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             Livro 
              inédito sobre escravidão deve ser lançado no 
              próximo ano   
            Mais 
              da metade da população pobre da região metropolitana 
              de São Paulo é negra. No Rio de Janeiro este número 
              chega a 60%, segundo dados apresentados pelo site Observatório 
              Afrobrasileiro. No Brasil, pobreza e população 
              negra são difíceis de se separar. Desnecessário 
              dizer que a situação é resultado da mancha 
              escravocrata que, mesmo depois de abolida em 1888, não elevou 
              os negros a uma condição de igualdade na sociedade 
              brasileira. O desenvolvimento econômico tampouco conseguiu 
              dar melhores condições de vida aos pobres, pelo contrário, 
              os processos de industrialização aumentaram a desigualdade 
              e a disparidade de renda entre os mais pobres e os mais ricos, entre 
              brancos e negros. Quando se observam os ciclos brasileiros de crescimento 
              econômico, vê-se que sempre existiu, paralelamente a 
              eles, uma massa de excluídos que não colhia os frutos 
              da riqueza que o país produzia e produz. Qual seria então 
              o universo da pobreza, o universo desses excluídos, quais 
              são suas estratégias de sobrevivência, como 
              o poder público lida com eles? Questões como estas 
              são levantadas num livro, ainda inédito, que traça 
              as relações entre pauperismo e escravidão em 
              Campinas entre 1850 e 1930. O título: Os excluídos 
              - contribuição à história da pobreza 
              no Brasil - 1850-1930. O autor, o historiador José Roberto 
              do Amaral Lapa, um dos nomes mais respeitados na área de 
              história do Brasil. 
            Entre 
              os excluídos, homens, mulheres e crianças pobres, 
              e, como sempre, os negros, todos vivendo miseravelmente no espaço 
              urbano de Campinas, no final do século XIX e começo 
              do século XX. "Nativos que nasceram, viveram e morreram 
              sem sequer tomar conhecimento do universo senhorial e em seguida 
              burguês que a economia cafeeira nutriu, imigrantes que cumprindo 
              ou não o estágio agrícola, vêm sobreviver 
              na cidade, entregues à economia informal ou à caridade 
              pública, egressos da escravidão que conseguem o teto, 
              a cama, a mesa e o pão a partir de uma rede intrincada de 
              parentesco, vizinhança, agremiação...", 
              estes são os excluídos descritos por Lapa, no texto 
              do projeto que deu origem ao livro. 
            O professor 
              Lapa, como era conhecido, concluiu esse trabalho pouco antes de 
              sua morte, em 2000. O livro é mais um fruto do interesse 
              do professor pela história de Campinas, cidade com a qual, 
              segundo sua esposa Elida Gomes do Amaral Lapa, ele dizia ter uma 
              dívida de gratidão. "Eu preciso escrever alguma 
              coisa sobre a minha cidade", dizia ele, segundo Elida. Ela, 
              que sempre colaborou com o trabalho de Lapa, foi também responsável 
              pelas últimas correções no texto do livro. 
              A demora, (são quase quatro anos desde a morte de Lapa), 
              deveu-se, principalmente ao fato de Elida não se dedicar 
              exclusivamente à tarefa de revisar e conferir todos os rascunhos 
              deixados pelo marido (e não eram poucos) aliada à 
              dificuldade de lidar com a ausência dele. Elida, que preferiu 
              fazer o trabalho sozinha, contou ainda que não conseguia 
              trabalhar no escritório onde antes datilografava todos os 
              textos de Lapa, tendo assim que transferir vários arquivos 
              para outros cômodos da casa para concluir a revisão 
              do livro. 
            Os 
              excluídos faz parte de um projeto iniciado em 1996 com 
              o nome "Escravidão e pauperismo", financiado pelo 
              CNPq, cuja proposta era a de estudar a escravidão negra urbana, 
              praticada pelas classes populares, na cidade de Campinas, na segunda 
              metade do século XIX. NesSa época, Campinas apresentava 
              uma das maiores populações de escravos da então 
              Província de São Paulo. A imprensa carioca, no final 
              do século XIX afirmava que Campinas era a "Bastilha 
              negra", a cidade mais cruel do país no que se referia 
              ao tratamento e aos castigos infringidos aos negros, numa referência 
              à famosa prisão francesa cuja revolta detonou a Revolução 
              Francesa em 1789. 
