía
os negros. "A república, então, não está
mais assentada no escravismo, mas sim nas desigualdades raciais.
O que é um absurdo diante dos ideais republicanos, diante
do conceito do que seja uma república porque a existência
das desigualdades raciais negam a sua própria essência.
A permanência das desigualdades raciais no Brasil abre brechas
para se questionar a efetividade dos valores e do próprio
regime democrático no país já que democracia
e racismo são incompatíveis", completa Cardoso.
Deise
Benedito, da organização não-governamental
Fala Preta!, lembra que a reparação também
passa pela questão da memória: "resgatar a memória
é importante porque informação é conhecimento
e obter conhecimento também é uma forma de obtenção
de poder." Seria necessário, então, promover
a recuperação da dignidade dos "antepassados
africanos": "embora o movimento negro tenha conseguido
resgatar a memória de Zumbi e do quilombo de Palmares, praticamente
não há monumentos dedicados à história
da população negra e seus antepassados. Existe sim
estátua para [o bandeirante] Borba Gato na cidade de São
Paulo, bem como 'rodovia dos Bandeirantes'", o que seria de
uma violência inominável para Deise Benedito, já
que "historicamente os bandeirantes foram os responsáveis
por várias atrocidades contra a população negra
no Brasil inclusive a própria destruição de
Palmares".
(CC)
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