Sistema
de cotas para negros amplia debate sobre racismo
O sistema
de cotas para negros nas universidades, adotado pela primeira vez
na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), em 2001, ainda
gera polêmica e divide opiniões. Há vários
argumentos contra e a favor, todos bastante sensatos. Nem mesmo
o governo brasileiro parece saber que posição tomar
e demonstra ambigüidade sobre a questão. Tanta incerteza,
no entanto, tem um ponto positivo: a reserva de vagas gera um debate
importante sobre o racismo no Brasil, um país onde o preconceito
existe, ainda que de forma velada.
A primeira
instituição federal de ensino superior a implementar
o sistema de cotas foi a Universidade de Brasília (UnB),
que aprovou em junho deste ano um plano de metas para integração
racial e étnica. O projeto, que entrará em vigor em
2004, prevê a reserva de vagas para negros e, num percentual
menor, índios, durante dez anos.
Um
dos autores da proposta da UnB, o professor José Jorge de
Carvalho, do Departamento de Antropologia, acredita que o sistema
de cotas é a única forma de se resolver o problema
da exclusão racial no curto prazo. O preconceito, segundo
ele, está presente nas salas de aula. Carvalho passou a defender
as cotas depois de testemunhar o caso de um aluno negro prejudicado
por um professor, aparentemente por motivos raciais.
"Há
poucos negros na universidade e isso dificulta que eles se unam
para lutar por seus direitos. É preciso mudar o tipo de relação
que existe na academia. E isso só vai acontecer quando houver
vários negros lá dentro", afirma Carvalho.
Os
dados apresentados pelo professor mostram que a exclusão
é perversa: 97% dos atuais universitários brasileiros
são brancos, contra 2% de negros e 1% de amarelos. O desequilíbrio,
num país em que 45% da população é negra,
deixa claro que são necessárias medidas urgentes para
inserção do negro no ensino superior. Mas a solução
das cotas, a única de caráter prático apresentada
até o momento, está longe de ser uma unanimidade.
Cisão
racial
Alguns argumentam que a idéia de raça deve ser abolida,
por estimular a divisão do país em grupos étnicos.
A cisão racial seria um passo em direção ao
conflito. "Desde o Modernismo, nossa sociedade se vê
como misturada. A introdução do sistema de cotas rompe
com esse ideário e produz uma sociedade que tem a obrigação
legal de se classificar como 'branca ou negra'. Em outros países,
políticas que reforçaram a condição
racial geraram conflitos inimagináveis, como em Ruanda, Kosovo
e África do Sul", alerta Yvonne Maggie, professora titular
de antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Para
Carvalho, no entanto, a adoção de cotas apenas revela
um preconceito que já é real. "Pode explicitar
o racismo, que é latente, mas não gerar um preconceito
maior que o já existente. Os negros estiveram fora do sistema
apesar da mestiçagem, que não garantiu a eles o acesso
ao ensino superior. Geneticamente não há raças,
mas socialmente elas existem: a discriminação é
pela cor da pele. A intervenção no sistema deve ser
racial. Sem as cotas, os negros continuarão fora do sistema.",
ressalta.
Mas
segundo Yvonne, historicamente, a maioria das entidades de defesa dos negros tentou
combater o preconceito sem usar a idéia de raça como
referência ou exigir qualquer tipo de favorecimento. Ela cita
o exemplo do movimento radicado na Baixada Fluminense, no Rio de
Janeiro, conhecido como Pré-Vestibular para Negros e Carentes
(PVNC), que além de preparar jovens para ingressarem na universidade,
procura dar noções de direitos sociais e cidadania.
"No
PVNC, negros e pobres (brancos ou não) concorriam em igualdade
de condições. Os mentores do movimento eram
contra qualquer tipo de ajuda financeira ou cotas. Eles não
queriam modificar o sistema, mas sim preparar esses alunos para ingressar
nele. As cotas eram consideradas por muitos como favor e eles
queriam concorrer em pé de igualdade. Esta era a primeira versão do movimento, que inverteu o seu paradigma e hoje quer que os negros tenham cotas, ou seja, privilégio", explica a antropóloga.