            Toda 
              a pesquisa foi baseada em fontes primárias, quase que uma 
              obsessão do historiador. "Como conhecer a história 
              de um período sem pesquisar os jornais deste mesmo período?", 
              perguntava ele. Um dos sete bolsistas que trabalhou na coleta dos 
              documentos, Alexandre Zarias, disse que uma conseqüência 
              do projeto foi uma espécie de devassa em diferentes arquivos 
              históricos de Campinas. Outro bolsista, Gustavo Tuna, leu 
              mais de quinhentos processos de tutela. A leitura desses documentos 
              revela situações inusitadas como, por exemplo, um 
              processo pertencente ao Repertório de Ações 
              de Liberdades de Escravos arquivadas no Centro de Memória 
              da Unicamp. Nele, a firma Clemente H. Welmot & Companhia pede 
              autorização judicial para "comprar a alforria" 
              de nove escravos para depois, então, alugar os seus serviços. 
               
            O texto 
              de Lapa já foi enviado para a Editora da Unicamp que está 
              analisando o material. "Se tudo correr bem e o conselho, com 
              base nos pareceres, aprovar a publicação, planejaremos 
              o lançamento para o primeiro semestre do próximo ano, 
              de modo que esteja pronto em junho, que é o mês de 
              aniversário do falecimento do professor Lapa", disse 
              o diretor da Editora, Paulo Franchetti. A intenção 
              é publicar em co-edição com a Editora da USP. 
              A mesma Edusp publicou, em 1996, o último livro de Lapa, 
              A Cidade: os cantos e os antros. Primeira obra sobre Campinas, 
              este livro fala da emergência da modernidade na cidade no 
              período áureo da economia cafeeira, entre 1850 e 1900. 
              Analisa as mudanças que a cidade assistiu com a substituição 
              da cultura colonial e senhorial pela cultura burguesa e os impasses 
              vivenciados pela cidade neste período. Na opinião 
              de Olga von Simson, socióloga e coordenadora do Centro de 
              Memória Unicamp, este livro serviu como uma introdução 
              aos estudos de Campinas, que provavelmente se estenderiam por muitos 
              outros temas. Segundo ela, Lapa estudou primeiro a cidade como um 
              todo, os cantos e os antros, como que buscando um contexto. Depois 
              ele passa, então, a pesquisar os pobres, os excluídos 
              dessa cidade. "Os excluídos é uma obra 
              fundamental", diz ela. 
            Fundamental 
              porque recupera a história daqueles que poucas vezes têm 
              a chance de contar sua própria história, porque contribui 
              com pesquisas sobre um tema inédito ao mostrar que a escravidão 
              estendeu seus tentáculos até muito mais longe do que 
              as fazendas de café, chegando aos grandes sobrados nas cidades 
              e, surpreendentemente, até os humildes casebres, aos cortiços, 
              onde viviam e sobreviviam os pobres de Campinas na virada do século 
              XX. Outra contribuição se dá nas pesquisas 
              sobre a institucionalização da pobreza nessa cidade 
              em transformação, que percebe a necessidade de cuidar 
              do pobre para, ao mesmo tempo, ajudá-lo e contê-lo. 
              Importante ainda é perceber que muito do imaginário 
              construído sobre o negro tem origem nesse momento em que 
              ele convive mais de perto com a sociedade, em que ele não 
              está isolado na senzala, na fazenda, momento em que ele precisa 
              de um lugar social dentro do espaço urbano nascente. Dizer 
              onde era esse lugar foi papel dos brancos, redefinir esses lugares 
              é o destino dos negros. 