Por
esse motivo, Yvonne defende políticas de inclusão
com base na situação econômica do aluno. A lei
estadual que introduziu as cotas, prevendo 40% de vagas para negros
e pardos, nas universidades do Rio de Janeiro, no ano passado, foi
modificada. Se antes negros e pardos tinham o privilégio,
independentemente de sua posição social, agora só
negros carentes têm direito às cotas. Para o vestibular
de 2004, estão previstas 20% das vagas para estudantes da
rede pública de ensino, 20% para candidatos negros e 5% para
portadores de deficiências físicas e integrantes de
minorias étnicas, todos comprovadamente carentes.
Princípio
de igualdade
Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revelam
que dos 22 milhões de brasileiros que vivem abaixo da linha
de pobreza, 70% são negros; entre os 53 milhões de
pobres do país, 63% são negros. A política
de cotas aplicada a carentes beneficiaria principalmente a população
negra. Esta é a opinião de Demétrio Magnoli,
doutor em geografia humana, para quem a reserva de vagas para negros
seria contrária à democracia. "As cotas são
uma solução simplista, que rompe com o princípio
republicano básico de igualdade entre os cidadãos.
Os negros não têm acesso ao ensino superior porque,
na maioria dos casos, são pobres e passaram anos estudando
em escolas públicas arruinadas. Em vez de cotas, o Estado
deveria aumentar os investimentos no ensino público. Em poucos
anos, os negros passariam a ocupar as melhores vagas nas universidades",
acredita Magnoli.
O jurista
Ives Gandra vai além. Segundo ele, o sistema de cotas é
inconstitucional, porque fere o princípio fundamental de
igualdade entre os cidadãos: "É uma discriminação
às avessas, em que o branco não tem direito a uma
vaga mesmo se sua pontuação for maior. Reconheço
que o preconceito existe, mas a política afirmativa não
deve ser feita no ensino superior, e sim no de base".
É
justamente no ensino público que reside uma outra crítica
à reserva de vagas. Ao adotar a medida, que não gera
custos para os cofres públicos, o governo pode deixar para
segundo plano o problema da educação. Segundo Magnoli,
as cotas produzem um efeito estatístico positivo, ao aumentar
o número de negros nas universidades, mas não acabam
com a exclusão.
"Colocar
um punhado de negros nas universidades por meio de cotas não
resolve o problema social. Beneficia apenas aqueles indivíduos
que entram. A mim, me espanta que pessoas de esquerda defendam as
cotas. O pensamento esquerdista se baseia na idéia da universalidade
de direitos. Só o pensamento ultraliberal não vê
os indivíduos como um conjunto de cidadãos, mas sim
de consumidores. No interior desse conceito é que surge a
idéia de políticas compensatórias, para corrigir
desvios de mercado", critica Magnoli.
Medida
emergencial
Os defensores das cotas concordam que o sistema não é
uma solução definitiva. A maioria dos programas é
temporária, como uma medida emergencial. Mas se essa política
não é ideal, poucas são as alternativas viáveis
e de resultados imediatos apresentadas até o momento. O investimento
do governo no ensino básico, por exemplo, depende de fatores
políticos de difícil previsão e só terá
efeitos no longo prazo.
Para
o professor Antonio Sérgio Guimarães, do Departamento
de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador
do programa de pesquisa, ensino e extensão em relações
étnicas e raciais, o fundamental é não adiar
a solução do problema. "As cotas foram, até
agora, o único mecanismo encontrado por algumas universidades
brasileiras para resolver o difícil acesso de negros e pobres
às universidades públicas. É uma iniciativa
corajosa e só dentro de alguns anos poderemos avaliar se
realmente cumpre a sua finalidade. As piores opções
são não fazer nada ou querer nos fazer crer que está
tudo bem, ou que as cotas representam um grande perigo para a cultura
brasileira, para as relações raciais no Brasil, para
o futuro da humanidade. O que realmente não gosto é
do conservadorismo travestido de humanismo. Se existem meios melhores
que as cotas para aumentar o acesso de negros à universidade
pública, que se adotem esses meios, que se façam programas
sérios e eficientes, sem transferir o problema para outra
esfera ou outra geração", avalia Guimarães.