            Os 
              excluídos 
              "Surpreende-nos verificar pessoas pobres - quitandeiras, 
              velhas, viúvas, aguadeiros humildes e até mendigos 
              e escravos - tendo escravos! Como funcionava este mercado? Como 
              se processava o cotidiano, a vida privada, a intimidade entre esses 
              senhores e os seus escravos?", é o que pergunta 
              o historiador na introdução do seu texto. A resposta 
              para esta e outras questões estão espalhadas nos seis 
              capítulos que formarão o livro. Nos três primeiros: 
              "Os miseráveis", "A administração 
              da pobreza" e "A criança pobre"; Lapa traça 
              os contornos do pauperismo urbano, mostrando como e para que se 
              estabelece um círculo assistencial através da Igreja 
              e do Estado e, por fim, trata da criança pobre na cidade, 
              sobretudo as crianças órfãs. Na segunda parte 
              do livro é apresentada a situação da população 
              escrava na Campinas urbana. Os capítulos dedicados à 
              escravidão são: "O mercado urbano de escravos", 
              "O cotidiano do escravo na cidade" e "Retrato falado". 
              Observa-se aqui que trata-se de uma categoria diferenciada dentre 
              os excluídos, que seriam os excluídos dos excluídos. 
              Levando em conta que a população pobre só poderia 
              comprar aqueles escravos mais baratos, vê-se então 
              que são os escravos não qualificados que compõem 
              essa categoria. São crianças, mulheres com filhos 
              e idosos, principalmente - lembrando que um escravo tinha esperança 
              de vida de cerca de 18 anos. 
            Uma 
              das conclusões apontadas no texto é que: "... 
              o viver na cidade podia até significar para o escravo a perspectiva 
              de ser menos maltratado do que o escravo do campo, dado que o poder 
              municipal assim como cuidava de mantê-los sob o seu olhar 
              e ação disciplinadores, exercia também uma 
              proteção para evitar abusos". Por outro lado, 
              a vida na cidade impunha uma série de normas para os negros. 
              Eles não podiam conversar nas ruas em grupos de mais de três 
              pessoas, danças, batuques e cantorias só eram realizados 
              com autorização policial, circular a noite era sempre 
              motivo de suspeita, coisa que não mudou muito nos dias de 
              hoje. As relações que se davam entre o senhor pobre 
              e seu escravo também tinham características próprias. 
              Era relativamente comum a prática da mendicância por 
              parte do escravo em proveito do seu senhor. Muitas vezes este senhor 
              de pequenas posses adquiria um escravo aleijado, cego ou doente, 
              exatamente para colocá-lo para mendigar nas ruas. A prostituição 
              também era uma atividade que as escravas eram obrigadas a 
              realizar. O fato é que o escravo idoso, doente, desqualificado 
              tinha que garantir o sustento do seu senhor e o seu próprio. 
              Era um convívio mais próximo que, por um lado, poderia 
              contribuir para descaracterizar a cultura negra e diminuir a capacidade 
              de resistência do escravo, devido ao isolamento. Por outro 
              lado, poderia resultar em mais tolerância por parte do senhor 
              que dificilmente poderia repor o escravo. 
            As 
              fugas eram freqüentes no cotidiano dos escravos na cidade de 
              Campinas segundo os documentos pesquisados por Lapa que provam a 
              existência de quilombos na região. A cidade também 
              atraía escravos fugidos de cidades menores e de fazendas 
              próximas, que para ela se dirigiam na esperança de 
              não serem reconhecidos em meio aos ritmos urbanos.  
             No 
              capítulo final do livro o autor busca fazer uma releitura 
              do corpo do negro a partir de anúncios de jornal de compra 
              e venda de escravos e de anúncios de escravos fujões. 
              "Enquanto a sociedade branca e livre, no período 
              que estudamos, movida pela moral cristã, escondia o corpo, 
              o escravo geralmente tinha exposto, era obrigado a expor ou expunha 
              seu corpo pela cicatrizes e mutilações, pela divulgação 
              de descrições, pela falta de indumentária, 
              pela natureza do trabalho ou dos castigos a que era submetido, pelas 
              marcas que as doenças deixavam".  
            É 
              possível pensar, a partir dessas relações, 
              como o imaginário sobre o negro e que impregna a sua realidade 
              é um imaginário construído a partir da ótica 
              do branco. É o branco que diz ao negro o que ele é 
              ao descrevê-lo. O negro não participa dessa construção, 
              não tem voz e isso vai comprometer seu sentido de identidade 
              até os dias de hoje quando diversas pesquisas buscam rever 
              e desconstruir esse imaginário. 
             
            (PM) 
            
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