Outra
crítica ao sistema de cotas diz respeito à identificação
dos candidatos às vagas reservadas. Até o momento,
as universidades adotaram como critério a auto-declaração.
A solução gerou controvérsias, depois que alguns
candidatos brancos classificaram-se como negros para obter o benefício
das cotas.
"Obviamente,
qualquer critério pode ser burlado. Se as pessoas acham que
nossa especificidade é sermos trapaceiros e que nenhuma política
social pode funcionar entre nós, estaremos então fadados
à lei de mercado mais selvagem", rebate Guimarães.
Debate
O governo vem agindo com cautela. O ministro da Educação,
Cristovam Buarque, reconhece que o sistema de cotas não é
ideal, mas apóia a medida até que o ensino público
tenha condições de preparar melhor os estudantes.
Buarque tenta estimular a reserva de vagas para negros, mas não
quer impor a medida por leis, o que poderia ser interpretado como
interferência na autonomia das universidades.
"A
política de cotas não é uma novidade, já
foi adotada para defender mulheres na política, por exemplo,
e ninguém a considerou atrasada. Quando é para o negro,
surge a discussão. Nós, do movimento negro, não
desejamos ferir a autonomia das universidades. Mas há uma
demanda, poucos negros estão no ensino superior", declara
o deputado federal Gilmar Machado (PT-MG), um dos coordenadores
da bancada de negros na Câmara dos Deputados.
Em
julho deste ano, o Ministério da Educação lançou
o edital do programa Diversidade na Universidade, que promete repassar
recursos de até US$ 100 mil para instituições
que mantenham projetos educativos para grupos socialmente desfavorecidos.
As concorrentes devem ter pelo menos 51% de afro-descendentes e/ou
indígenas e repassar entre 40% e 50% do valor para os estudantes,
sob a forma de bolsas.
Esse
tipo de ajuda financeira deveria ser avaliado pelos programas de
cotas, porque pode decidir a permanência de alunos beneficiados
nas faculdades. Como a maioria da população negra
é pobre, é de se esperar que boa parte desses estudantes
tenham dificuldades em se manter nas universidades, mesmo que públicas.
Além das despesas de transporte e alimentação,
há os custos de materiais didáticos. Em algumas áreas,
como a saúde, o preço de um livro pode superar um
salário mínimo. Sem as bolsas de apoio, o sistema
pode redundar em vagas ociosas.
"O
aluno que já é carente, na universidade terá
ainda mais gastos. Como ele vai fazer para se manter? Temos que
pagar passagem, alimentação, fotocópias. Já
pensei em trancar o curso no próximo semestre, para poder
trabalhar um turno a mais. Só não fiz isso porque
me aconselharam a não desistir, pois seria difícil
voltar depois", relata a aluna de pedagogia Sueli das Neves,
que trabalha como operadora de telemarketing e entrou na Uerj pelo
sistema de cotas no início do ano.
Em
meio a tantos argumentos, a estudante Marisa Santana, da graduação
em ciências sociais da UFRJ, sente-se dividida. Ex-aluna e
ex-professora do PVNC, ela defende a necessidade de um amplo debate
sobre o racismo, mais do que um posicionamento da sociedade em relação
às cotas.
"Ser
contra ou a favor limita a discussão. O importante é
pensar sobre o racismo. Eu mesma fico dividida: como ativista do
movimento negro, sou totalmente a favor das cotas; como cientista
social, sou contra. Quando se toma um critério racial como
base para a definição das cotas, fomenta-se o preconceito.
Já ouvi coisas terríveis, como 'negro é tão
inferior que precisa de cotas'. Acho que as cotas deveriam ser focalizadas
em pobres, não em negros, como fez a Uerj. Antes da mudança,
muitos dos que entraram eram negros que tiveram uma boa educação.
Isso não é revolução nenhuma, talvez
eles tivessem entrado de qualquer forma", diz a estudante.
(SH)
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